RECOMENDAÇÃO N.º 3/A/2003
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)
Entidade visada: Presidente da Junta de Freguesia de Espiunca
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-5815/01
Data: 2003/03/26
Assunto: Trasladação – Cemitério Paroquial da Freguesia de Espiunca
1. Nos termos da exposição apresentada junto deste Órgão de Estado pela Senhora D. XXX, terá sido requerida a V.ª Ex.ª, na qualidade de Presidente da Junta de Freguesia de Espiunca, enquanto entidade responsável pela gestão e administração do cemitério paroquial local, a trasladação dos restos mortais dos progenitores da requerente, inumados em sepultura perpétua concessionada ao Senhor XXX, irmão da mesma.
2. Alega a exponente ter sido a sua pretensão indeferida, não obstante a verificação das regras de legitimidade em vigor para a prática de semelhante acto, com base no facto do referido concessionário não autorizar, para os devidos efeitos, a abertura da sepultura em causa.
3. Consultada sobre esta matéria essa autarquia local, confirmou V.ª Ex.ª, através do ofício com a data em epígrafe, que se agradece, o fundamento invocado pela exponente, baseando-se para tal no disposto no artigo 38.º do Modelo de Regulamento dos Cemitérios Paroquiais, aprovado pelo Decreto n.º 48 770, de 18 de Dezembro de 1968.
4. No tocante ao chamado direito mortuário português, veio o Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n.º 5/2000, de 29 de Janeiro e pelo Decreto-Lei n.º 138/2000, de 13 de Julho, estabelecer o regime jurídico a observar neste domínio, revogando nos termos do seu artigo 32.º, n.º 2, todas as normas jurídicas constantes do Decreto n.º 48 770, de 18 de Dezembro de 1968, e dos regulamentos dos cemitérios, que contrariem o disposto no mesmo.
5. Ora, estabelecendo o art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 411/98 as condições de legitimidade para o requerimento de autorização para trasladação, é de notar que em ponto algum se ressalva a situação de os restos mortais a trasladar se encontrarem em jazigo ou sepultura perpétua.
6. Compreende-se que a trasladação para jazigo ou sepultura perpétua requeria, em regra, o consentimento do seu concessionário, que obteve da administração título jurídico bastante para gozar, com exclusividade, aquela estrutura funerária. Nessa medida, a persistência da regra do art.º 38.º do Modelo de Regulamento em nada colide com o disposto no art.º 3.º do Decreto-Lei 411/98, na medida em que esta norma dispõe quem pode pedir a trasladação, mas não define para onde ou muito menos permite a deposição dos restos mortais em espaço concessionado a terceiro, contra a sua vontade.
7. Defende-se contudo que, para a retirada de restos mortais de jazigo ou sepultura perpétua, é, salva a invocação de interesse legítimo de natureza pessoal, irrelevante a posição do concessionário desse espaço, tão logo seja requerido o acto por quem a Lei, actualmente, confere legitimidade para tanto. Nessa medida, ou seja, para a saída de restos mortais, não tem já lugar a exigência do consentimento do concessionário, na medida em que não vai ser ocupado, muito pelo contrário, o espaço que lhe foi afectado por acto administrativo.
8. Será assim de se considerar revogado parcialmente o disposto no art.º 38.º do Modelo de Regulamento, isto por força da norma revogatória genérica inserida no art.º 32.º, n.º 2, do Decreto-Lei 411/98.
9. Posição esta de resto acolhida no próprio preâmbulo do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, ao afirmar-se que se entende “ser suficiente a autorização da entidade responsável pela administração do cemitério para que se proceda a trasladações dentro do mesmo”, subentendendo-se que após a apresentação de requerimento por quem, nos termos do art.º 3.º do mesmo diploma, tem legitimidade para o efeito.
10. De facto, não seria adequado face aos princípios a observar nesta matéria, pretender atribuir ao concessionário o poder para, em absoluto e de forma definitiva, inviabilizar a prática de todo e qualquer acto de trasladação, destituindo-se assim de qualquer utilidade as regras de legitimidade legalmente consagradas e pondo-se em causa o próprio interesse público que presidiu à sua criação.
11. Em bom rigor, reconhecendo-se um conjunto de direitos aos concessionários das sepulturas e jazigos, concordará V.ª Ex.ª que não se pode incluir no seu elenco o poder de os mesmos disporem livremente sobre o destino a dar aos restos mortais nestes depositados, arrogando-se assim um direito de propriedade sobre estes inexistente, desde logo tendo em atenção a sua natureza especial, de cariz não patrimonial.
12. Na verdade, o conceito de concessão em causa reconduz-se a uma concessão de ocupação, de aproveitamento de uma parcela de domínio público e nunca associado a qualquer tipo de alienação, uma vez que o cemitério se integra na esfera do Domínio Público.
13. Como tal, as concessões feitas aos particulares não lhes atribuem os poderes jurídicos resultantes da prática de idêntico acto relativamente a uma coisa privada, designadamente o poder de dispor do espaço cemiterial concessionado, como se sobre este fosse possível exercer um direito de propriedade pleno e absoluto, uma vez que o conjunto dos direitos de que o concessionário é titular, está limitado pela natureza do objecto concedido e pela finalidade específica e inalterável a que o terreno se encontra adstrito enquanto parte integrante do cemitério (neste sentido, Lopes Dias, Vítor Manuel, in “Cemitérios – Jazigos e Sepulturas”, Monografia, pg. 386).
14. Relativamente ao conceito de legítimo interessado, fundamental para a aplicação da solução legal acima defendida, determina o artigo 3.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, na redacção a este dada pelo Decreto-Lei n.º 138/2000, de 13 de Julho, estar habilitado a requerer a prática do acto de trasladação, no caso de sucessão legítima ou legitimária, qualquer herdeiro.
15. Aplicando-se esta regra qua tale, deparar-nos-íamos com uma solução jurídica e materialmente inaceitável, na medida em que a mesma possibilitaria alimentar eventuais conflitos pessoais entre os diversos herdeiros, numa clara e censurável instrumentalização dos restos mortais alvo de disputa, contrariando os princípios da certeza e segurança que devem presidir à prática de qualquer acto jurídico, assim como o respeito à memória das pessoas já falecidas e, em última instância, do interesse público presente em actos desta natureza.
16. Resulta assim do exposto que a solução a acolher nesta matéria será aquela, nos termos da qual, dentro de cada classe de interessados legítimos em causa, deverá observar-se a regra da maioria, de resto explicitamente consagrada no artigo 29.º do Modelo de Regulamento dos Cemitérios Paroquiais, parte integrante do diploma de 1968.
17. Ora, na situação trazida ao conhecimento deste Órgão de Estado, a Senhora D. XXX parece contar com a concordância de um outro herdeiro, num universo de três, garantindo-se assim a maioria necessária para requerer a prática do acto fúnebre em causa, pelo que também relativamente a este aspecto não se levantam quaisquer dúvidas sobre a oportunidade e legalidade do acto de deferimento da pretensão oportunamente formulada.
18. Sendo certo que, no plano da apreciação da mera legalidade da situação trazida ao conhecimento da Provedoria de Justiça, ficaria este Órgão de Estado satisfeita com a observância da lei vigente sobre esta matéria, dando-se assim provimento à pretensão da Senhora D. XXX, não posso deixar de constatar que, atentas as especificidades do caso concreto, seria de ponderar a possibilidade de a situação de impasse até agora existente, vir a ser ultrapassada por uma outra via.
19. Na verdade, alude V.ª Ex.ª ao facto de estar subjacente ao pedido objecto de apreciação, um conflito familiar entre os requerentes e o concessionário.
20. No tocante a este aspecto, teve este Órgão de Estado conhecimento que, na origem do mesmo, terá estado a impossibilidade, determinada pelo Senhor XXX, da realização do culto fúnebre aos restos mortais inumados na sepultura em causa, pelos seus irmãos.
21. Exercendo o Provedor de Justiça a sua actividade quanto a entidades públicas e tratando-se de conflitos entre privados, não se ouviu, por desnecessário a outra parte, sendo certo que se admitiu expressamente ser este o único motivo pelo qual se pretenderia a trasladação dos restos mortais em causa para outra sepultura no mesmo cemitério.
22. Naturalmente que uma trasladação, mesmo que legalmente consentida, deve ser sempre um acto a praticar no limite da necessidade, não tanto pelos motivos de salubridade, que sempre ficaria salvaguardada, mas também pelo respeito que devem merecer os restos mortais, sujeitos à mínima intervenção possível, e à penosidade que sempre poderá acarretar tal operação para familiares e amigos dos defuntos.
23. Reconhecendo o importante papel que as autarquias locais são chamadas a desempenhar junto das respectivas populações, numa tradição com raízes seculares e que assume particular relevância em meios onde as relações de vizinhança são bem vivas, considero que, numa lógica de mediação e de pacificação, seria oportuno que, numa primeira fase, a Junta de Freguesia de Espiunca envidasse esforços junto das partes envolvidas na problemática em apreço, tendo em vista alcançar-se uma solução equilibrada nesta matéria.
24. Solução esta que, a meu ver, passaria pela possibilidade de o concessionário em causa permitir que os restantes herdeiros acedessem à sepultura onde estão inumados os restos mortais alvo de discórdia, aí prestando o desejado culto fúnebre, assim se evitando, eventualmente, o recurso ao acto de trasladação.
Assim, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Provedor de Justiça (Lei n.º 9/91, de 9 de Abril), recomendo a V.ª Ex.ª a) que seja diligenciado por V.ª Ex.ª, em termos informais, no sentido de ser reconhecida pelo concessionário a realização do culto fúnebre reclamado, por parte dos demais filhos sobrevivos de seus pais; b) que, na impossibilidade de se chegar a tal acordo, seja revogado o acto de indeferimento do pedido de trasladação, substituindo-o por outro de deferimento, tão logo se mostrem preenchidos os requisitos de legitimidade enunciados no art.º 3.º do Decreto-Lei 411/98, designadamente pela subscrição pela maioria dos herdeiros e não existindo quem prefira na ordem das classes aí estabelecidas. |
Agradeço a V.ª Ex.ª que, nos termos do disposto no artigo 38.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, me queira comunicar o acatamento desta Recomendação ou, porventura, o seu não acatamento, justificando-o, no prazo de 60 dias.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues