RECOMENDAÇÃO N.º 3/A/04
a) Delimitação preliminar 1. Tendo presente o teor da comunicação de V.Ex.a., com as referências assinaladas ao alto, e assim cumprido o dever de audição prévia, enunciado no art. 34º da Lei nº9/91, de 9 de Abril, entendo encontrar-me em condições de tomar posição a respeito da legalidade do aviso de abertura publicado no Diário da República, III Série, nº244, de 21 de Outubro p.p., pelo qual se determina a abertura de concurso interno geral para provimento do lugar de Chefe da Divisão Municipal de Planeamento, Urbanismo e Habitação. 2. A questão central está em saber qual a margem de livre apreciação de que dispõe o órgão competente, quando, nos termos do disposto no art. 14º, nº2, do Decreto-lei nº514/99, de 24 de Novembro, determina a abertura de um concurso para provimento de um lugar em cargo dirigente, para concretizar o que a lei prevê como licenciatura adequada. 3. Com efeito, no referido aviso de abertura limita-se o concurso aos candidatos licenciados em Engenharia Civil ou em Direito, o que leva este Órgão do Estado a interrogar-se acerca da legalidade na exclusão de outras licenciaturas em estreita afinidade com o conteúdo funcional do cargo e com as competências do órgão. 4. O Senhor Presidente, na resposta que me endereçou e em que suscita escusa para não intervir em procedimento relativo a esta questão, procura justificar a delimitação operada com base nas seguintes motivações:
5. O regulamento interno que procedeu à reestruturação dos serviços e alterou o quadro de pessoal e o organograma da Câmara Municipal de Castelo de Paiva(1) enuncia no art. 10º as competências comuns do pessoal dirigente sem que valha a pena proceder à sua análise, pois para este campo importa apenas a licenciatura. 6. A adequação reporta-se ao lugar, em concreto, de modo que as licenciaturas adequadas à direcção do Gabinete de Informática não são certamente as mesmas que se perfilam para a Divisão de Obras Municipais. 7. Como tal, importa fundamentalmente atender ao disposto no art. 30º, onde, para além das competências próprias do Chefe da Divisão de Planeamento, Urbanismo e Habitação (nº3) são enunciados os serviços desta unidade (nº2), as suas tarefas (nº4 e nº5) e, em particular, da sua Secção Administrativa (nº6) e do respectivo Chefe (nº7). 8. Observa-se, pois, que a referida divisão tem funções de estudo e concepção, funções de preparação e de apoio na decisão superior e funções de execução nas atribuições municipais relativas:
9. Não podendo nem devendo o legislador prever o nexo de adequação entre cada um dos lugares para cargos dirigentes da Administração Pública e a licenciatura ou as licenciaturas mais ajustadas ao bom desempenho nas funções, cumpre ao órgão competente aplicar em concreto tal conceito indeterminado. 10. Mas interessa começar por saber qual a margem de autonomia de que dispõe para o fazer. 11. Trata-se, por conseguinte, de interpretar e aplicar o conceito impreciso de licenciatura adequada. 12. Desde logo, a adequação, exprimindo um juízo de relação entre o lugar a prover e a vasta oferta de licenciaturas, não pode deixar de cingir-se a estes dois campos. Por um lado, o da formação superior que determinada licenciatura confere. Por outro, as tarefas da divisão municipal e as competências do seu chefe. 13. Os conceitos imprecisos, a sua interpretação e aplicação não constituem um espaço de liberdade. À imagem do que se verifica com os poderes discricionários, o órgão está vinculado, não apenas pela generalidade dos pressupostos da sua decisão e pelos limites externos configurados como princípios gerais do direito administrativo, como também pelo fim. 14. É à luz do fim que o órgão há-de poder encontrar as chamadas zonas de certeza na aplicação do conceito: zonas de certeza positiva (as licenciaturas manifestamente adequadas) e zonas de certeza negativa (as licenciaturas manifestamente inadequadas). 15. Ora, o fim, como parece bem de ver, é o de aproximar – o mais possível – o universo das tarefas públicas e a formação superior do candidato, de sorte que a escolha a efectuar na classificação dos concorrentes recaia, com maior probabilidade, em alguém que domine – o mais possível – os conhecimentos técnicos e científicos necessários ao bom desempenho das funções. 16. O que se trata, pois, no caso concretamente descrito, é saber se o órgão ao limitar a escolha às licenciaturas em Engenharia Civil e em Direito não terá arbitrariamente afastado outras licenciaturas, pelo menos tão adequadas quanto estas duas. Por outras palavras, outras licenciaturas cujo campo curricular de formação científica e técnica se encontre ainda na zona de certeza positiva da adequação, já de acordo com a delimitação operada. 17. Na citada resposta, de 2 de Março p.p., é explicada a adequação daquelas duas licenciaturas, mas jamais é explicada a razão por que se consideraram apenas estas duas como as únicas licenciaturas adequadas. 18. Não se trata, pois, de indagar acerca de toda e qualquer licenciatura (em Filosofia ou em Línguas e Literaturas Modernas, em Matemática ou em Medicina Veterinária) mas, sim, das licenciaturas que habilitam a uma formação vocacionada para o Planeamento, Urbanismo e Habitação, do ponto de vista da intervenção municipal. 19. Com elevada plausibilidade, poderiam referenciar-se todas as licenciaturas vocacionadas para ramos do saber científico que têm como objecto, quantitativa ou qualitativamente, o espaço, o território, o seu uso e gestão, e em particular, o espaço urbano, a qualidade de vida urbana, a segurança, salubridade e estética das edificações urbanas. 20. Sem maiores cuidados de aprofundamento, as licenciaturas em Arquitectura, em Arquitectura Paisagista, em Urbanismo, em Geografia ou em Engenharia Geográfica parecem seguramente posicionadas entre a Engenharia Civil e o Direito. 21. No que toca especificamente à licenciatura em Arquitectura, parece recortar-se de modo muito claro a sua afinidade com a área em questão, bastando ter presente o que o Decreto-Lei nº176/98, de 3 de Julho, definiu como actos próprios da profissão de arquitecto, no seu art. 42º, nº3:
22. E esta afinidade tem lugar tanto em relação à área de recrutamento, como especificamente no que concerne à licenciatura em Engenharia Civil, uma vez que por se manter ainda em vigor o Decreto nº73/73, de 28 de Fevereiro, há vastas zonas comuns da actividade profissional de engenheiros civis e arquitectos. 23. Mas mais ainda. A Resolução da Assembleia da República nº52/2003, de 22 de Maio(2) chama a atenção do Governo para o teor da Directiva nº85/384/CEE, do Conselho, de 10 de Junho de 1985, o que obriga ao levantamento das actuais restrições sobre os actos próprios da profissão de arquitecto. 24. Ora, boa parte das iniciativas municipais ou privadas, dos projectos, das obras e das infra-estruturas que passam pela actividade da D.P.U.H., desde o planeamento urbanístico à reabilitação urbana, da habitação social às operações de loteamento, passarão por actos próprios da arquitectura. 25. De resto, já o Decreto-Lei nº205/88, de 16 de Junho, determina a intervenção obrigatória de arquitecto para certas operações urbanísticas (obras a executar em imóveis classificados, em vias de classificação e no perímetro das suas zonas de protecção). 26. Se isto não significa que o Chefe de Divisão tenha de ser licenciado em Arquitectura, quer pelo menos dizer que se revela como manifesto erro de qualificação impedir todo e qualquer arquitecto de o vir a ser. 27. Por seu turno, o exame da interpretação e aplicação dos conceitos imprecisos – o controlo externo da motivação – não dispensa um teste de racionalidade, designadamente à coerência dos fundamentos que nortearam a decisão administrativa. 28. Neste campo, teremos de tomar em linha de conta que a motivação apresentada pelo município de Castelo de Paiva assenta em três ordens de considerações:
29. Poderia suscitar-se a questão de saber se todos os licenciados em Direito possuem formação em direito do urbanismo e se todos os licenciados em Engenharia Civil adquiriram na universidade conhecimentos científicos sobre todas as áreas técnicas da D.P.U.H. 30. Mas o importante parece ser, ao fim e ao cabo, se mediante a coadjuvação pelo pessoal técnico não é possível reconhecer como válida uma outra formação superior – ao nível da licenciatura – que embora generalista se revele suficiente. 31. Dir-se-ia que, de qualquer modo, algumas licenciaturas seriam mais adequadas do que outras. Todavia, e ao contrário do que possa parecer, isso não é importante. 32. Isto, porque dentro das licenciaturas adequadas, o aviso de abertura deste concurso enuncia como preferencial a licenciatura em Engenharia Civil (nº2, do aviso, na publicação oficial).
A) Dispõe o presidente da Câmara Municipal de Castelo de Paiva de certa margem de autonomia na delimitação da área de recrutamento para os lugares de cargos dirigentes, ao interpretar e aplicar o conceito de licenciatura adequada. B) Esta autonomia é porém autonomia pública, motivo por que se encontra sujeita – entre outras limitações – ao fim da norma (a extrair fundamentalmente do regulamento de organização dos serviços municipais de Castelo de Paiva) e à racionalidade interna da motivação. C) Não se reprova o nexo de adequação delineado entre as licenciaturas em Direito ou em Engenharia Civil e as necessidades a satisfazer por quem venha a ser provido como Chefe da Divisão Municipal de Planeamento, Urbanismo e Habitação. Uma e outra não se mostram na zona de certeza negativa do conceito de licenciatura adequada quando aplicado ao lugar a prover. D) Contudo, não pode deixar de ter-se como arbitrária – e ilegal, por isso – o afastamento a priori de outros licenciados com formação superior específica no conhecimento científico do espaço, do território e sua ordenação, da acção humana sobre o território, em particular, da urbanização e edificação. E) Designadamente, os actos próprios da profissão de arquitecto e a formação adquirida na licenciatura em Arquitectura mostram-se em estreita afinidade com o conjunto de tarefas e competências próprias da referida divisão municipal, não se vendo que motivo dirimente possa levar à restrição. F) Isto, tanto mais quando continua a vigorar o Decreto nº73/73, de 28 de Fevereiro, onde se permite uma zona comum de actos e tarefas às duas profissões. G) A licenciatura em Arquitectura preenche as condições para ser reconhecida na zona de certeza positiva do conceito de licenciatura adequada, quando estão em causa tarefas nos domínios do Planeamento, do Urbanismo e da Habitação e quando se reconheceram como adequadas as licenciaturas em Direito e em Engenharia Civil, vistas como outras abordagens técnicas e científicas na mesma área. H) De resto, se é de admitir que alguma licenciatura – dentro das adequadas – pode ser mais adequada do que outras, importa não perder de vista que no nº2 do aviso de abertura é estabelecida como condição preferencial a licenciatura em Engenharia Civil. I) O aviso de abertura do concurso deve ser tido como inválido no seu nº1, ao excluir sem fundamento material objectivo a licenciatura em Arquitectura da área de recrutamento. Em face do exposto, cumpre-me recomendar a V. Ex.a., para os efeitos do disposto no artigo 20º, nº1, alínea a), da Lei nº9/91, de 9 de Abril:
O Provedor de Justiça, | |||||||||
Notas de rodapé: (1) Publicado no Diário da República, II Série, nº45, (apêndice nº28), de 23.02.2000, em especial, o disposto no artigo 30º. (2) Diário da República, I Série -A, nº134, 11 de Junho de 2003. |