RECOMENDAÇÃO N.º 4/B/05 (Artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)
Entidade visada: Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social |
Procºs: R-4811/04 (A3) |
Data: 2005/06/07 |
Assunto: Acesso às prestações familiares e de solidariedade por parte de cidadãos estrangeiros. |
Área: A3 |
I – Exposição de Motivos
1. No seguimento de uma série de iniciativas que promovi junto de diversas associações de imigrantes com vista a aferir da integração dos seus representados em Portugal e a inteirar-me dos problemas sentidos por tais cidadãos enquanto residentes em território nacional, tenho sido ultimamente confrontado com inúmeras queixas relativas à recusa da atribuição das prestações familiares ( maxime , do abono de família ) aos detentores de Autorização de Permanência (ou aos detentores de recibo emitido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do requerimento de renovação ou prorrogação desse título).
Igual recusa se tem verificado no tocante às prestações de solidariedade, maxime ao rendimento social de inserção .
2. A razão invocada por parte dos Serviços da Segurança Social para a recusa da atribuição das prestações familiares , funda-se numa interpretação estrita e exclusivamente literal do artº 7º, nº 1, alínea b) e, sobretudo, do nº3, do Decreto-Lei nº 176/2003, de 02/08. Com efeito, tal preceito [artº 7º, nº1, b)] determina que, para efeitos da aplicação desse diploma, residente é, apenas, “ O cidadão estrangeiro, refugiado ou apátrida habilitado com título válido de autorização de residência em território nacional (…)” , estipulando, mais adiante o nº 3, do mesmo preceito que: “Consideram‑se equiparados a residentes os cidadãos estrangeiros, refugiados ou apátridas portadores de visto de trabalho ou de título de protecção temporária válidos”.
3. De igual modo, e no que ao rendimento social de inserção diz respeito, a recusa da respectiva atribuição por parte dos Serviços da Segurança Social aos cidadãos estrangeiros portadores de uma Autorização de Permanência, radica na interpretação meramente literal e, sobretudo, restritiva do preceituado no artº 6º, nº 1, alínea a), da Lei nº 13/2003, de 21 de Maio, de acordo com o qual a atribuição do direito ao rendimento social de inserção depende, entre outros requisitos e condições, do facto de o requerente “possuir residência legal em Portugal”
4. Auscultado o Conselho Directivo do Instituto da Segurança Social, I.P. a respeito da matéria e tendo defendido junto do mesmo a necessidade de ser adoptada uma interpretação dos referidos preceitos legais, consentânea com os interesses sociais em presença [artº 7º, nº 1, b) e, sobretudo, do nº3, do Decreto-Lei nº 176/2003, de 02/08. e artº 6º, nº 1, alínea a), da Lei nº 13/2003, de 21 de Maio] que permitisse a inclusão no seu âmbito pessoal dos portadores de Autorizações de Permanência, veio aquele Instituto a pronunciar-se, desfavoravelmente, nos termos do ofício com a referência nº 542, de 09.02.2005, cuja cópia junto para melhor elucidação.
5. O ofício em causa, cingindo-se estritamente à letra da lei e reiterando a posição assumida pela Direcção-Geral da Segurança Social, da Família e da Criança nas Orientações Técnicas nº 6/2003 e nº 2/2005, respeitantes a tal matéria, fundamenta a actuação dos Serviços da Segurança Social, com base no conceito de residente constante do artº 3º, do Decreto-Lei nº 244/98, de 08/08, de acordo com o qual: “Considera-se residente o estrangeiro habilitado com título válido de autorização de residência em Portugal” .
Parte, assim, da ideia de que o conceito de residente a ter em conta para efeitos de atribuição das prestações sociais em apreço terá que ser, necessariamente, o conceito de residente constante do diploma legal que regula as condições de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território português (Decreto-Lei nº 244/98, de 08/08), concluindo que: “(…) um cidadão estrangeiro munido com qualquer visto de autorização de permanência em território nacional não possui residência legal em Portugal, apesar de ter a respectiva situação regularizada em matéria de presença no território”.
Tal interpretação sai reforçada no que respeita às prestações familiares reguladas no Decreto-Lei nº 176/2003, de 02/08 (abono de família e subsídio de funeral) pela redacção adoptada no respectivo artº 7º, nº1, alínea b) e nº 3, o qual acolhe de forma expressa a noção, restritiva, de residência definida no supra transcrito artº 3º do Decreto‑Lei nº 244/98, de 08/08.
6. Conclui, assim, o Instituto da Segurança Social a respeito do assunto e refutando a posição por mim preconizada que: “ (…) o reconhecimento do direito ao abono de família às crianças e jovens estrangeiros que se encontrem em Portugal depende da apresentação de título de autorização de residência ou título de protecção temporária válidos.
Na verdade, julgamos que não deverá ser alargado o âmbito pessoal do abono de família à existência de autorizações de permanência, pois se essa fosse a intenção do legislador tê-lo-ia expresso quando previu as situações de equiparação a residente a que alude o nº3 do artº 7º, não cabendo aos Serviços de Segurança Social fazê-lo, sob pena de desvirtuar o sentido do mesmo”.
E, referindo-se ao rendimento social de inserção : “(…) conforme anteriormente referenciado, apenas o portador de uma autorização de residência, pode ser considerado como residindo legalmente em Portugal, uma vez que o estrangeiro detentor de uma autorização de permanência válida, apenas se encontra legitimado e autorizado a permanecer em território nacional, temporária e transitoriamente ao abrigo de um dos vistos acima elencados, não detendo uma situação jurídica de residente, mas de simples presença/permanência, para os fins e objectivos pelos quais o visto foi emitido”
II- Apreciação
7. O artº 15º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa estipula como princípio geral do Direito português, a equiparação ou igualdade, no tocante aos direitos e deveres conferidos a cidadãos portugueses, entre estes e os estrangeiros que se encontrem (1) ou residam em Portugal.
Não obstante, o nº 2, do mesmo preceito, possibilita a introdução, por via constitucional ou legal, de restrições ao referido princípio. Com efeito, refere o preceito em causa: “Exceptuam-se do disposto no número anterior (…) os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses”.
Parece, pois, poder concluir-se que, quer a Constituição, quer a lei ordinária, podem introduzir restrições e/ou excepções ao princípio de equiparação genericamente enunciado no artº 15º, nº 1.
A questão que, assim, desde logo, se coloca é a da existência, ou não, de limites a essa possibilidade de restrição, sobretudo, quando feita através da lei ordinária.
A tal propósito refere o Prof. Jorge Miranda (2) : “ (…) por força das normas de Direito internacional é óbvio que o princípio da equiparação de direitos se aplica a quaisquer estrangeiros, independentemente de terem título válido de permanência ou residência no País. Em segundo lugar, como cláusula geral, ele aplica-se aí onde não sejam decretadas expressamente exclusões ou restrições de direitos dos estrangeiros e estas não podem ser tais (ou tantas) que invertam o princípio(…). há que respeitar os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Só quando haja um fundamento racional pode um direito atribuído a portugueses ser negado a estrangeiros (…)”.
Na mesma esteira refere o Prof. Gomes Canotilho (3) “(…) A diferenciação entre “direitos dos portugueses” e “direitos de todos” pressupõe sempre uma justificação ou fundamento material(…)”.
Também o Tribunal Constitucional (4) se tem pronunciado em igual sentido: “(…) embora a Constituição consinta que a lei reserve certos direitos exclusivamente aos cidadãos portugueses (…), não pode obviamente fazê-lo de forma arbitrária, desnecessária ou desproporcionada, sob pena de inutilização do próprio princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas aos cidadãos portugueses”.
Assim sendo, uma primeira conclusão a retirar é a de que as excepções introduzidas constitucional ou legalmente ao princípio da equiparação estatuído no artº 15º, nº 1, da Constituição, não podem ser discricionárias ou arbitrárias, devendo radicar em um fundamento de ordem material que justifique a excepção, sendo certo que tais excepções ou restrições não devem ser de tal ordem ou em tal quantidade que invertam o princípio em si mesmo.
8. Analisado o artº 63º da Constituição, relativo à Segurança Social e Solidariedade, pode ler-se, no que respeita à delimitação do seu âmbito pessoal (nº1), que “ Todos têm direito à segurança social” .
A utilização da expressão “todos”, no âmbito constitucional, tem sido interpretada no sentido de “acentuar a universalidade do direito ou dever em causa e portanto a sua extensão aos estrangeiros” (5) . No mesmo sentido e referindo-se especificamente ao artº 63º da Constituição, escreve Jorge Miranda (6) “(…) Por força do princípio geral da equiparação consagrado no artigo 15º, nº 1, o direito à segurança social não tem em vista apenas os cidadãos portugueses, abrangendo ainda prima facie os estrangeiros e os apátridas “que se encontrem ou residam em Portugal”.
Verifica-se, assim, que a Lei Fundamental não quis lançar mão, no que à segurança social diz respeito, da possibilidade de restrição ou exclusão conferida pelo artº 15º, nº 2. Tal facto reforça consideravelmente a ideia de que a eventual introdução de restrições ou excepções, por via legal, ao princípio da equiparação de direitos entre nacionais e estrangeiros que residam ou se encontrem em Portugal, no que à segurança social diz respeito, terá que radicar em sérias razões de ordem material capazes de a justificar.
Ou, dito de outro modo, resulta duplamente claro ( artºs 15º, nº 1 e 63º, nº 1) que o legislador constitucional quis equiparar para efeitos de segurança social aos cidadãos nacionais os cidadãos estrangeiros que residam ou se encontrem em Portugal.
Aliás, vários dos tratados internacionais de que Portugal é parte outorgante expressam essa ideia de universalidade, especialmente quando se referem à protecção social conferida a crianças, como será o caso do abono de família.
Veja-se, a título de exemplo, o artº 10º nº 3, do “ Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais” (7) , no qual se lê: “Medidas especiais de protecção e de assistência devem ser tomadas em benefício de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação alguma derivada de razões de paternidade ou outras (…)” .
No mesmo sentido e reforçando o princípio da não discriminação na aplicação da lei em função da raça ou nacionalidade, referem os artºs 24º, nº1, e 26º, do “Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos” : “Qualquer criança, sem nenhuma discriminação de raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, propriedade ou nascimento, tem direito, da parte da sua família, da sociedade e do Estado, às medidas de protecção que exija a sua condição de menor”. “Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação, a igual protecção da lei. A este respeito, a lei deve proibir todas as discriminações e garantir a todas as pessoas protecção igual e eficaz contra toda a espécie de discriminação, nomeadamente, por motivos de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de propriedade, de nascimento ou de qualquer outra situação.”
Veja-se, ainda, o disposto na “Convenção sobre os Direitos da Criança” (8) , respectivamente, no artigo 2º :
“1- Os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a garantir os direitos previstos na presente Convenção a todas as crianças que se encontrem sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua (…) ou outra da criança, de seus pais ou representantes legais, ou da sua origem nacional (…)”
2- Os Estados Partes tomam todas as medidas para que a criança seja efectivamente protegida contra todas as formas de discriminação (…)” |
E no artigo 26º:
“1- Os Estados Partes reconhecem à criança o direito de beneficiar da segurança social e tomam todas as medidas necessárias para assegurar a plena realização deste direito, nos termos da sua legislação nacional.
2- As prestações, se a elas houver lugar, devem ser atribuídas tendo em conta os recursos e a situação da criança e das pessoas responsáveis pela sua manutenção, assim como qualquer outra consideração relativa ao pedido de prestação feito pela criança ou em seu nome”. |
De todo o exposto, resulta claro que as restrições ao acesso de estrangeiros à segurança social introduzidas por via legislativa – sobretudo quando estejam em causa prestações que visem a protecção de menores -, terão que ser devidamente ponderadas e avaliadas a essa luz.
9. Posto isto, vejamos o que decidiu o legislador ordinário a tal propósito.
A Lei nº 32/2002, de 20/12 (Lei de Bases do Sistema de Segurança Social), estatui, no seu artº 8º o Princípio da Igualdade, o qual define como consistindo na “ não discriminação dos beneficiários, designadamente em razão da nacionalidade, sem prejuízo, quanto a esta das condições de residência e de reciprocidade” (9) . |
Daqui resulta, desde logo, que o legislador ordinário, embora erigindo como princípio geral a não discriminação dos estrangeiros no que à segurança social diz respeito, não deixou de, aproveitando a possibilidade conferida pelo artº 15º, nº 2, da Constituição, abrir a porta à introdução de excepções ou restrições ao princípio da equiparação/igualdade entre nacionais e estrangeiros, desde que fundadas em condições de residência ou reciprocidade.
Nessa esteira, o artº 64º, nº 1, do mesmo diploma, define como condição de acesso às prestações que integram o subsistema de protecção familiar a “residência em território nacional”, sendo que, nos termos do artº 65º, essa condição poderá ser agravada pela estipulação de períodos mínimos de residência em Portugal.
Do mesmo modo, mas invertendo já o próprio princípio de equiparação, o artº 52º, nº 1, determina, no tocante ao subsistema de solidariedade, que: “O subsistema de solidariedade abrange os cidadãos nacionais, podendo ser tornado extensivo, nas condições estabelecidas na lei, a refugiados, apátridas e estrangeiros com residência em Portugal”.
Verifica-se, assim, que a Lei de Bases da Segurança Social, fazendo uso da possibilidade de restrição ao princípio da equiparação conferida pelo artº 15º, nº 2, da Constituição, abre a porta a que as leis que regulam as prestações sociais, que integram os subsistemas de solidariedade de protecção familiar, possam condicionar o acesso a tais prestações à residência em território nacional.
10. O Decreto-Lei nº 176/2003, de 02/08 – que define e regulamenta a protecção na eventualidade de encargos familiares no âmbito do subsistema de protecção familiar -, determina como condição de atribuição das prestações nele previstas ( abono de família para crianças e jovens e subsídio de funeral ) que o titular do direito seja residente em território nacional ou se encontre em situação equiparada, nos termos do artº 7º.
Define o artº 7º,nº1, alínea b), do mesmo diploma, que é considerado residente o cidadão estrangeiro, refugiado ou apátrida habilitado com título válido de autorização de residência em território nacional, referindo o nº 3, do mesmo preceito que se consideram equiparados a residentes os cidadãos estrangeiros, refugiados ou apátridas portadores de vistos de trabalho ou de título de protecção temporária válidos (10) .
Por seu lado, a Lei nº 13/2003, de 21/05 , que institui o rendimento social de inserção (prestação incluída no subsistema de solidariedade), estabelece no seu artº 6º, nº1, alínea a), que a atribuição do direito em causa depende do requerente possuir residência legal em Portugal.
Verifica-se, pois, que ambos os diplomas, utilizando a possibilidade que lhes é dada na Lei de Bases, fazem depender a atribuição das prestações em causa da residência em território nacional.
11. Importa, no entanto, analisar o conceito de residência a ter em conta para o presente efeito. Na verdade, o cerne do problema parece residir na análise de qual o conceito de residência (mais restritivo ou mais abrangente) que – tendo em conta os interesses em ponderação e, sobretudo, os preceitos constitucionais e as considerações que a tal respeito foram feitas supra – deve, ou deveria, ter sido adoptado pelo legislador e/ou pelo intérprete.
O Decreto-Lei nº 176/2003, de 02/08, recorreu ao conceito de residente – extremamente restrito, refira-se – constante do artº 3º, do Decreto-Lei nº 244/98, de 08/08, considerando como residentes apenas os estrangeiros detentores de autorização de residência e como equiparados os cidadãos estrangeiros, refugiados ou apátridas portadores de visto de trabalho ou de título de protecção temporária válidos.
Aderindo a tal concepção, o Instituto da Segurança Social defendeu a sua aplicação também ao rendimento social de inserção, considerando que o conceito de residência legal a ter em conta para efeitos do artº 6º, nº 1, alínea a), da Lei nº 13/2003, de 21/05, será, também, o constante do artº 3º, do Decreto-Lei nº 244/98, de 08/08, supra mencionado.
12. Do encadeamento legal, formulado em termos hierárquicos, que acima enunciei (Constituição, Lei de Bases e diplomas regulamentadores da Lei de Bases) resulta uma tendência crescente no sentido de restringir a plena equiparação entre estrangeiros e nacionais no que ao direito à Segurança Social diz respeito. Será, pois, de questionar se essa tendência restritiva adoptada pela Lei de Bases em face da Lei Fundamental e agravada pelos diplomas reguladores em apreço e pelas Orientações Técnicas emanadas da Direcção-Geral da Segurança Social, da Família e da Criança, respeita, ou não, o espírito que preside à estatuição do princípio da equiparação constitucionalmente consagrado nos artigos 15º, nº 1 e nº 2 e 63º.
Com efeito, a Lei Fundamental, embora possibilitando a restrição, com base na residência, do princípio da equiparação constante do artº 15º, nº 1, não deixa de o erigir como princípio base – a ser adoptado e respeitado pela lei ordinária -, reforçando-o, no que se refere à Segurança Social, no artº 63º.
Neste contexto, a noção de residência a ser adoptada pela lei ordinária no tocante ao acesso às prestações sociais, não deverá ser demasiado restritiva como o é a constante do artº 3º, do Decreto-Lei nº 244/98, de 08/08, porquanto, a sê-lo, porá, necessariamente em causa o princípio base da equiparação que a lei fundamental entendeu estatuir e preservar.
Por imperativo constitucional e seguindo o espírito manifestamente abrangente que a Lei Fundamental quis conferir ao princípio da equiparação no que ao direito à Segurança Social se refere, será forçoso concluir que a noção de residência a adoptar pelo legislador ordinário e pelo intérprete terá que seguir essa linha de abrangência, deixando de fora, apenas, as situações que excepcionalmente o justifiquem.
Importar para o âmbito da Segurança Social ( maxime como requisito de acesso às prestações sociais em análise) o conceito restrito de residência do artº 3º, do Decreto-Lei nº 244/98, de 08/08 – que, relembre-se, considera residentes apenas os detentores de uma Autorização de Residência -, equivale a inverter de forma intolerável e injustificada o princípio da equiparação consagrado constitucionalmente. Recorde-se, aliás, que a Constituição nem sequer se limita a falar em estrangeiros residentes em Portugal, referindo expressamente os estrangeiros que aqui “se encontrem” , e indicando, mais adiante, no artº 63º que “ Todos têm direito à segurança social”.
Acresce que o legislador adoptou para efeitos fiscais (11) , um conceito extremamente lato de residente (artº16º do Código do IRS). Com efeito, e para além dos demais casos enunciados ao longo do preceito, o artº 16º, do CIRS qualifica como residentes em território português (e como tal, sujeitos a incidência fiscal), as pessoas que, no ano a que respeitem os rendimentos, aqui hajam permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados.
Verifica-se, pois, que o legislador, quando definiu o âmbito pessoal de incidência fiscal, nenhuma relevância deu à nacionalidade do sujeito ou sequer à existência de título que o habilite a permanecer legalmente em Portugal. Bastou-se, para efeitos de arrecadar receitas, com a permanência daquela pessoa em território nacional por um período de tempo que nem sequer é especialmente significativo ou indiciador de uma especial ligação a Portugal.
Mal se entende, assim, que para arrecadar receitas oriundas da actividade profissional dos sujeitos estrangeiros os considere residentes desde que cá permaneçam 183 dias, e, para lhes conferir protecção social adequada restrinja, injustificadamente, o conceito de residente aos portadores de autorização de residência.
A injustiça de tal disparidade torna-se ainda mais evidente se tivermos em conta que os subsistemas de solidariedade e de protecção familiar (regimes não contributivos) da segurança social são também financiados pelo orçamento geral do Estado e, consequentemente, pelos contribuintes em geral, nos quais se incluem os estrangeiros que aqui trabalham e pagam os seus impostos. Será, pois, extremamente injusto que esses mesmos contribuintes, se vejam depois, impedidos de aceder aos benefícios sociais em causa, para cujo financiamento contribuíram em igualdade com os nacionais e estrangeiros portadores de autorização de residência.
13. Nesta perspectiva, e em busca da sempre visada interpretação da lei conforme à constituição, será necessário interpretar de forma mais lata o conceito de residência constante dos preceitos em causa [artº 10º e 7º, nº 1, b), do Decreto-Lei nº 176/2003, de 02/08 e artº 6º, nº 1, a) da Lei nº 13/2003, de 21/05] ou mesmo proceder à respectiva reformulação, por forma a tornar clara a sua maior abrangência, nomeadamente no que se refere aos portadores de Autorizações de Permanência.
14. A figura jurídica da Autorização de Permanência (12) “(…) foi lançada na ordem jurídica nacional com o objectivo de favorecer o equilíbrio entre o fluxo migratório e a capacidade de integração dos imigrantes na sociedade portuguesa, ligando aquele, de uma forma bem vincada, à capacidade que o mercado de trabalho tenha de absorver a mão-de-obra estrangeira” (13) , sendo de destacar as palavras do então Ministro da Administração Interna, Fernando Gomes, durante a discussão da generalidade da proposta de lei do Governo (nº 35/VIII) apresentada à Assembleia da República : “É por isso necessário encontrar um equilíbrio entre o fluxo e a capacidade de integração, que se deve reger por três princípios básicos: ser implacável na luta contra o trabalho clandestino, ser rigoroso no controlo de fronteiras e ser humanitário no que respeita à integração daqueles que, por via legal, se pretendem radicar em Portugal (…)” (14)
Resulta claro que a criação da figura da Autorização de Permanência, para além dos reconhecidos objectivos de regularização da situação dos imigrantes que ilegalmente se encontravam a trabalhar em território nacional, visou a sua plena integração , sendo inquestionável que se tratava de estrangeiros que pretendiam radicar-se em Portugal.
Assim sendo – não obstante a revogação de que foi alvo, por força do artº 20º, do Decreto-Lei nº 34/2003, de 25/02 – estabelecia o artº 55º, do Decreto-Lei nº 244/98, de 08/08, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 4/2001, de 10/01, a possibilidade de virem a ser concedidas autorizações de permanência aos não nacionais, que, não sendo titulares de visto adequado, reunissem as condições elencadas no citado preceito, com particular destaque para a existência de relação laboral subordinada.
Ainda de acordo com a disposição em apreço, a autorização de permanência era concedida até um ano, “prorrogável por iguais períodos, não podendo o período total de permanência no País exceder os cinco anos, a contar da data da concessão da primeira autorização”. Findos esses cinco anos, estabelecia-se um fundamento legal para dispensa de visto prévio à concessão de autorização de residência.
Traçado, nos moldes que antecedem, o essencial do regime jurídico da autorização de permanência, importa agora analisar os principais aspectos enformadores do mesmo, que considero reveladores da possibilidade da sua equiparação, para os efeitos previstos nos preceitos sub judice (acesso a prestações de protecção familiar e de solidariedade), à titularidade de autorização de residência.
A medida adoptada em 2001 pelo governo português teve em vista, como já se referiu, a regularização de um elevado número de cidadãos estrangeiros que, há já alguns anos residentes de facto em Portugal, aqui se encontravam, até então, em situação ilegal.
Consubstanciou-se , por isso, a iniciativa então assumida, na tentativa de criação de uma figura que, de alguma forma, viesse a reconhecer, de modo próprio, a permanência daqueles cidadãos em território nacional, aproximando-a, tendencialmente, à situação em que material e legalmente já se encontravam os não nacionais que beneficiavam de autorização de residência.
Aproximação essa desde logo patente na possibilidade de prorrogação do título em causa por uma período máximo de cinco anos, revelador do seu carácter tendencialmente mais estável, porquanto assente na regularização de situação fáctica já existente, embora no pressuposto da manutenção da mesma, designadamente no que à ocupação laboral diz respeito.
Nesse sentido, refira-se, ainda, em abono da equiparação que se defende, o facto de o artº 87º, nº 1, alínea m), do Decreto-Lei nº 244/98, de 08/08, possibilitar aos cidadãos estrangeiros a apresentação de pedido de concessão de autorização de residência, com dispensa de visto, desde que aqueles tenham sido, de forma ininterrupta, titulares de autorização de permanência durante cinco anos.
Decorre, assim, do enquadramento jurídico levado a cabo nos termos que antecedem, não ser adequado aos fins prosseguidos pelas normas em causa a não equiparação, para os presentes efeitos, da titularidade de autorização de permanência à posse de autorização de residência.
Entendo, pois, que a referência à figura da autorização de residência feita no artº 7º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 176/2003, de 02/08 – e indevidamente importada pelos Serviços da Segurança Social para condicionar o acesso ao rendimento social de inserção, através de uma interpretação restritiva do artº 6º, nº 1, alínea a), da Lei nº 13/2003, de 21/05 – mais do que à forma, pretenderá dirigir-se a um conteúdo, qual seja o da titulação regular da estadia, com carácter de estabilidade, de determinado cidadão estrangeiro.
A proximidade material entre a autorização de residência e a autorização de permanência é ainda mais visível se atentarmos na natureza também não definitiva de algumas autorizações de residência, designadamente as concedidas temporariamente (artº 83º, do Decreto-Lei nº 244/98., de 08/08).
De frisar, ainda, a circunstância da autorização de permanência ser, não escassas vezes, o título formal de regularização de situações de integração profissional bastante arreigadas e estabilizadas. Tais cidadãos são objecto de deveres para com o Estado em tudo iguais, não só aos portadores de autorizações de residência , como até aos próprios cidadãos nacionais, trabalhando legalmente em Portugal, pagando as correspondentes contribuições à Segurança Social e liquidando os seus impostos.
Recorde-se, a tal propósito, que nos reportamos a cidadãos estrangeiros que, embora irregularmente, se encontram radicados em Portugal, pelo menos , desde Novembro de 2001 (Cft. Resolução do Conselho de Ministros nº 164/2001, de 30/11).
Admitindo o Estado a regularização, por via da concessão dos títulos em causa (autorizações de permanência), haverá que obter a máxima concordância de estatutos jurídicos com os dos estrangeiros residentes, abdicando de introduzir limitações onde a configuração jurídica do título não o exija.
Face ao que antecede, é forçoso concluir que a exclusão dos detentores de autorizações de permanência do âmbito de aplicação pessoal das normas em análise não radica em razões de ordem material, mas sim de ordem meramente formal, o que, tendo em conta tudo o que acima ficou dito, para além de injustificado e injusto, contraria frontalmente a Lei Fundamental.
O artº 7º, nº1, alínea b) e/ou o nº 3, do Decreto-Lei nº 176/2003, de 02/08 e o artº 6º, nº 1, alínea a), da Lei nº 13/2003, de 21/05, devem, assim, ser interpretados ou, sendo caso disso, alterados, por forma a neles caberem também as situações respeitantes aos cidadãos estrangeiros detentores de autorizações de permanência válidas (ou detentores de recibo emitido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do requerimento de renovação ou prorrogação desse título), pois de outra forma se estará a perpetrar uma infundada discriminação contra os mesmos.
Pela mesma ordem de razões, deverão, de igual modo, ser abrangidos na definição do âmbito pessoal de tais diplomas, os portadores de quaisquer outros títulos de permanência em território nacional que, pelas características que legalmente assumem, confiram aos seus portadores uma situação que materialmente se aproxime das dos nacionais ou estrangeiros portadores de autorizações de residência ou permanência.
Penso, designadamente, nos títulos que permitam aos seus portadores a possibilidade de trabalharem em Portugal e, como tal, pressuponham um significativo grau de estabilidade e integração no nosso País, como será o caso do visto de trabalho e, em certos casos legalmente definidos, dos vistos de estada temporária e de estudo.
Em face do exposto, e ao abrigo do artº 20º, nº 1, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO a Vossa Excelência que:
a) Providencie pela emissão da competente Orientação Técnica que – revogando o entendimento sobre a matéria versado nas Orientações Técnicas da Direcção-Geral da Segurança Social, da Família e da Criança nºs 6/2003 e nº 2/2005 -, determine a interpretação alargada do conceito de residente constante dos artigos 7º, nº 1, alínea b) e nº 3 e artigo 10º, do Decreto-Lei nº 176/2003, de 2 de Agosto, bem como do artigo 6º, nº 1, alínea a), da Lei nº 13/2003, de 21 de Maio, por forma a que sejam abrangidos por tais diplomas e, por conseguinte, possam aceder às prestações sociais neles reguladas, os detentores de autorizações de permanência válidas (ou detentores de recibo emitido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do requerimento de renovação ou prorrogação desse título);
b) Caso não se entenda possível o recomendado em a), promova a alteração legislativa que modifique o conceito de residente, ou equiparado, constante dos artigos 7º, nº 1, alínea b) e nº 3 e artigo 10º, do Decreto-Lei nº 176/2003, de 2 de Agosto, bem como do artigo 6º, nº 1, alínea a), da Lei nº 13/2003, de 21 de Maio, por forma a que sejam abrangidos por tais diplomas e, por conseguinte, possam aceder às prestações sociais neles reguladas, os detentores de autorizações de permanência válidas (ou detentores de recibo emitido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do requerimento de renovação ou prorrogação desse título);
c) De igual modo sejam incluídos (por uma ou outra via) no âmbito pessoal de tais diplomas, os estrangeiros habilitados com quaisquer outros títulos de permanência em território nacional que, pelas características que legalmente assumem, confiram aos seus portadores uma situação que materialmente se aproxime das dos nacionais ou estrangeiros portadores de autorizações de residência ou permanência, designadamente, os títulos que permitam aos seus portadores a possibilidade de trabalharem em Portugal, como será o caso do visto de trabalho e, em certos casos legalmente definidos, dos vistos de estada temporária e de estudo (vd. artigos 35º, nº 2 e 38º, nº 2, do Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto, com a redacção que lhes foi dada, respectivamente, pela Lei nº 97/99, de 26 de Julho e pelo Decreto-Lei nº 34/2003, de 25 de Fevereiro, este último regulamentado pelo artigo 36º do Decreto Regulamentar nº 6/2004 de 26 de Abril). |
Queira Vossa Excelência, em cumprimento do dever consagrado no artº 38º, nº 2, da Lei nº 9/91, de 9/04 (Estatuto do Provedor de Justiça), dignar-se informar sobre a sequência que o assunto venha a merecer.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues
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