RECOMENDAÇÃO N.º 11/A/2002
[Art. 20º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Sua Excelência a Ministra das Finanças
Nossa Ref.ª – Proc.ºs: R-1514/98 e apensos; R-2544/01
Data: 2002/11/28


Assunto: Regime tributário dos trabalhadores portugueses ao serviço das missões diplomáticas e postos consulares acreditados em Portugal. O conceito de “reciprocidade” constante do artigo 35º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.


 


Os processos em referência foram abertos na Provedoria de Justiça com o objectivo de apreciar o âmbito de aplicação do artigo 35º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) , em especial no que concerne à interpretação e aplicação do conceito de “reciprocidade” constante do n.º 1 da referida disposição legal.


Para facilidade de exposição e melhor enquadramento da questão, começo por transcrever a parte relevante do actual artigo 35º do EBF:



«1 – Ficam isentos de IRS, nos termos do direito internacional aplicável ou desde que haja reciprocidade:
O pessoal das missões diplomáticas e consulares quanto às remunerações auferidas nessa qualidade;»


Da letra do preceito resultam desde logo claros quais os dois requisitos – não cumulativos – necessários ao reconhecimento da isenção de IRS destes trabalhadores: é necessário que a isenção resulte do direito internacional aplicável ou que haja reciprocidade.



I
– A situação concreta dos Reclamantes –


Alega o Reclamante no processo R-1514/98 (A2) – XXXXXX, NIF XXXX, cidadão de nacionalidade portuguesa, a prestar serviço na Embaixada da Suécia em Portugal – que a isenção de IRS consagrada na citada disposição legal lhe é aplicável relativamente aos rendimentos que aufere naquela qualidade, uma vez que no seu caso se verifica a existência de reciprocidade.


A fim de fundamentar esta sua afirmação, invoca a circunstância de os trabalhadores suecos e estrangeiros (nomeadamente portugueses) residentes na Suécia, que aí se encontrem ao serviço de embaixadas de outros países (nomeadamente da portuguesa), se encontrarem isentos de impostos sobre os seus rendimentos do trabalho. Esta situação de reciprocidade permitir-lhe-ia, pois, beneficiar da isenção de IRS consagrada no artigo 35º do EBF relativamente aos rendimentos que aufere ao serviço da Embaixada da Suécia em Portugal.


Diligenciou ainda o Reclamante no sentido de fazer prova do alegado quanto ao regime vigente na Suécia, pelo que juntou à sua queixa o documento que anexo como doc. n.º 1 (telefax e respectiva tradução, datados de 26.11.1997).


Este mesmo documento já havia sido junto a exposição que o interessado, conjuntamente com outros cidadãos em situação idêntica à sua, dirigiu ao então Ministro das Finanças em 11 de Março de 1998.


Quanto ao Reclamante no processo R-2544/01 (A2) – XXXXXX, NIF XXXX, trabalhador da Embaixada Britânica em Portugal – entende igualmente que a isenção prevista no actual artigo 35º do EBF lhe é aplicável, fundamentando tal afirmação, nomeadamente, no teor documento que anexo como doc. nº 2, cujo último parágrafo refere a existência, também neste caso, de uma situação de reciprocidade.


Este documento foi também enviado pelo interessado, em 30.05.2001, à Direcção de Finanças de Viseu (com conhecimento ao Gabinete do então Ministro das Finanças), no âmbito do processo 610/3.1.1., daquela Direcção de Finanças.



II
– As diligências instrutórias desenvolvidas pela Provedoria de Justiça –


Após uma apreciação preliminar do assunto, e em cumprimento do dever de audição da entidade visada nas queixas que me são apresentadas, solicitei esclarecimentos ao então Ministro das Finanças, através de ofício datado de 16 de Outubro de 2000 (doc. n.º 3, anexo).


A resposta que me foi enviada através do Gabinete do Exmº Subdirector-Geral dos Impostos (of. n.º 79755, de 04.12.2000 – doc. nº 4, anexo) foi desde logo reveladora de que a administração tributária fazia depender o reconhecimento do benefício fiscal reclamado pelos interessados da existência de “qualquer acordo de reciprocidade, aceite pelo Estado português, no que se refere a benefícios fiscais”, facto que, à data daquela primeira resposta da administração tributária à Provedoria de Justiça, ainda não fora possível apurar com certeza, aguardando-se, então, esclarecimentos solicitados ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).


Porque a questão se arrastava há já algum tempo, e após algumas diligências directamente desenvolvidas pela Provedoria de Justiça junto do MNE, foi novamente por nós questionada a administração tributária, através do ofício n.º 13623, de 21.08.2001, no qual era expressamente colocada a questão de saber se para o reconhecimento do benefício a que se refere o actual artigo 35º, n.º 1, alínea a), do EBF não seria suficiente a constatação da existência de uma situação de reciprocidade, independentemente da existência, ou não, de qualquer acordo de reciprocidade (doc. n.º 5, anexo).



III
– A resposta da administração tributária e o teor da Circular nº 22, de 30.09.2002, da Direcção de Serviços dos Benefícios Fiscais –


Em 26.10.2001, através do ofício n.º 401-Gab, veio o Exmº Subdirector-Geral dos Impostos a remeter à Provedoria de Justiça o Parecer n.º 1595/01, da Direcção de Serviços dos Benefícios Fiscais (DSBF), sobre o qual aquele dirigente exarou despacho de concordância datado de 25.10.2001 (doc. n.º 6, anexo).


Mais adiante se procederá à apreciação mais detalhada deste Parecer, uma vez que é nele que a administração tributária fundamenta a conclusão de que a isenção prevista no artigo 35º, nº 1, alínea a), do EBF só pode ser reconhecida caso exista um acordo de reciprocidade celebrado entre Portugal e outro Estado, entendendo, por isso, que não basta a existência de uma mera situação de reciprocidade. Procurarei demonstrar a Vossa Excelência que tal conclusão e os pressupostos em que se fundamenta não são correctos.


Mais recentemente, através da Circular nº 22, de 30.09.2002, da DSBF, foram divulgadas instruções acerca da questão em apreço. Tais instruções surgem na sequência de Despacho proferido, em 02.04.2002, pelo antecessor de Vossa Excelência, Despacho que, pese embora tenha subjacente a louvável intenção de clarificar e uniformizar a interpretação e aplicação do artigo 35º do EBF, acaba por adoptar uma das conclusões do Parecer nº 1595/01, da DSBF que se revela menos correcta: a tese, já referida, de que só existe reciprocidade se existir um acordo formal de reciprocidade.


Com efeito, dispõe o ponto 1. da referida Circular nº 22:



«A isenção prevista no artigo 35º do Estatuto dos Benefícios Fiscais só é aplicável se existir norma de direito internacional que preveja essa isenção ou por aplicação do princípio da reciprocidade acordado entre Estados, e reporta-se apenas aos rendimentos do trabalho.»


Importa, pois, passar à análise do Parecer da DSBF que desenvolve, entre outras questões, os pressupostos desta conclusão.



IV
– Diferenças entre normas para evitar a dupla tributação internacional e normas que consagram benefícios fiscais –


Disse acima que o Parecer da DSBF sancionado por Despacho de 25.10.2001, do Exmº Subdirector-Geral dos Impostos, se fundamenta em pressupostos que não se me afiguram correctos. O principal pressuposto relativamente ao qual não posso deixar de manifestar absoluta discordância é o de que a questão da reciprocidade a que se refere o artigo 35º, nº 1, do EBF se encontra relacionada com a dupla tributação internacional, figura jurídica totalmente diferente e em nada conexa com a que aqui está em apreço.


O que se diz no ponto 13. do citado Parecer é indiscutível mas nada tem a ver com a situação em apreço e em nada contribui para esclarecer qual era a intenção do legislador fiscal ao fazer depender a concessão do benefício fiscal constante do artigo 35º, nº 1, do EBF da existência de reciprocidade: que a dupla tributação surge “devido ao facto de dois ou mais Estados se arrogarem o direito de tributar determinados factos passíveis de gerarem imposto” é afirmação pacífica, que não merece contestação. O que não se vislumbra é em que possa ajudar a interpretar ou a definir o âmbito de aplicação do artigo 35º, nº 1, do EBF.


Com o objectivo de demonstrar a Vossa Excelência o quanto a questão da dupla tributação se afasta da que aqui está em apreço, recorro à definição de dupla tributação internacional constante do ponto 1. da Introdução do Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património aprovado pela OCDE nos termos da qual (1):



«A dupla tributação jurídica internacional pode ser definida, em termos gerais, como a incidência de impostos equiparáveis em dois (ou mais) Estados relativamente a um mesmo contribuinte, ao mesmo facto gerador e a períodos de tempo idênticos»


Evidente se torna, pois, que não será pelo recurso à figura da dupla tributação internacional que chegará a esclarecer-se o âmbito e o sentido da isenção constante do artigo 35º, nº 1, do EBF, já que esta norma não tem subjacente:



a) qualquer situação de eventual aplicação de dois impostos, pois é manifesto que versa única e exclusivamente sobre o âmbito de incidência e isenção do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares;


b) qualquer situação em que dois Estados se arroguem o poder de tributar o mesmo contribuinte, no mesmo período temporal, pois nenhum Estado para além do português pode tributar os rendimentos auferidos pelos Reclamantes enquanto trabalhadores portugueses ao serviço das Embaixada da Suécia e da Embaixada Britânica em Portugal.


Com efeito, no caso em apreço pode apenas ocorrer uma de duas situações: ou se verificam os requisitos de isenção previstos no artigo 35º, nº 1, do EBF e os Reclamantes encontram-se isentos de IRS quanto às remunerações auferidas ao serviço das Embaixadas supra mencionadas, ou não se verificam tais requisitos e os Reclamantes ficam sujeitos ao pagamento de IRS. Nenhuma possibilidade existe de qualquer outro Estado – para além do português – se arrogar o direito de tributar os rendimentos em causa.


Dito de outro modo, inexiste qualquer vínculo ou elemento de conexão com outro (s) Estado (s) que permita a conclusão de que uma eventual isenção concedida ao abrigo do artigo 35º do EBF tem por fundamento impedir que as mesmas remunerações sejam tributadas, cumulativamente, em Portugal ou nesse outro (s) Estado (s).


Para concluir estes breves considerandos sobre a diferença entre as normas que atribuem benefícios fiscais e as que visam evitar situações de dupla tributação internacional, permito-me apontar a principal diferenças entre ambas, para que então se possa concluir, com certeza, qual o tipo de norma que se encontra vertido no artigo 35º do EBF: as normas que visam evitar a dupla tributação internacional em matéria de impostos sobre o rendimento constam, regra geral, de convenções bilaterais celebradas entre Estados – que, conforme se diz no ponto 15. do Parecer da DSBF supra mencionado, tomam geralmente por base o Modelo de Convenção da OCDE, também já acima referido – e visam evitar que o mesmo indivíduo pague, em dois (ou mais) Estados diferentes, impostos semelhantes sobre um mesmo rendimento. Já as normas que consagram benefícios fiscais constam da legislação interna de cada Estado e podem ter, à partida, objectivos da mais diversa natureza, não raro relacionados com objectivos de política sócio-económica que cada Estado julga pertinente alcançar em determinado momento, tendo sobretudo como efeito dispensar – total ou parcialmente – do pagamento do imposto aquele que, se não fosse a norma de isenção, se encontrava obrigado a tal pagamento.


Simplificando: enquanto as normas que visam evitar a dupla tributação internacional têm por objectivo evitar que o sujeito passivo seja penalizado com o pagamento de imposto em duplicado, as normas que consagram benefícios fiscais dispensam o sujeito passivo do pagamento do único imposto que lhe seria aplicável caso tal benefício fiscal não existisse (2).


Queira perdoar, Senhora Ministra, esta sumária referência a alguns conceitos teóricos subjacentes à problemática deste processo. Embora sabendo que, por Vossa Excelência, tal referência é manifestamente desnecessária, não pude deixar de aqui a introduzir, atento o teor da resposta que me foi dada pela administração tributária quando por mim questionada quanto ao âmbito de aplicação do artigo 35º do EBF. É precisamente a este assunto que voltarei de seguida, até porque é esse o motivo pelo qual dirijo a Vossa Excelência a presente Recomendação.



V
– O artigo 35º, nº 1, alínea a), do CIRS. O direito internacional aplicável


Conforme já tive oportunidade de referir, da letra do artigo 35º, nº 1, do EBF, resultam desde logo claros quais os dois requisitos – não cumulativos – necessários ao reconhecimento da isenção de IRS destes trabalhadores: é necessário que a isenção resulte do direito internacional aplicável ou que haja reciprocidade.


O âmbito de aplicação desta isenção começa, pois, por estar dependente de uma questão prévia: a de saber a que instrumentos normativos o legislador quis fazer referência quando utilizou a expressão “direito internacional aplicável”. Dito de outro modo, importa apurar quais são as fontes de direito internacional público, pois aí estarão contidas as normas de direito internacional a que o legislador faz referência.


Falar de fontes de direito internacional passa, necessariamente por uma referência, ainda que breve, ao disposto no artigo 38º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça (ETIJ). Aliás, os quatro autores nacionais que consultei acerca deste assunto tomam igualmente aquela norma do ETIJ como ponto de partida para os seus estudos sobre as fontes do direito internacional público (3).


Decorre do citado artigo 38º do ETIJ, que as principais normas de direito internacional são:



“as convenções internacionais, gerais ou especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados em litígio” (art. 38º, nº 1, alínea a));


“o costume internacional, como prova duma prática geral aceite como sendo de Direito” (art. 38º, nº 1, alínea b));


“os princípios gerais de Direito reconhecidos pelas nações civilizadas” (art. 38º, nº 1, alínea c)).


A alínea d) do mesmo artigo faz ainda referência ao papel da jurisprudência e da doutrina dos publicistas das várias nações como fontes de direito internacional público.


A doutrina é pacífica quanto ao reconhecimento de cada uma destas fontes de direito internacional. As principais divergências doutrinais a este respeito surgem, não quanto ao reconhecimento destas normas, mas antes quanto à forma como se hierarquizam entre si, questão absolutamente irrelevante para o caso vertente.


De entre as fontes de direito internacional acima enunciadas, importa analisar com especial atenção a norma referida em primeiro lugar – as convenções internacionais – já que a conclusão a alcançar terá a maior relevância na concretização do âmbito de aplicação do artigo 35º do EBF.


Da definição do que sejam “convenções internacionais” se ocupa também a doutrina supra mencionada, nas obras citadas (cfr. nota de rodapé 4, supra). Sem querer alongar-me demasiado, permito-me citar aqui esses autores:


Para Jorge Miranda “por tratado ou convenção internacional entende-se um acordo de vontades entre sujeitos de Direito internacional constitutivo de direitos e deveres ou de outros efeitos nas relações entre eles” (ob. cit., págs. 75).


No mesmo sentido, André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros definem a convenção ou tratado como “um acordo de vontades, em forma escrita, entre sujeitos de Direito Internacional, agindo nessa qualidade, de que resulta a produção de efeitos jurídicos.” (ob. cit. págs.173)


Por fim, e de forma ainda mais simples, Eduardo Correia Baptista define tratado como “todo o acordo fundado no DIP”, esclarecendo ainda que “na prática internacional, o Tratado surge sob várias designações, além de tratado, como convenção, acordo…” (ob. cit., págs. 151 e 153, respectivamente – sublinhado meu).


Assentes estas questões terminológicas, retomemos a questão de saber quais as normas de “direito internacional aplicável” a que o legislador terá querido referir-se no artigo 35º do EBF.


Estando em causa, como está, a definição do regime aplicável aos trabalhadores de missões diplomáticas e postos consulares, o legislador terá querido referir-se, desde logo, às normas constantes das Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas e sobre Relações Consulares, aprovadas para adesão, respectivamente, pelo Decreto-Lei nº 48 295, de 27.03.1968 e pelo Decreto-Lei nº 183/72, de 30 de Maio.


Ora, da análise do disposto nas referidas Convenções em matéria de fiscalidade, resulta que as mesmas conferem isenções, essencialmente, a agentes diplomáticos e seus familiares, bem como a membros dos postos consulares que não sejam nacionais nem residentes permanentes do Estado receptor – cfr. artigos 1º, 34º e 37º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas e artigos 1º, 49º, 66º e 71º da Convenção de Viena sobre Relações Consulares


Quanto aos trabalhadores ao serviço das missões diplomáticas e dos postos consulares estrangeiros, – aí incluído o respectivo pessoal administrativo e técnico, bem como o pessoal do serviço doméstico -, apenas beneficiarão de isenção de impostos (nomeadamente sobre o rendimento) aqueles trabalhadores que não sejam nacionais do Estado acreditador ou receptor, nem nele tenham residência permanente.


É precisamente porque das citadas Convenções de Viena não resultam, directamente, quaisquer isenções de tributação em impostos sobre o rendimento para os trabalhadores ao serviço das missões diplomáticas e postos consulares estrangeiros que sejam residentes e nacionais do Estado acreditador ou receptor, que a isenção de IRS pretendida pelos Reclamantes lhes vem sendo recusada. Por isso e porque a administração tributária entende, por um lado, que o “direito internacional aplicável” referido no artigo 35º do EBF se esgota nestas Convenções e, por outro lado, que só a existência de um acordo formal de reciprocidade permite considerar preenchido o segundo requisito constante do citado artigo 35º: a existência de reciprocidade.


Creio que o que acima ficou dito acerca das fontes de direito internacional e acerca das noções de acordo, tratado ou convenção revela já um primeiro aspecto da incorrecção desta posição da administração tributária.


Com efeito, caso Portugal tivesse celebrado um acordo de reciprocidade com a Suécia ou com o Reino Unido, do qual resultasse que o pessoal das respectivas missões diplomáticas e consulares que fosse nacional e residente de cada um dos Estados estaria isento de imposto sobre o rendimento relativamente às remunerações auferidas nessa qualidade, não estariam os Reclamantes isentos de IRS por força do direito internacional aplicável? Evidentemente que sim, dado que as normas de tais acordos consubstanciariam, sem margem para dúvidas, normas de direito internacional.


Da importância desta conclusão se aferirá melhor na parte seguinte da presente Recomendação.



VI
– O artigo 35º, nº 1, alínea a), do CIRS. Situação de reciprocidade e acordo de reciprocidade


Analisada a primeira parte da norma contida no nº 1 do artigo 35º do EBF e a sua expressão “nos termos do direito internacional aplicável”, apreciar-se-á agora a segunda parte da mesma norma e a expressão “ou desde que haja reciprocidade”.


No Parecer da DSBF a que acima fiz referência, a interpretação que é feita desta última expressão é no sentido de que, repete-se, para que tal reciprocidade seja considerada, é essencial a existência de um acordo de reciprocidade, ou seja, e nos termos utilizados no referido Parecer, é essencial a existência de um “acordo internacional celebrado entre Portugal e outro (s) Estado (s)”.


Uma dúvida me suscita, desde logo, este entendimento: dizer-se que a expressão “desde que haja reciprocidade” tem subjacente a exigência de um acordo formal de reciprocidade celebrado entre Portugal e outro (s) Estado (s), não fará deste segundo requisito constante do artigo 35º, nº 1, alínea a), do EBF, uma repetição parcial do primeiro requisito?


Face ao que ficou dito na parte V da presente Recomendação, e à conclusão de que tal acordo internacional mais não é do que parte do “direito internacional aplicável”, a resposta pode apenas ser positiva.


Com efeito, perante a existência de tal acordo formal de reciprocidade, a situação de isenção estaria garantida à luz da primeira parte do artigo 35º, nº 1, alínea a). Suponhamos, por exemplo, uma eventual alteração legislativa que suprima o requisito constante da segunda parte do artigo 35º, nº 1, alínea a), do EBF, isto é, que suprima a expressão “ou desde que haja reciprocidade”. Tal alteração não afectaria a isenção de que beneficiasse o pessoal de missões diplomáticas ou consulares abrangido por acordos de reciprocidade formais.


Assim sendo, cumpre questionar a utilidade da consagração, pelo legislador fiscal, de um segundo requisito que, por si só – isto é, de forma não cumulativa com o requisito anterior – seja susceptível de fundamentar a isenção de IRS dos trabalhadores das missões diplomáticas e consulares. A única resposta que encontro é a de que o legislador quis isentar de IRS os trabalhadores que, embora não sejam abrangidos por qualquer norma de direito internacional que consagre tal isenção, prestam serviço em missões diplomáticas ou postos consulares de Estados acreditantes que, no seu ordenamento jurídico interno, consideram isentas de tributação em imposto sobre o rendimento as remunerações auferidas por trabalhadores em situação idêntica à sua.


Aproximando novamente esta conclusão ao caso em apreço: uma vez que já se concluiu que os trabalhadores das missões diplomáticas e postos consulares acreditados em Portugal que sejam portugueses e residam permanentemente em Portugal não beneficiam de qualquer isenção de IRS, nem ao abrigo das Convenções de Viena sobre Relações Consulares e Diplomáticas, nem ao abrigo de qualquer acordo de reciprocidade celebrado pelo Estado português, resta aos interessados fazer prova de que as normas de direito interno dos países em cuja Embaixada exercem funções consagram isenção de imposto sobre o rendimento relativamente às remunerações auferidas pelos trabalhadores de missões diplomáticas e postos consulares acreditados nesse mesmo Estado, que sejam seus nacionais e residentes permanentes.


Foi com esse objectivo, precisamente, que os Reclamantes diligenciaram – e bem – pela obtenção dos documentos que constituem os documentos nºs 1 e 2, anexos à presente Recomendação.


Permita-me ainda Vossa Excelência que saliente o facto de a relevância que o legislador fiscal atribuiu, no artigo 35º do EBF, à reciprocidade como situação de facto (por oposição à reciprocidade consagrada em qualquer acordo formal entre Estados), não ser, sequer, inovadora no nosso ordenamento jurídico.


Veja-se, por exemplo, a norma constante do artigo 14º, nº 2, do Código Civil (4), que faz depender do tratamento concedido aos portugueses noutros Estados pelo respectivo direito interno, o tratamento que os nacionais desses Estados receberão em Portugal.


Veja-se, ainda, o artigo 15º da Constituição da República Portuguesa (CRP), em cujos nºs 3, 4 e 5 é admitida a atribuição de direitos adicionais a estrangeiros, desde que tal atribuição seja efectuada por lei e em condições de reciprocidade.


Que a própria Lei Fundamental não quis sujeitar esta concessão de direitos adicionais à prévia celebração de qualquer acordo de reciprocidade com outros Estados mas apenas fazê-la depender da vontade do legislador nacional e da existência de uma situação de facto de reciprocidade, provam-no, para além da clareza da letra da lei, a comparação da redacção actual desta norma com a redacção que veio substituir e que constava da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro.


Com efeito, embora os nºs 3, 4 e 5 do artigo 15º da CRP, na redacção anterior à actualmente vigente também fizessem depender a atribuição de direitos adicionais a alguns estrangeiros, da reciprocidade, faziam-no sob duas formas distintas: nos nºs 4 e 5 do referido artigo 15º, o mecanismo utilizado era o que hoje também vigora, isto é, a lei podia consagrar tais direitos, desde que em condições de reciprocidade. Porém, no caso previsto no nº 3 do mesmo artigo, já se exigia que a atribuição de direitos adicionais a determinados estrangeiros fosse consagrada em convenção internacional e em condições de reciprocidade. Aqui sim, não bastaria a mera vontade do legislador nacional para atribuir tais direitos, ainda que aliada a uma situação de facto de reciprocidade: neste caso era expressamente exigida uma convenção internacional que consagrasse tais direitos e que os mesmos fossem também garantidos pelo outro Estado contratante aos cidadãos portugueses nas mesmas condições.


Veja-se, por último, o regime constante do Decreto-Lei nº 143/86, de 16 de Junho, relativo aos condicionalismos a que está submetida a isenção de IVA concedida às representações diplomáticas e consulares de carreira e ao seu pessoal não nacional. Os nºs 1 e 2 do artigo 3º-A do referido diploma, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 296/2001, de 21 de Novembro, consagram os requisitos essenciais à concessão de isenção de IVA na aquisição ou importação de veículos automóveis, dispondo o nº 5 do mesmo artigo que “o disposto nos nºs 1 e 2 poderá ser condicionado à verificação de condições de reciprocidade entre Portugal e o país a que pertence a respectiva representação diplomática ou consular”.


Em nenhum momento o normativo citado impõe qualquer exigência de “acordo formal de reciprocidade”, bastando-se com a exigência de “condições de reciprocidade”. Daí que, ao que julgo saber, não vem aquele “acordo formal” sendo exigido pela administração tributária como requisito de aplicação da isenção de IVA nos casos abrangidos pelo diploma em causa.


Queira Vossa Excelência relevar algum afastamento relativamente à questão essencial. Fi-lo apenas para melhor demonstrar que a conclusão a que cheguei foi fundamentada, não só na análise cuidadosa das disposições legais aplicáveis, como ainda na melhor doutrina, tendo tido igualmente subjacentes preocupações de coerência com as restantes normas do nosso ordenamento jurídico e com a tradição legislativa nacional.



VII
– Conclusões –


Não posso, pois, deixar de manifestar total discordância quanto ao entendimento consagrado no Parecer nº 1595/01, da DSBF, sancionado por Despacho de 25.10.2001, do Exmº Subdirector-Geral dos Impostos, e posteriormente adoptado na Circular nº 22, de 30.09.2002, da DSBF, relativamente à interpretação da expressão “desde que haja reciprocidade”, constante do artigo 35º do EBF.


A conclusão a que chego – e que, estou certo, Vossa Excelência não deixará de acompanhar – é a de que o legislador quis isentar de IRS os trabalhadores que, embora não sejam abrangidos por qualquer norma de direito internacional que consagre tal isenção, prestam serviço em missões diplomáticas ou postos consulares de Estados acreditantes que, no seu ordenamento jurídico interno, consideram isentas de tributação em imposto sobre o rendimento as remunerações auferidas por trabalhadores em situação idêntica à sua.


Só assim ganha sentido útil a autonomização da reciprocidade como requisito para, por si só, independentemente do direito internacional aplicável (nomeadamente daquele que resulte de acordos bilaterais entre os Estados), fundamentar a isenção de IRS consagrada no artigo 35º do EBF.


É certo que a referida reciprocidade terá de ser aferida caso a caso, Estado a Estado, ano a ano, pela própria administração tributária nacional, quer através da solicitação, aos interessados, de meios de prova da reciprocidade que alegam, quer através da solicitação da colaboração de administrações tributárias estrangeiras, mas este processo não se revela de execução mais difícil do que o processo de constatação e prova das situações de reciprocidade a que fiz referência na parte VI da presente Recomendação, vigentes desde há muito no nosso ordenamento jurídico.


Não posso, por último, deixar de fazer uma breve referência a um outro aspecto prático que a resolução desta questão acarreta, já não relacionado com a aplicação, para futuro, da isenção consagrada no artigo 35º do EBF, mas sim com a sua aplicação aos casos concretos dos dois contribuintes identificados na parte I do presente texto, relativamente aos anos de 1998 a 2001.


Não desconheço os esforços que vêm sendo desenvolvidos, nomeadamente pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, no sentido de clarificar e uniformizar definitivamente o regime tributário do pessoal local das missões diplomáticas e consulares. Nesse sentido, e ao que julgo saber, têm vindo a ser divulgadas instruções aos serviços da Direcção-Geral dos Impostos para que se concretizem as medidas preconizadas pelos Despachos nºs 180/2002 e 693/2002, proferidos pelo anterior Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais em 11 de Janeiro e 28 de Março do corrente ano, respectivamente.


Com base em tais Despachos e, ainda, em Despacho proferido pelo antecessor de Vossa Excelência em 2 de Abril do corrente ano, aguarda o pessoal local das missões diplomáticas e consulares a revisão oficiosa dos actos de liquidação de IRS que tenham incidido sobre os seus rendimentos dos anos de 1998 a 2001, desde que as declarações entregues pelos contribuintes nos anos em causa tenham obedecido a determinados requisitos, devidamente elencados naqueles Despachos.


Quer isto dizer que, por esta via – mais simples e mais abrangente do que a via do reconhecimento da situação de reciprocidade prevista no artigo 35º do EBF – os dois cidadãos a que venho fazendo referência poderão ver revistas as suas liquidações de IRS dos anos de 1998 a 2001. Se assim for, importa garantir que a esperada decisão de acatamento da presente Recomendação em nada prejudique (nomeadamente que não torne mais morosa) a revisão das liquidações oficiosas de IRS destes dois cidadãos.


Pelas motivações expostas, devo exercer o poder que me é conferido pela disposição compreendida no art.º 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, e, como tal, Recomendar a Vossa Excelência:







1. Que sejam veiculadas instruções – eventualmente através da alteração da Circular nº 22, de 30.09.2002, da Direcção de Serviços dos Benefícios Fiscais – no sentido de a isenção consagrada no artigo 35º, nº 1, alínea a), do EBF, ser aplicada sempre que se verifique uma situação de reciprocidade, entendida esta nos termos da presente Recomendação, isto é, como uma reciprocidade de facto, sem dependência da existência de qualquer acordo bilateral entre Estados que consagre ou reconheça tal reciprocidade.


2. Que, relativamente aos casos concretos dos dois cidadãos identificados na parte I da presente Recomendação:


2.1. Seja ordenada a revisão oficiosa das respectivas liquidações de IRS dos anos de 1998 a 2001, a fim de as mesmas passarem a reflectir a aplicação da norma de isenção em causa. Tal revisão oficiosa deverá ter por base o disposto no artigo 78º, nº 1, da Lei Geral Tributária, sem prejuízo da prévia realização das diligências adicionais que a administração tributária entenda levar a efeito para confirmar – nomeadamente junto das administrações tributárias sueca e britânica – a existência das situações de reciprocidade de facto alegadas pelos interessados.


2.2. Atendendo a que está em curso um processo global de revisão oficiosa dos actos de liquidação de IRS do pessoal local das missões diplomáticas e consulares acreditadas em Portugal – processo esse que poderá também abranger as liquidações de IRS/1998 a 2001 dos dois contribuintes a que me venho referindo – o recomendado no ponto 2.1., supra, deverá ceder caso se conclua que o mesmo objectivo pode ser alcançado de forma mais expedita no âmbito do referido processo global de revisão oficiosa das liquidações de IRS/1998 a 2001.


Queira Vossa Excelência, em cumprimento do dever consagrado no art. 38º, nº 2, do Estatuto aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, dignar-se informar-me sobre a sequência que o assunto venha a merecer.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 





Notas de rodapé:


(1) In Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal nº 172. Lisboa, 1995, págs. 9
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(2) Nem todos os benefícios fiscais se traduzem na dispensa do pagamento do imposto mas é esse o único tipo de benefício fiscal que está em causa nesta comparação entre normas que consagram benefícios fiscais e normas que evitam a dupla tributação internacional.
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(3) André Gonçalves Pereira e Fausto Quadros in “Manual de Direito Internacional Público”, Almedina, 3ª edição, 1993, págs. 151 e sgts; Jorge Miranda in “Direito Internacional Público – I”, Lisboa, 1995, págs., 55 e sgts e Eduardo Correia Baptista in “Direito Internacional Público – Conceito e Fontes, Vol. I, Lex, Lisboa, 1998, págs. 65 e sgts.
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(4) Nos termos do qual: “Não são, porém, reconhecidos aos estrangeiros os direitos que, sendo atribuídos pelo respectivo Estado aos seus nacionais, o não sejam aos portugueses em igualdade de circunstâncias” 
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