RECOMENDAÇÃO N.º 1/A/03
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)
Entidade visada: Presidente do Governo Regional dos Açores
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-3237/01 (Aç)
Data: 2003/01/27
Assunto: Processo de reconstrução em virtude do sismo de 9 de Julho de 1998; a aplicação do Decreto Legislativo Regional nº 15-A/98/A, de 25 de Setembro; a actuação do C.P.R.
I. INTRODUÇÃO
A questão da reconstrução das habitações permanentes que foram afectadas nas Ilhas do Faial e do Pico pelo sismo de 1998 motivou a apresentação na Extensão dos Açores da Provedoria de Justiça de diversas reclamações, em especial sobre situações verificadas durante a organização dos respectivos procedimentos administrativos. A instrução dos competentes processos foi sendo assegurada quer junto do Centro de Promoção Para a Reconstrução (adiante, somente C.P.R.) quer através do Gabinete de Vossa Excelência quer, ainda e mais recentemente, em contacto directo com o Senhor Secretário Regional da Habitação e Equipamentos (adiante, S.R.H.E.). De facto, para além do tratamento dos processos, considerados individualmente, entendeu a Provedoria de Justiça justificar-se uma abordagem mais ampla das matérias que, ao longo dos tempos, foram sendo pontualmente trazidas perante este órgão do Estado, por forma a ser possível a formulação de conclusões gerais sobre o decurso do processo de reconstrução, sobre as principais dificuldades sentidas pelos beneficiários e, finalmente, sobre a existência de aspectos merecedores de aperfeiçoamento. O Senhor Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores acedeu ao pedido da Provedoria de Justiça e promoveu uma reunião de trabalho, com o S.R.H.E., na qual foi possível passar em revista as diversas situações que têm motivado o maior número de queixas na Extensão dos Açores.
Importa verificar que, para além dos processos cuja instrução já se encontrava então concluída, foi possível notar que, a partir de meados de 2001, foi recebido um número considerável de novas queixas sobre matérias que, ainda relacionadas com o processo da reconstrução, diziam respeito ou a uma fase mais adiantada dos procedimentos (v.g., a alteração dos montantes inicialmente atribuídos ou a definição da tipologia das habitações a apoiar) ou a aspectos específicos da própria realização de obras de construção civil (v.g., os defeitos de construção). Não obstante não poder afirmar-se que o objecto das diferentes queixas era genericamente idêntico, verificava-se que era sempre reclamada, por um lado, a actuação do C.P.R. e, por outro, os termos da interpretação que era dada às disposições legais que regulavam a matéria dos apoios à reconstrução. O facto de o C.P.R. figurar como entidade visada nada tinha de estranho se se atentasse, primeiro, ao conjunto de atribuições e competências que detém naquele domínio e, depois, à circunstância de aquela Entidade assegurar a quase totalidade dos contactos com os particulares interessados. Por estas razões, as questões susceptíveis de gerar descontentamento nos processos de reconstrução – mesmo aquelas que provinham das opções consagradas nos diplomas legislativos ou que diziam respeito a entidades terceiras (v.g., empreiteiros) – acabavam sempre por conduzir a reacções negativas relativamente ao C.P.R., mesmo que aquele Organismo nada tivesse a ver com os factos reclamados. Também por esta razão, tornava-se relevante não só conhecer os traços gerais da actuação do C.P.R. como, e especialmente, esclarecer, em termos tendencialmente definitivos, a interpretação das disposições legais relevantes e o enquadramento dos beneficiários no âmbito de aplicação de determinadas normas. Foi esta, em suma, a preocupação comum às diferentes instruções.
Concluída a análise dos diversos processos, a Provedoria de Justiça entende estar, agora, em condições de extrair as principais conclusões suscitadas pela averiguação das situações inseridas na reconstrução. Sem embargo de se proceder, depois, à abordagem geral das questões julgadas pertinentes, começar-se-á por atender, circunstanciadamente, às queixas apresentadas na Extensão dos Açores da Provedoria de Justiça.
II. AS QUEIXAS
QUADRO
Processo | Questões suscitadas perante o Provedor de Justiça | Resposta / intervenção do C.P.R. | NOTAS |
R-2565/01 | 1. Após a conclusão de uma obra executada por um empreiteiro contratado pela beneficiária, foram detectadas anomalias de construção; 2. Uma vez que a obra fora fiscalizada pela SRHE pretendia-se a intervenção desta, para pressionar o empreiteiro a corrigir os erros. | 1. A escolha dos empreiteiros é da responsabilidade dos beneficiários; 2. A fiscalização dos trabalhos foi feita pela Delegação do Faial da SRHE; 3. Futuramente, nas contratações mediante consulta ou ajuste directo, o empreiteiro não irá realizar outros trabalhos para a SRHE. | Situação excluída da intervenção do Provedor de Justiça |
R-2890/01 | Existe desajustamento entre os preços orçamentados pelo CPR e os valores de mercado | – Nos casos de reabilitação, reconstrução e recuperação, o valor da comparticipação é aferido com base nas medições e orçamentos elaborados pelos gabinetes contratados pelo CPR, nos termos do art. 10º/1/als. b) e c), DLR 15/A/98/A. | Situação excluída da intervenção do Provedor de Justiça |
R-3234/01 | A área da habitação que foi apurada pelo CPR (64m2) não atendeu à ampliação (para 80,30m2) realizada antes do sismo | O CPR recebeu instruções para rever posição e informar a beneficiária que será considerada a totalidade da área e que a RAA suportará o custo do apoio | Situação resolvida |
R-3237701 | 1. A interessada dispunha de um T3 e viu ser-lhe atribuído um T1; 2. Assinou declaração apenas não inviabilizar o apoio; 3. A dependência estaria integrada na habitação | Só após a conclusão do processo, a interessada veio reclamar | Recomendação |
R-3245/01 | 1. Foi publicado um apoio em 01/06/99; 2. Depois disto, o interessado contraiu empréstimo (24/02/2000) | O CPR comunicou ao interessado (em 03/11/99) a não atribuição do apoio, pelo ofício nº 1227, CPR. | Improcedente |
R-4484/01 | 1. Foi publicado apoio de 6.157.750$00 (Port. EP/DH/99/39), que incluía apoio a dependência; 2. Depois, foi informado verbalmente da diminuição do apoio em 3.100.000$00; 3. A anulação nunca foi publicada. | 1. Verificou-se que o apoio incluía dependência; 2. A diminuição foi aceite pelo interessado (que endossou cheque a D.R. Orçamento e Tesouro); 3. Apenas posteriormente veio reclamar | Improcedente |
R-228/02 | – A interessada tem uma casa com anexo (24m2) e pergunta: 1. Há ou não o direito à reconstrução? 2. E porque não ao mesmo tempo da moradia? | – O CPR tem entendido que deve ser dada prioridade à reconstrução das habitações principais e somente depois às dependências | Improcedente |
R-720/02 | 1. Obrigatoriedade de construir com áreas / tipologias idênticas às sinistradas; 2. Nos casos de mudança de local não pode haver reconstrução; 3. O CPR obriga os sinistrados a custear os projectos. | 1. Houve impossibilidade de intervencionar a habitação sinistrada por isso tratou-se de apoio à construção de habitação nova; 2. Excepcionalmente (após pedido), foi executado projecto de T4 com área de T5; 3. A área / tipologia da habitação a construir é superior à sinistrada | Queixa improcedente |
R-757/02 | 1. A habitação foi danificada em 5% mas como está em zona de risco o interessado deve construir outra casa (terreno cedido pela RAA); 2. Como está no II escalão deve contratar empreiteiros; 3. Os valores orçamentados (T3 – 9.180.000$00) são irrealistas (+- 15.000.000$00) | Situação excluída da intervenção do Provedor de Justiça | |
R-805/02 | 1. O agregado familiar da interessada é composto por uma única pessoa; 2. A casa sinistrada tem 80m2; 3. Devido ao grau de destruição a casa tem de ser demolida e reconstruída de raiz; 4. o CPR informou que, nos termos do art.8º/2, DLR 15-A/98/A, tem direito a 70m2; 5. Depois, veio informar ter assinado declaração de concordância. | Recomendação | |
R-899/02 | 1. A habitação sinistrada tinha 104,12m2 e está em zona de risco; 2. A caderneta predial não estava actualizada (85m2); 3. O CPR informou que teria direito a T2, com 90m2, em função da composição do agregado familiar | Improcedente | |
R-3071/02 | Aguarda resposta ao ofício enviado ao CPR em 08/07/02 | Foi solicitada resposta com urgência | |
R-3074/02 | A habitação sinistrada tinha 120m2 e está em zona de risco; O CPR informou que teria direito a T3, com 106m2, em função da composição do agregado familiar; Quer ter apoio na mesma área, e ainda um anexo | Improcedente | |
R-3097/02 | 1. O interessado é emigrante mas na casa sinistrada vivia um irmão; 2. Quer apoio; 3. Relata casos semelhantes[1] que beneficiaram de apoios. | Improcedente | |
R-3266/02 | 1. O interessado tinha seguro no valor de 4.249.397$00; contudo, como tinha dívida ao Banco (2.362.200$00) só recebeu 1.953.010$00; o CPR, nos termos do art.9º, DLR 15-A/98/A, obrigou a pagar 4.249.397$00; 2. Pergunta: dimensões das casas reconstruídas (tinha 141m2 e construíram nova com 90m2) | Improcedente | |
[1] Alegadamente, pessoas que já não estavam na RAA: José Pinheiro Escobar (Rua da Praça, nº 4, Flamengos); Senhor José Ávila Faria (Rua da Praça, nº 17, Flamengos); Senhora D. Ricardina Maria Gomes Areias (Rua da Praça, nº 57, Flamengos) |
NOTA: Contém uma indicação meramente sumária dos elementos dos processos ainda em instrução na Extensão dos Açores da Provedoria de Justiça, sem qualquer preocupação de exaustividade.
III. O AGRUPAMENTO DAS SITUAÇÕES SUSCITADAS E TRAÇOS GERAIS DO REGIME JURÍDICO
Afastando-me, agora, das situações particulares versadas nos processos tratados na Provedoria de Justiça, procurarei buscar conclusões mais amplas sobre os principais motivos das queixas, as dificuldades mais vezes sentidas e, também, sobre os procedimentos que entendo deverem ser corrigidos.
§1. QUESTÃO PRÉVIA:
As medidas excepcionais de carácter financeiro adoptadas na sequência do sismo de 9 de Julho de 1998
Todas as situações aqui abordadas decorreram da aplicação do regime jurídico especialmente criado para fazer face aos efeitos do sismo que, em 9 de Julho de 1998, afectou as Ilhas do Faial, Pico e São Jorge. Como refere o proémio do Decreto Legislativo Regional nº 15-A/98/A, de 25 de Setembro (adiante, DLR nº 15-A/98/A), revelando-se a necessidade de “reconstituir o parque habitacional” destruído, foi criado um regime excepcional de apoios financeiros – consubstanciados em comparticipações a fundo perdido ou em financiamentos sob a forma de créditos reembolsáveis a taxas de juro bonificadas – para propiciar “a aquisição, construção, reconstrução, reabilitação e reparação de habitações” (artigo 3º) onde se processava a vida de cada pessoa ou agregado familiar. Este primeiro traço caracterizador do regime jurídico foi, fartas vezes, esquecido ou desconsiderado pelos interessados e, não sem alguma surpresa, veio até a ser invocado como pretensa base legal para pedidos que nenhuma ligação tinham com a intenção de reabilitar o parque habitacional destruído ou com o propósito de reconstruir as habitações permanentes. Para este esporádico desvirtuamento da ratio do regime não foram alheias, certamente, algumas dúvidas interpretativas que sempre surgiram e que tardam em ser esclarecidas.
Neste domínio, não será abusivo concluir ter o Legislador optado, inicialmente e por um lado, por uma enumeração muito ampla das situações contempladas pelos apoios e, por outro, pela utilização de fórmulas vagas e suficientemente abrangentes, talvez preocupado em não excluir, à partida, quaisquer situações que pudessem carecer de intervenção ao abrigo desta disciplina especial. Neste aspecto particular, é suficientemente ilustrativo o caso das dependências, expressamente incluídas no objecto do diploma referido através do artigo 1º, e definidas, na alínea e) do artigo 2º, como “todo e qualquer espaço ou edificação complementar à habitação, onde se incluem garagens, atafonas, arrecadações, adegas ou outros necessários à reposição da normalidade da actividade agrícola ou vitivinícola“. De facto, as expressões utilizadas – designadamente “qualquer espaço“, “complementar à habitação” e “reposição da normalidade da actividade agrícola ou vitivinícola” – são demonstrativas da abrangência quase ilimitada desta noção de dependência, da qual resultou que, pelo menos aparentemente, todos os locais utilizados pelos sinistrados seriam susceptíveis de beneficiar de apoios, bastando para tal que fossem considerados complementares de um espaço habitacional, ainda que situados em área não contígua às habitações. Este exemplo bastará, por agora, para compreender que a aplicação prática da disciplina dos apoios à reconstrução tenha, por um lado, suscitado reclamações e, por outro, carecido de preocupações interpretativas.
Exactamente no campo interpretativo, destaca-se a Circular nº 1/99/CPR (adiante, Circular) que foi, confessamente, um esforço de “interpretação auto-vinculada” com o objectivo de “uniformizar os pareceres e tomadas de posição, de modo a conferir certeza e segurança aos actos decisórios” (vide Introdução da Circular). Ir-se-ão referindo, quando tal assuma adequada pertinência, os procedimentos fixados na Circular, designadamente quando ela tenha levado à prática de determinado acto reclamado; por agora, contudo, importará mencionar, somente, a enorme dificuldade suscitada pela compaginação entre o regime legal, aprovado por instrumento legislativo, e a sua aplicação prática, moldada decisivamente por uma mera Circular interna sem qualquer eficácia extra-institucional.
Permito-me exemplificar – ainda no seguimento do que ficou atrás dito sobre as dependências – referindo que a Circular determinou, na alínea a) do ponto 4, que “só serão objecto de apoio nos termos do Decreto Legislativo Regional nº 15-A/98/A, cit., as dependências cujo beneficiário desse apoio declare expressamente, sob compromisso de honra, que essas construções possuem utilidade exclusivamente habitacional, sendo, pois, utilizadas na sua vivência quotidiana“. Pese embora não se pretender contestar a bondade das soluções adoptadas pela Circular, o certo é que não subsistem quaisquer dúvidas relativamente ao facto de ela não se limitar a uma despreocupada “interpretação auto-vinculada” mas configurar, verdadeiramente, um caso de interpretação correctiva, (que é, não posso deixar de lembrar, absolutamente proibida pelo ordenamento jurídico português). O C.P.R. terá entendido, certamente, que “a razão da lei [era] contrária a interesses que se [pretendiam] superiores” (ASCENÇÃO, OLIVEIRA, O Direito Introdução e Teoria Geral, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª Edição, Lisboa, 1983, p.330), como fica demonstrado – se algumas dúvidas subsistissem – no trecho do ponto 2 da Circular que, a propósito da conjugação dos mecanismos previstos nos artigos 6º e 8º, nº 2, do DLR nº 15-A/98/A, refere que “(…) uma tão flagrante desigualdade de tratamento da mesma situação, com efeitos penalizadores para a situação sociologicamente mais grave não pode, de todo, corresponder a interesse claramente fixado pelo legislador, ferindo por completo a teleologia da norma, como reconhecem os senhores deputados regionais (…)“. Notoriamente, a Circular do C.P.R. visou, pelo menos em alguns casos, corrigir a “pouco cuidada redacção do texto legal” (como expressamente afirma o p.5 da Circular), configurando, então, um caso de produção de normas internas com eficácia extra-institucional, situação que, consabidamente, viola a natureza daquele tipo de actos.
Uma vez que muitos dos pedidos de intervenção relativos à matéria da reconstrução foram chegando à Provedoria de Justiça durante o ano de 2001 – logo, quando os diversos processos estavam já em curso decisivo e decorriam da aplicação dos procedimentos prefixados -, entendi ser totalmente despropositado tentar uma actuação ao nível das fontes de direito, para mais reconhecendo que elas estavam suficientemente plasmadas no DLR nº 15-A/98/A; considerei, então, que a problemática dever-se-ia situar ao nível concreto da adopção das soluções práticas decorrentes da interpretação do texto legal, e não da redacção deste último.
Mas importa verificar, também, que, mesmo depois de se ter revelado a evidência da contradição entre algumas soluções consagradas nas disposições do DLR nº 15-A/98/A e o entendimento fixado na Circular, não pude evitar a conclusão de que, em diversas situações, o procedimento auto-vinculado do C.P.R. conferia, indubitavelmente, um tratamento mais favorável para os beneficiários do que aquele que resultaria directamente da aplicação do decreto legislativo regional. Foi o caso, também ele sintomático, das situações de “impossibilidade de intervenção em habitações sinistradas, por força de condicionalismos de natureza preventiva, urbanística ou ambiental“, tratados no ponto 2 da Circular. Na verdade, para aqueles casos, foi fixado internamente o seguinte procedimento: “quando a razão de ser da opção por aquisição ou construção de nova habitação residir no facto de não poder a habitação sinistrada ser objecto de qualquer intervenção, por força da existência de alguma das razões condicionantes referidas no nº 1 do artigo 6º, poderá o sinistrado adquirir ou construir uma habitação com tipologia correspondente à anteriormente existente, a exemplo do que sucede em matéria de reconstrução ou reabilitação, não se lhe aplicando as limitações decorrentes dos nºs 2 e 3 do artigo 8º“. Como é bom de ver, a Circular alargou, de forma decisiva, a possibilidade de os sinistrados adquirirem ou construírem com respeito pela tipologia preexistente na habitação sinistrada ultrapassando, em muito, a previsão legal.
Ponderado tudo, a minha posição ao longo da instrução dos diversos processos acabou por revelar uma particular atenção à justiça das soluções concretas encontradas, ainda que assegurada em detrimento do efectivo cumprimento das formalidades previstas nos instrumentos legais e regulamentares aplicáveis; por outro lado, uma vez que foram fixados procedimentos novos no interesse dos beneficiários – como foi o caso tratado no ponto 2 da Circular – entendi que importava, agora, garantir a igualdade de tratamento de todos os sinistrados, em vez de rebater as soluções adoptadas. De facto, mais do que os aspectos de estrita legalidade formal, considerei que a intervenção que me era pedida poder-se-ia revelar especialmente proveitosa enquanto contributo para a resolução das situações socialmente relevantes, desde que devidamente enquadradas nos objectivos primordiais do programa da reconstrução e desde que fosse garantida a igualdade de tratamento dos sinistrados.
Para sustentar esta posição, a Provedoria de Justiça considerou, como vectores fundamentais a levar em conta na apreciação dos processos, aquelas que se julgava serem também as preocupações principais reveladas na elaboração do quadro de apoios a conceder, a saber:
– a necessidade de reposição da normalidade social dramaticamente afectada pelo sismo de 9 de Julho de 1998; |
Nunca evitando as pertinentes chamadas de atenção para os aspectos particulares de cada processo que entendo justificarem reparos, o meu principal objectivo foi, sempre, assegurar, em cada caso, as soluções socialmente mais justas.
Retomando, uma vez mais, o exemplo do apoio à reconstrução das dependências, faço notar que aceitei como justa a solução encontrada (mesmo que ela colida, em grande parte, com a letra de lei), em atenção à finalidade social do regime da reconstrução e à óbvia prioridade que, neste domínio, importa conferir à componente habitacional.
Ainda assim, não posso evitar um reparo não à bondade material da solução encontrada mas, diferentemente, à utilização de uma fonte normativa interna como meio para alcançar a “correcção” do pensamento legislativo; de facto, não podem restar dúvidas sobre o facto de um tal papel caber, em primeira mão, à própria Assembleia Legislativa Regional – aceitando-se, também, a intervenção do Governo Regional mas, aqui, unicamente no exercício do respectivo poder regulamentar (portanto, sem a susceptibilidade de consagração de soluções diferentes daquelas vertidas no DLR nº 15-A/98/A). A utilização da Circular não foi, notoriamente, o meio juridicamente adequado, parecendo mesmo que, a entender-se ser necessária uma alteração de regime, ela deveria ter sido suscitada no Órgão Legislativo Regional, competindo-lhe decidir, no exercício das respectivas competências consagradas na Constituição e no Estatuto Político-Administrativo, não só da pertinência das modificações como, e essencialmente, dos respectivos termos específicos.
Não posso evitar concluir que, no caso em apreço, os contornos particulares da reconstrução foram definidos muito mais pelo C.P.R. do que pela Assembleia Legislativa Regional.
Mas, chegados aqui, impõe-se a seguinte nota final: tendo aceitado, nos termos expostos, as soluções propugnadas na Circular do C.P.R., elas foram tidas como regras genéricas (o que efectivamente são, não obstante a sua eficácia meramente interna), emitidas por quem detinha poderes de autoridade perante os respectivos Serviços e que, como tal, deveriam vincular todas as decisões (sem excepção) proferidas pela estrutura hierárquica do C.P.R.
§2. A realização de mais valias com as habitações apoiadas e os apoios supervenientemente injustificados
O artigo 16º, do DLR nº 15-A/98/A, contém uma disposição que impede, durante os oito anos seguintes à conclusão da realização das obras apoiadas ou à celebração da escritura de aquisição, a alienação das habitações adquiridas ou construídas, pelos arrendatários ou pelos comodatários dos edifícios destruídos, nada referindo quanto à situação dos proprietários. Talvez em virtude desta omissão legislativa, em período recente surgiram relatos de situações de obtenção de benefícios económicos, designadamente através da venda de habitações cuja reconstrução foi apoiada com dinheiros públicos, levadas a efeito pelos proprietários dos edifícios sinistrados.
Uma vez que foi já desencadeado um procedimento de alteração legislativa, exactamente para consagrar mecanismos tendentes a impedir estas situações, considero que o assunto está em vias de resolução. Ainda assim, entendo dever alertar Vossa Excelência para a susceptibilidade de as situações relativas aos proprietários (que, como tal, não estão abrangidas pela disposição contida no mencionado artigo 16º) serem enquadráveis no instituto do enriquecimento sem causa (artigo 473º, e ss., do Código Civil) –, mesmo nos casos em que os negócios tenham sido celebrados em data anterior à mencionada alteração legislativa. Com efeito, aqueles negócios não podem deixar de configurar situações de enriquecimento sem qualquer causa justificativa (porquanto alcançado à custa de apoios públicos especialmente criados para a reconstituição do parque habitacional afectado e para o auxílio dos sinistrados) que, como tal, devem dar lugar – até por imperativos éticos – à obrigação de restituição dos apoios. Verificando-se, ainda que a posteriori, que os dinheiros públicos atribuídos geraram mais valias para os sinistrados, justifica-se considerar terem inexistido os pressupostos, tanto factuais como de direito, que conduziram à qualificação dos beneficiários como pessoas carecidas de apoio.
Aliás, entendimento similar sobre a ratio do diploma impõe, também, o afastamento da concessão de apoios nos casos em que as habitações sinistradas pertenciam a cidadãos emigrados e estabelecidos, à data do sismo, em país estrangeiro. Com efeito e tal como na situação anterior, os emigrantes não podem – para efeitos da aplicação destes apoios excepcionais e urgentes – ser considerados merecedores de tutela jurídica na qualidade de sinistrados, desde logo porque não habitavam permanentemente nas casas destruídas ou danificadas. É despropositado, no presente contexto económico e social, sequer ponderar que os apoios sejam utilizados para a reconstrução de habitações secundárias.
§3. Os casos de incumprimento dos empreiteiros não contratados directamente pela SRHE
Nos termos do artigo 20º, do DLR nº 15-A/98/A, todas as obras de reconstrução estão sujeitas a fiscalização pública, assegurada pelos Serviços competentes do Governo Regional, a qual visa garantir “o apoio técnico ao acompanhamento das obras objecto de apoio“, tendo a S.R.H.E. esclarecido que a fiscalização de obras é assegurada, somente, para a comprovação do cumprimento das diversas fases dos trabalhos (designadamente para efeitos do pagamento atempado das tranches dos apoios), do respeito pela obrigação de executar a obra conforme a memória descritiva (ponto 32 da Resolução nº 230-A/98, de 19 de Novembro) e não incide, portanto, sobre a verificação da qualidade dos trabalhos ou da execução segundo a legis artis da construção civil.
Estas explicações foram obtidas na sequência da análise de situações em que se verificou existirem defeitos, da responsabilidade dos empreiteiros, em obras que haviam sido contratadas directamente pelos beneficiários e após a ponderação da susceptibilidade dos empreiteiros incumpridores serem instados, pela S.R.H.E., a corrigir os trabalhos. Naqueles casos, ficou assente que a única possibilidade de intervenção da S.R.H.E. residiria, por um lado, na recusa da contratação futura daqueles empreiteiros (nomeadamente, nas situações de consulta ou ajuste directo) e, também, na identificação das pessoas ou entidades incumpridoras, por forma a desaconselhar a sua contratação por outros beneficiários.
Por esta razão e mesmo sabendo que as relações que se estabelecem entre os particulares e os empreiteiros são de direito privado e estão, por esse facto, excluídas do âmbito de actuação do Provedor de Justiça, entendo justificar-se a sugestão da feitura de uma “lista de empreiteiros incumpridores” o que, na ausência de uma intervenção sancionatória directa por parte dos Serviços da S.R.H.E., constituirá um contributo na salvaguarda da qualidade da reconstrução e, também, na garantia da efectiva reposição das condições habitacionais dos sinistrados.
§4. A fórmula de apuramento dos montantes orçamentados e o desajustamento com os valores de mercado
Diversas reclamações deram conta da existência de casos de inflacionamento de preços por parte dos empreiteiros, facto pretensamente susceptível de conduzir a algum desajustamento entre os valores atendidos, pela Administração, para efeito da atribuição de apoios e os montantes efectivamente despendidos pelos beneficiários na reconstrução. Mesmo entendendo-se – como na situação anterior – que a questão da estipulação dos preços situa-se, no essencial, ao nível da contratação privada, parecia aceitável considerar que o Governo Regional deveria atender, designadamente na fixação dos montantes dos apoios, às circunstâncias particulares da conjuntura decorrente do sismo de 1998.
Conforme explicou a S.R.H.E. – lembrando, também, que o valor de referência era, até então, de 70 contos/m2 – o diploma legislativo regional não deixou de considerar a susceptibilidade de ocorrer um acréscimo excepcional dos preços (resultante do súbito aumento da procura de empreiteiros por efeito das especiais necessidades da reconstrução), na medida em que fixou o valor da comparticipação, no artigo 10º do DLR nº 15-A/98/A, em 80 contos/m2 – valor que, posteriormente, foi actualizado para os 90 contos/m2 (montante que actualmente vigora).
Verificando que, no tocante à eventualidade de ocorrer súbito aumento dos preços de construção, foram tomadas medidas no sentido de, por um lado, assegurar o efeito útil dos apoios concedidos e, por outro, limitar, na medida do possível, os eventuais prejuízos sofridos pelos particulares, considero que não existem quaisquer motivos de reparo neste domínio.
§5. As situações em que os apoios publicados por Portaria foram, posteriormente, revogados (por ofício simples)
Diversos casos tratados na Provedoria de Justiça suscitaram a questão da revogação de apoios já devidamente aprovados e atribuídos por portaria publicada no J.O., ao abrigo do disposto no ponto 28 da Resolução nº 230-A/98, de 19 de Novembro. Destaque-se que não me refiro, aqui, às situações em que era controvertida a validade da decisão posterior de redução ou revogação dos apoios mas, tão somente, à matéria da regularidade formal das respectivas decisões e comunicações de anulação.
Sendo pacífico que a atribuição de apoio deve ter cobertura legal através da publicação da portaria, afigura-se natural (e legal) que a revogação do mesmo, a existir, assuma a forma de um acto normativo de igual valor formal; deste modo, eventuais situações de incumprimento, por parte da Administração, por violação da obrigação de publicitação da revogação dos apoios não podem deixar de me merecer uma chamada de atenção.
No que concerne às situações particulares de revogação de apoios anteriormente publicitados que foram analisadas, considerei pertinente verificar, em cada caso, se os interessados haviam tido conhecimento atempado da alteração dos montantes concedidos e, também, se haviam sofrido prejuízos, efectivos e comprovados, com a modificação superveniente da anterior decisão. Registo, com satisfação, que, em todas as situações em que ficou demonstrado, designadamente, que os particulares envolvidos haviam assumido obrigações ou contraído dívidas em função dos apoios que foram, posteriormente, reduzidos ou anulados, o Governo Regional acedeu em indemnizar os beneficiários pelos prejuízos causados.
Diferentemente, nos casos em que os particulares, já plenamente conhecedores do novo enquadramento da respectiva situação, decidiram não conformar a sua actuação com o teor das comunicações que receberam, e assumiram os gastos com as obras não apoiadas, entendi não dever sugerir a Vossa Excelência o pagamento de indemnizações, uma vez que os beneficiários não podiam alegar, naqueles casos, nem que agiram de boa fé nem, tão pouco, que desconheciam os montantes efectivamente atribuídos.
Como se vê, a Provedoria de Justiça entendeu dar menos relevância à questão formal – da publicação da nova portaria de anulação ou diminuição do apoio – do que à questão substantiva – do preenchimento dos requisitos materiais justificativos do benefício. Contudo, relativamente a estas situações, entendo dever solicitar a Vossa Excelência a averiguação, de forma exaustiva, da totalidade dos casos de revogação ou alteração dos apoios concedidos, uma vez que não deixa de ser pertinente a verificação da correcção dos procedimentos formais. E, antes mesmo de conhecer as conclusões, desde já sugiro a publicação de todas as portarias em falta (incluindo, por um lado, as relativas a processos já concluídos, por outro, aquelas que se referem a casos em que as comunicações de alteração foram asseguradas em reuniões entre o C.P.R. e os beneficiários e, também, as concernentes a situações cobertas por cartas registadas anunciando a redução ou a revogação dos apoios).
§6. A tipologia das habitações a apoiar, a compaginação com a área da habitação sinistrada e a reconstrução
A regra, relativamente à reconstrução e reabilitação das habitações sinistradas, consta do nº 1 do artigo 8º, nos seguintes termos:
Artigo 8º 1. As habitações a reconstruir e a reabilitar devem manter as áreas e tipologias correspondentes às anteriormente existentes, em condições de salubridade e segurança, com excepção das que se mostrem manifestamente insuficientes para o número de membros do agregado familiar, caso em que se poderá ampliar a moradia, de acordo com a tipologia do quadro previsto no nº 2. 2. No caso de o beneficiário adquirir ou construir uma habitação, esta deve subordinar-se ao limite máximo de área previsto no quadro seguinte: |
Em suma: caso viesse a verificar-se uma intervenção nas habitações destruídas, os sinistrados poderiam manter “as áreas e tipologias” preexistentes, ou mesmo ampliá-las (nº 1); diferentemente, no caso de aquisição ou construção de nova habitação, exigir-se-ia o respeito pelos limites fixados no nº 2, em termos de relação “agregado familiar/tipologia/área máxima”. Por outro lado, nas situações em que não era permitido que os sinistrados reconstruíssem, reabilitassem ou reparassem as habitações sinistradas, dispõe o artigo 6º, nos seguintes termos:
Artigo 6º 1. Sempre que, por razões ambientais, urbanísticas ou de segurança, não seja legalmente permitido reconstruir, reabilitar e reparar a habitação sinistrada, poderão os sinistrados adquirir ou construir habitação em local diferente da habitação sinistrada, recorrendo aos apoios previstos no presente diploma. 2. Na última das situações previstas no número anterior, o beneficiário terá direito a um lote cedido gratuitamente pelo Governo Regional, para efeitos de construção da habitação. |
Parecendo que, nesta última situação, os sinistrados estariam condicionados pelos limites máximos previsto no quadro do nº 2 do artigo 8º, o C.P.R. ponderou o descrito no anexo II, determinando a não aplicabilidade daquelas limitações legais. Deste entendimento do C.P.R. – mais, ainda, do que das dúvidas suscitadas pelo texto legal – resultou um grande número de queixas, em especial reclamando do facto de as novas habitações a construir terem áreas muito inferiores às dos edifícios sinistrados ou, mesmo, terem tipologias diferentes. Com efeito, não obstante o facto de a Circular prever a possibilidade de os sinistrados que viessem a adquirir ou a construir uma nova residência poderem beneficiar de “uma habitação com tipologia correspondente à anteriormente existente” (p.5, in fine), aconteceu a situação invulgar de as queixas provirem da circunstância de o C.P.R. não cumprir os procedimentos que ele próprio havia fixado internamente (alegadamente mais favorável para os beneficiários do que a que resultaria da aplicação do texto legal) mas, diferentemente, aplicar aos sinistrados o regime do DLR nº 15-A/98/A, “esquecendo” as suas orientações internas.
Após solicitação da Provedoria de Justiça, a S.R.H.E. esclareceu que a interpretação do C.P.R. ia no sentido de ser respeitada, somente, a “tipologia” das habitações e não significar, ao mesmo tempo, a coincidência das áreas respectivas. Para fundamentar esta posição, colhia-se apoio na letra da Circular que fixou internamente o procedimento a seguir (que apenas menciona a correspondência das tipologias e nunca se refere às áreas). Uma vez mais, não deixei de aceitar a explicação, até porque, como é bom de ver, o C.P.R. cuidou de estabelecer – em claro benefício para os sinistrados – limites mais generosos para os beneficiários do que aqueles que resultariam da aplicação directa do DLR nº 15-A/98/A; contudo, como foi já aflorado, a prática veio a revelar – pelo menos em uma situação – uma contradição insanável que importa referir e, também, reparar.
De facto, no processo R-3237/01 (Aç), constatou-se que a Senhora D. A… era proprietária de uma habitação sinistrada sita na freguesia dos Flamengos, que possuía uma área de 103m2, com uma tipologia T3 (facto que foi reconhecido no ofício nº 1906, de 20/12/2001, do Gabinete de Vossa Excelência) pelo que, visto que estava impedida de reconstruir a habitação situada em zona de risco, esperar-se-ia que o C.P.R. atendesse, não à área da habitação sinistrada mas à respectiva tipologia. Assim sendo, a interessada teria direito – sem margem para quaisquer dúvidas – a uma nova residência com uma tipologia T3. Contudo, à sinistrada foi atribuída uma habitação tipo T1, com 70m2, com a seguinte justificação, contida no já mencionado ofício do Gabinete de Vossa Excelência: “tendo em conta que o agregado familiar da requerente é composto apenas pela própria, e que a casa se encontrava implantada sobre uma linha de água, não podendo, por isso, ser reconstruída, foi determinada,ao abrigo do disposto nos artigos 6º e 8º nº 2, do Decreto Legislativo Regional nº 15-A/98/A, de 25 de Setembro, a atribuição de um lote (o nº 4) do loteamento do Farrobo para a construção de uma habitação tipo T1, com 70 m2“.
Como é bom de ver, nesta situação, a decisão incumpriu, de forma notória, o procedimento a que o C.P.R. expressamente se “auto-vinculou” e, do mesmo passo, constata-se que foram omitidas, na explicação à Provedoria de Justiça, as informações sobre a existência, e respectivos termos, da Circular tendo-se actuado como se esta, pura e simplesmente, não existisse. Ora, como já referi anteriormente, a aceitação das soluções consignadas na Circular impõe, necessariamente, a sua aplicação uniforme e generalizada, não podendo admitir-se que, umas vezes, ela justifique decisões “desajustadas” relativamente ao DLR nº 15-A/98/A e, outras vezes, seja afirmado o primado da solução do texto legal (esquecendo-se a Circular).
Pelo que fica exposto, devo recomendar a Vossa Excelência a urgente revisão da decisão relativa à Senhora D. A… e, bem assim, a substituição daquela por outra que assegure a construção de uma habitação do tipo T3.
§7. O apoio às dependências
A questão – já amplamente aflorada – do apoio à construção ou reconstrução das dependências, foi tratada na Provedoria de Justiça a dois níveis distintos: por um lado, quanto à exclusiva relevância das dependências com natureza habitacional; por outro, quanto aos requisitos formais inerentes a cada dependência a apoiar (v.g., inscrição matricial e registo predial). Relativamente à primeira questão, foi já referido o essencial do problema, importando reafirmar a minha aceitação do entendimento segundo o qual existe justificação para decidir apoiar somente as dependências com utilidade exclusivamente habitacional (com o consequente afastamento daquelas utilizadas para o exercício de actividade agrícola, vitivinícola ou outra que confira às dependências “autonomia funcional relativamente à habitação“, nos termos da alínea f) do ponto 4. da Circular); igualmente concordo, genericamente, com os restantes termos da posição assumida pelo C.P.R. sobre esta matéria (anexo III). Já no que concerne aos requisitos formais, verificou-se que, em alguns casos, as descrições matriciais ou as cadernetas prediais estavam desactualizadas, designadamente em resultado do facto de a realização de obras de ampliação dos prédios não ter sido acompanhada do respectivo averbamento ou actualização.
Como se disse, o tratamento dos pedidos de apoio relativos às dependências não mereceu da Provedoria de Justiça uma apreciação negativa uma vez que, logo que ultrapassada a questão da divergência entre o regime estatuído no DLR nº 15-A/98/A e as instruções do C.P.R., as decisões tomadas neste domínio específico revelaram-se, no essencial, equilibradas, em atenção à relevância social do tratamento prioritário dos casos de reconstrução ou reabilitação de habitações permanentes.
Ainda assim, também considerei – tendo informado os interessados deste entendimento – que, sempre que os sinistrados consigam demonstrar, com elementos de prova cabais, que as áreas das dependências a apoiar eram, à data do sismo, superiores às referidas nas descrições matriciais ou nas cadernetas prediais (e desde que as obras de ampliação tivessem sido legais ou susceptíveis de legalização), deverá o Governo Regional ponderar a área efectivamente preexistente.
§8. A dedução das indemnizações
Nos termos do disposto no artigo 9º, do DLR 15-A/98/A, deve ser deduzido do montante dos apoios a conceder o valor das indemnizações recebidas ou a receber por contratos de seguro relativos ao imóvel, bem como as quantias atribuídas em virtude de subvenções da Administração. Com efeito, a natureza excepcional e socialmente preocupada do regime de apoios à reconstrução justifica a adequação da atribuição das verbas públicas às necessidades efectivas dos sinistrados e, bem assim, a contabilização dos restantes apoios como património dos beneficiários.
Um caso tratado na Provedoria de Justiça suscitou a análise de uma situação particular em que um sinistrado, por efeito de um contrato de seguro, veio a receber determinada verba sobre a qual, no entanto, incidiu a dedução de um outro montante relativo a uma dívida preexistente. Pela singularidade da situação, importa esclarecer que a Provedoria de Justiça entende – concordando totalmente com a interpretação do C.P.R. – que deve servir de referência para o apuramento dos montantes a deduzir, nos termos do artigo 9º, a efectiva situação patrimonial dos sinistrados considerada à data da ocorrência do sismo. Quer isto dizer que, no caso da existência de dívidas relativas ao imóvel afectado mas anteriores ao sismo, não pode a Administração, nem assumir o respectivo pagamento nem, tão pouco, considerá-lo como factor de diminuição do montante da indemnização recebida, uma vez que nenhuma relação pode ser encontrada entre aquelas dívidas e as indemnizações a receber em virtude de contratos de seguro. Em concreto, faço notar que, se alguém tinha, em 9 de Julho de 1998, uma dívida relativa a um imóvel, constituirá incumbência do sinistrado saldá-la; e se esse sinistrado vier a receber uma indemnização por contrato de seguro não lhe será lícito deduzir o valor da dívida ao montante da indemnização, invocando que só recebeu, efectivamente, uma quantia inferior. De facto, o regime de apoios especiais à reconstrução apenas visa a reconstituição da situação habitacional afectada pelo sismo e não pretende, ao mesmo tempo, conferir quaisquer outros benefícios financeiros aos sinistrados. Aliás, afigurar-se-ia despropositado verificar que uma determinada pessoa que tivesse, à data do sismo, uma habitação e uma dívida acabasse por ficar, em resultado dos apoios à reconstrução, com uma outra habitação e sem a dívida. É que, a ser assim, o regime previsto no DLR nº 15-A/98/A asseguraria, não só a reconstrução das habitações sinistradas mas, também, o pagamento de outros benefícios financeiros sem qualquer relação com o sismo.
IV. CONCLUSÕES
Em suma, permito-me comunicar a Vossa Excelência que, relativamente aos aspectos do processo de reconstrução que foram analisados pela Provedoria de Justiça, entendo dever formular as seguintes conclusões:
I. As situações decorrentes do sismo que, em 1998, afectou o Grupo Central da Região Autónoma dos Açores, com particular incidência nas Ilhas do Faial e do Pico, não podem deixar de ser analisadas à luz de um regime de apoios de cariz excepcional e com uma marcada vertente social, baseado no princípio da solidariedade regional e nacional. Assim sendo, os beneficiários das ajudas não podem perder de vista que os apoios públicos disponibilizados para a reconstrução constituíram, em exclusivo, auxílios especiais às vítimas do sismo para a recuperação das situações sociais e económicas afectadas e não visou conferir quaisquer outros benefícios económicos para as pessoas enquadradas, geográfica e subjectivamente, naqueles instrumentos. II. O Provedor de Justiça não pode deixar de condenar, com veemência, os (poucos) casos que vão sendo relatados de pessoas que, tendo beneficiado de apoios públicos para a reconstrução de habitações afectadas pelo sismo, pretendem agora negociar a utilização ou a propriedade dos edifícios, com realização de mais valias. Para além das medidas de cariz legislativo que estão a ser ponderadas, limitando no tempo a venda das habitações apoiadas, este órgão do Estado sugere o enquadramento daquelas situações no instituto do enriquecimento sem causa (artigo 473º, e ss., do Código Civil), uma vez que, notoriamente, careceu de justificação todo o recebimento de apoios que não se destinou à reconstituição do modo de vida afectado pelo sismo. III. Para além dos aspectos jurídicos envolvidos, o Provedor de Justiça qualifica estas situações como moralmente condenáveis, até porque o recebimento de apoios por determinados beneficiários representou, sempre, a não atribuição a outros cidadãos afectados. Nesta medida, é socialmente intolerável assistir a casos de aproveitamento de situações de catástrofe para benefícios económicos. A Provedoria de Justiça congratula-se, por isso, com o facto de estarem em curso alterações legislativas tendentes a inviabilizar aquelas injustiças e considera, também, que o caso está a ser devidamente encaminhado. IV. As necessidades especiais de reconstrução geraram, igualmente, algumas situações de aumento dos preços praticados por alguns empreiteiros com o consequente desajustamento com os valores de referência dos apoios públicos que estavam estipulados em 1998. Aqui, diferentemente da situação anterior, foi o funcionamento das leis de mercado que impôs o aumento dos preços praticados por alguns empreiteiros, pelo que não era exigível à Administração senão que tomasse as medidas possíveis para acautelar os interesses dos particulares e, ao mesmo tempo, desincentivar novos aproveitamentos. Entende a Provedoria de Justiça que as medidas tomadas pelo Governo Regional, no sentido da actualização dos valores dos apoios [fixado em 90 contos/m2] afiguram-se correctas e suficientes. De facto, caso tivesse sido decidido dar cobertura, sem limites, aos preços estipulados nas contratações privadas, o mais certo era ter ocorrido um “inflacionamento” galopante, sem benefício algum para os sinistrados e com prejuízo grave para o Erário Público. V. Relativamente aos casos de execução defeituosa das obras de construção contratadas directamente pelos sinistrados, o Provedor de Justiça, ao mesmo tempo que reconhece que as relações que se estabelecem entre os particulares e os empreiteiros são de direito privado, sugere a feitura de uma lista de empreiteiros incumpridores o que, na ausência de uma intervenção sancionatória directa por parte dos Serviços da S.R.H.E., constituirá um contributo na salvaguarda da qualidade da reconstrução e, também, na garantia da efectiva reposição das condições habitacionais dos sinistrados. VI. Por outro lado, pese embora reconhecer-se a irregularidade formal dos casos em que não foi publicada a competente portaria que reduziu ou revogou os apoios inicialmente concedidos, a Provedoria de Justiça entende não dever sugerir o pagamento de indemnizações nas situações em que se comprovou que os particulares foram atempadamente informados do novo enquadramento da respectiva situação, uma vez que aqueles casos afastam-se da actuação de boa fé fundada no desconhecimento. Contudo, o Provedor de Justiça entende que devem ser averiguadas, de forma exaustiva, todas as situações de revogação ou alteração dos apoios concedidos, por forma a ser assegurada a correcção formal dos procedimentos. VII. A Provedoria de Justiça aceitou o entendimento do C.P.R. relativamente à situação dos beneficiários que não puderam, por razões ambientais, urbanísticas e de segurança, reconstruir, reabilitar ou reparar as habitações sinistradas, até porque ele é mais favorável para os sinistrados do que aquele que resultaria da aplicação directa do DLR nº 15-A/98/A. Deste modo, ficou estabelecido que, naquelas situações, deveria respeitada, somente, a “tipologia” das habitações mas que tal não significava, também, a coincidência das áreas respectivas. VIII. Contudo, veio a verificar-se que, em uma situação, o C.P.R. não atendeu, nem à área da habitação sinistrada nem à respectiva tipologia, pelo que se impõe recomendar a urgente reparação daquela decisão, profundamente injusta. IX. No que concerne às dependências, a Provedoria de Justiça entende dever aceitar o entendimento do C.P.R., segundo o qual existe justificação para a decisão de apoiar somente as dependências com utilidade exclusivamente habitacional (com o consequente afastamento daquelas utilizadas para o exercício de actividade agrícola, vitivinícola ou outra que lhes confira autonomia funcional relativamente à habitação). X. A questão da dedução, ao montante dos apoios públicos, dos valores das indemnizações recebidas ou a receber em virtude de contratos de seguro, nenhuma relação tem com a eventual preexistência, em data anterior ao sismo, de quaisquer dívidas relativas ao imóvel afectado. Assim sendo, a Provedoria de Justiça concorda com a actuação do C.P.R. e com o entendimento de que a Administração não deve assumir o respectivo pagamento (nem considerá-lo como factor de diminuição do montante da indemnização recebida), sob pena de o regime previsto no DLR nº 15-A/98/A passar a assegurar, também, o pagamento de outros apoios financeiros sem qualquer relação com o sismo, o que não se pretendeu. |
V. RECOMENDAÇÕES
Em face do que deixei exposto e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, recomendo a Vossa Excelência:
A) A urgente revisão do processo relativo à Senhora D. A…, substituindo-se a decisão de atribuição de um T1, com 70m2 por outra que reconheça o direito a uma habitação com tipologia T3; B) A correcção formal dos procedimentos relativos à revogação ou alteração dos montantes atribuídos, através da publicação das portarias que estiverem em falta; C) A averiguação das situações denunciadas pelo Senhor B… e constantes da pág. IV do anexo I, por forma a verificar se elas configuram casos de atribuição de apoios a cidadãos que, à data do sismo, estavam emigrados. |
Estou certo de que Vossa Excelência receberá o presente ofício como um empenhado contributo deste órgão do Estado, tanto no reconhecimento do muito que foi já assegurado no processo de reconstrução como, igualmente, na preocupação da correcção pontual dos aspectos que podem ser melhorados.
Também por esta razão, peço a Vossa Excelência que se digne diligenciar no sentido de o C.P.R. indagar a situação da Senhora D. C…, residente na Rua…, na medida em que a interessada me comunicou a dificuldade sentida na realização dos trabalhos de reabilitação da habitação em virtude de aquele edifício ter paredes comuns com os prédios contíguos. Ciente de que esta matéria configura, indubitavelmente, uma questão entre particulares, entendo não se justificar qualquer recomendação do Provedor de Justiça; ainda assim, também reconheço que uma intervenção de Vossa Excelência será determinante na resolução célere e definitiva do conflito eventualmente existente, facto que motiva este meu apelo.
Finalmente, permito-me chamar a atenção de Vossa Excelência para a circunstância de, nos termos do disposto no artigo 38º, nºs 2 e 3, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, a presente recomendação não dispensar a comunicação a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.
Com os melhores cumprimentos,
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues