RECOMENDAÇÃO N.º 5/A/2005
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal do Barreiro
Procº: R-4454/03
Data: 2005/10/28
Área: A2


Assunto: A questão genérica da prescrição de créditos por fornecimento de água. O caso concreto de XXX.


 


I
– Enunciado –


1. Encontra-se pendente na Provedoria de Justiça processo instaurado com base em queixa do munícipe acima identificado e que tem por objecto a análise da posição da Câmara Municipal do Barreiro que está na base de tal queixa: o entendimento de que os créditos emergentes de consumos efectuados no âmbito da prestação do serviço de fornecimento de água prescrevem no prazo de cinco anos, previsto na alínea g) do art.º 310.º do Código Civil.


2. Para facilidade de exposição, começarei por efectuar uma breve cronologia das principais vicissitudes do processo:






a) Em Maio de 2002, a Câmara Municipal do Barreiro procedeu ao envio de avisos para pagamento de facturas/recibos de consumos de água emitidos em 1993, 1994, 1998, 2000 e 2002, com advertência de que a falta de pagamento implicaria a instauração de processo de execução fiscal;


b) Em 3 de Junho de 2003, após proceder ao pagamento das facturas referentes a 1993, 1994, 1998 e 2002, o munícipe reclamante, invocando o decurso do prazo prescricional previsto no n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, recusou o pagamento das facturas de 2000 e requereu a devolução do montante já pago à Autarquia;


c) Do mesmo passo, o queixoso informou o Centro de Informação Autárquico ao Consumidor (CIAC) do procedimento tomado pela Câmara Municipal do Barreiro;


d) Em 11 de Março de 2003, chamando a atenção para a existência de várias reclamações com idêntico objecto – de acordo com os elementos recolhidos pela Provedoria de Justiça foram em número de quarenta e cinco as reclamações telefónicas e escritas ali apresentadas em 2002 – o CIAC considerou o procedimento da Autarquia contrário ao disposto no n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, e exortou à recolha dos processos relativos a créditos prescritos, bem como à devolução das quantias já pagas;


e) Em 27 de Outubro de 2003, o munícipe queixoso transmitiu ao CIAC que a Câmara Municipal voltara a reclamar o pagamento das facturas/recibos de 2000;


f) Novamente interpelado nos dias 3, 11 e 17 de Novembro de 2003, o munícipe reclamante acedeu à pretensão da Autarquia, procedendo ao pagamento das facturas emitidas em 2000;


g) Instada a pronunciar-se sobre a situação objecto de queixa, essa Autarquia comunicou a este órgão do Estado que, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, tem seis meses para exercer o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado, o que significa que, decorrido tal prazo, prescreve o direito de exigir tal pagamento, mas não a dívida em si, a qual prescreve no prazo de cinco anos, previsto na alínea g) do art.º 310.º do Código Civil;


h) Por outro lado, foi ainda salientado que a Câmara Municipal tem dado cumprimento integral ao estatuído no citado n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, já que procede sempre à entrega das facturas nos seis meses que se seguem à prestação do serviço;


i) Reconhecendo-se, porém, que, mesmo considerando o prazo fixado na alínea g) do art.º 310.º do Código Civil (cinco anos), os créditos consubstanciados nas facturas de 1993 e 1994 haviam já prescrito em 2002, foi o reclamante reembolsado desses quantitativos.


II
– Apreciação –


3. De tudo quanto se descreveu, inequivocamente advém que a questão central a tratar prende-se com a interpretação a dar ao normativamente disposto no n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, diploma que veio criar mecanismos de protecção do utente de serviços públicos essenciais.


4. Com efeito, não subsistindo qualquer dúvida de que os contratos para fornecimento de água estão submetidos à disciplina da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, cabe verificar se, como tem vindo a ser sustentado por V. Ex.as, o prazo de prescrição aplicável aos créditos deles emergentes é o previsto na alínea g) do art.º 310.º do Código Civil (cinco anos) ou, como vem defendendo o queixoso e o CIAC, o estabelecido no n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (seis meses).


5. Ora, pela importância que tais contributos encerram, começo por salientar que a questão colocada tem sido frequentemente apreciada nos planos doutrinário e jurisprudêncial, onde correntemente se tem concluído no sentido de que, com a entrada em vigor da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, a prescrição como facto extintivo de obrigação que o utente do serviço público essencial haja assumido já não carece do decurso do prazo de cinco anos do art.º 310.º do Código Civil, bastando-se com os seis meses estabelecidos no n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.


6. Por outras palavras, dir-se-á que, para conferir um maior grau de protecção ao utente do serviço, o sistema jurídico deixou de aplicar a estas situações o prazo consagrado no Código Civil, que passaram a reger-se pelo n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.


7. Ora, tudo sopesado, também creio ser esta a via que mais adequadamente se compagina com o escopo da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, com a qual indubitavelmente se pretendeu não só salvaguardar o utente das entidades com as quais se vê obrigado a contratar, mas também a defendê-lo de si próprio relativamente à possibilidade de sobreendividamento por consumo de bens que visam a satisfação de necessidades primárias, básicas e essenciais dos cidadãos.


8. Na verdade, reclamando a especial natureza dos serviços em causa a adopção de soluções que, de modo eficaz, permitam prevenir e impedir um excessivo avolumar de pagamentos, que o utente não raras vezes encontrará dificuldade em regularizar, foi entendido impor ao respectivo prestador, in casu do serviço público essencial previsto no art.º 1.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 23/96, a obrigação de exercer o seu direito de crédito no prazo de seis meses, contado a partir do momento em que o possa fazer, ou seja, do termo de cada período da relação mensal obrigacional duradoura e de execução continuada.


9. Por outro lado, cabe igualmente dizer que, para ter por exercido o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado, a que se reporta o n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 23/96, não basta ao prestador do serviço proceder à emissão e entrega da factura/recibo no prazo de seis meses ali fixado, já que tal interpelação, não suspendendo nem interrompendo o prazo de prescrição, apenas releva para efeitos de determinação do momento da constituição do utente em mora, nos termos do art. 805.º do Código Civil.


10. É que, como foi já solidamente sustentado pelo Prof. Calvão da Silva em anotação a Acórdão da Relação do Porto de 28 de Junho de 1999 ( in RLJ, Ano 132.º, págs. 135 e segs.), em clara oposição ao defendido pela Câmara Municipal do Barreiro, “não pode pensar-se que o n.º 1 do art. 10.º da Lei n.º 23/96 valha (só) para a liquidação da dívida, enquanto para o crédito assim apurado ou liquidado se continuaria a aplicar a al. g) do art. 310.º do Código Civil”.


11. Com efeito, conforme salienta o mesmo autor, “semelhante interpretação não tem fundamento válido, consistente, constituiria um non-sense e seria mesmo contra-legem.” (1) .


12. É, pois, manifesto que a norma sob apreciação operou uma redução substancial do prazo de prescrição dos créditos periódicos provenientes da prestação de serviços públicos essenciais, como o é o serviço de fornecimento de água, cujo decurso, em razão da natureza extintiva ou liberatória da prescrição (2) , confere ao utente a possibilidade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, de qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.


13. Com efeito, tendo por objectivo sancionar a indiferença e a inércia do credor em fazer prevalecer ou exigir o seu direito, a prescrição extintiva semestral converte a obrigação civil em obrigação natural.


14. A conclusão a que chego, em boa medida plasmada nas decisões judiciais e no estudo a que me referi, é a de que, com a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, o legislador quis estabelecer um prazo prescricional novo e mais curto do que o previsto no Código Civil, dentro do qual cumpre à entidade gestora não só proceder à apresentação da factura como, não sendo voluntariamente paga a obrigação pecuniária, praticar qualquer acto com eficácia suspensiva ou interruptiva do decurso do prazo de prescrição, como seja “a citação ou notificação judicial [sublinhado meu] de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito” (cfr. artigo 323º, n.º 1, do Código Civil)


Pelas motivações expostas, e ao abrigo da disposição compreendida no art.º 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo a V. Ex.ª que:






a) reconheça que o n.º 1, do art.º 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, veio estabelecer a prescrição extintiva semestral dos créditos periódicos por prestação de serviços públicos essenciais e que a suspensão ou interrupção de tal prazo prescricional apenas ocorre com a verificação de algum dos factos a que a lei civil confere eficácia suspensiva ou interruptiva da prescrição (cfr. artigos 318º e seguintes do Código Civil).


b) à luz desta interpretação, e usando do mesmo critério que presidiu à devolução do valor referente às facturas/recibos de 1993 e 1994, ordene a restituição dos valores pagos pelo utente reclamante relativamente aos anos de 1998 e 2000.


Solicito a V. Ex.a que, em cumprimento do dever consagrado no art.º 38.º, n.º 2, do Estatuto aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, se digne informar sobre a sequência que o assunto venha a merecer.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 





Notas de rodapé
:


(1) Também no sentido de que com a entrada em vigor da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, os créditos resultantes da prestação de serviços públicos essenciais passaram a prescrever no prazo de seis meses, cfr., entre outros, Acórdão da Relação do Porto, de 20.03.2000, in Colectânea de Jurisprudência, 2000, Tomo II, pág. 207, Acórdão da Relação de Évora, de 15.03.2001, in Colectânea de Jurisprudência, 2001, Tomo II, pág. 250, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.10.2001 e de 10.12.2003, in, respectivamente, apêndice ao D.R. de 13.10.2003 e 17.09.2004, e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 06.12.2001 e 05.06.2003, in, respectivamente, Colectânea de Jurisprudência, 2001, Tomo III, pág. 133, e em www.dgsi.pt/jstj.nsf/9…/.
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(2) A natureza extintiva ou liberatória da prescrição é também amplamente sufragada nos elementos doutrinais e jurisprudênciais atrás elencados.
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