RECOMENDAÇÃO N.º 7/A/2001
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)

 

Entidade visada: Sua Excelência o Ministro da Administração Interna
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-3368/98
Data: 2001/05/10

 

Assunto: Naturalização de bolseiros ao abrigo da cooperação com os PALOP.

 

I

 

RC, AL e AM, nacionais, respectivamente das Repúblicas de Cabo-Verde, da Guiné-Bissau e de Moçambique, residentes em Portugal, solicitaram a intervenção do Provedor de Justiça relativamente à sua pretensão de aquisição de nacionalidade portuguesa por naturalização, queixando-se que os seus processos aguardam decisão ou foram indeferidos por terem beneficiado do estatuto de bolseiros do Estado português, ao arrimo dos acordos de cooperação celebrados com os respectivos países, e incumprido o compromisso de participar directamente no processo de desenvolvimento dos seus países após a conclusão da sua formação académica.

A Dr.ª RC é licenciada em Medicina e beneficiou da bolsa de estudo nos anos lectivos de 1985/86 a 1988/98. Não regressou a Cabo Verde após a conclusão da sua formação académica, exercendo a sua actividade profissional em Portugal, onde detém o estatuto de estrangeira residente desde 1991. Não obstante a naturalização já lhe ter sido denegada, formulou novo pedido em 1994 (proc. 691/94) o qual ainda não foi objecto de decisão. Em Outubro de 1998, o Director de Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, entidade responsável pela instrução destes processos, informa que “o referido processo se encontra a aguardar orientações solicitadas à tutela com vista à emissão de despacho final, uma vez que se encontram pendentes alguns processos de naturalização de requerentes em situação similar”.

A Dr.ª AC é licenciada em Engenharia Geográfica, tendo beneficiado de uma bolsa de estudo durante sete anos lectivos. Vive em Portugal desde 1977, ano em que iniciou o curso complementar dos liceus, tendo obtido o estatuto de estrangeira residente em Portugal há 20 anos. É professora do ensino secundário e mãe de dois filhos de nacionalidade portuguesa. Solicitou a naturalização em 1993 (proc. M-716/93) que aguarda decisão. Em Agosto de 2000 o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras comunicou à reclamante que a “morosidade se deve ao facto de ter usufruído a situação de bolseira, conforme foi constatado pelo parecer do Instituto de Cooperação Portuguesa, pelo que, como todos os casos similares, aguarda uma decisão que não depende deste Serviço”.

Quanto ao Eng.º AM, é licenciado em Engenharia Electrotécnica, verificando-se que a bolsa de estudo foi atribuída a título excepcional para o ano lectivo de 1986/87, sem que tenha subscrito qualquer compromisso de retorno a Moçambique. Em 1991, após a conclusão do seu estágio profissional em Portugal e na Alemanha, retornou a Moçambique, tendo regressado ao nosso país cerca de três anos depois, por não conseguir colocação no mercado de trabalho moçambicano. Trabalha actualmente em Portugal, onde tem residência desde 1978. De assinalar que este reclamante prestou serviço militar no exército português entre 1972 e 1974, no então Estado de Moçambique. O seu pedido de naturalização foi recusado em 1995 “por ter beneficiado da situação de bolseiro do Estado português, sob o compromisso de após a conclusão da sua formação ir participar no desenvolvimento científico e técnico do seu país”, motivação que igualmente justificou o indeferimento do pedido de reapreciação do processo.

 

I I

 

O regime de concessão de bolsas de estudo para frequência do sistema educativo português a cidadãos de países africanos em desenvolvimento, em especial dos países de expressão oficial portuguesa, em aplicação dos acordos de cooperação existentes, encontra-se actualmente definido no Despacho Conjunto dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Educação, de 5 de Maio de 1995, publicado no Diário da República (II série) de 18 de Maio de 1995, cujo preâmbulo qualifica o regime especial de ingresso no ensino superior e a concessão destas bolsas de estudo como “um dos instrumentos mais relevantes da política de cooperação entre Portugal e estes Estados”. Por seu lado, o n.º 3º do mesmo diploma identifica como finalidade última das bolsas de estudo a contribuição “através da capacitação humana de carácter científico e técnico para o desenvolvimento sustentado dos países beneficiários”.

Ao arrimo deste preceituado, em cada ano escolar os bolseiros subscrevem uma declaração, através da qual se comprometem perante o Instituto da Cooperação Portuguesa a regressar ao seu país uma vez interrompidos ou terminados os estudos.

De harmonia com o regime estatuído pelo art.º 6º, n.º 1, da Lei nº 37/81, de 3 de Outubro, na versão que lhe foi dada pela Lei nº 25/94, de 19 de Agosto, a naturalização pode ser concedida a cidadãos estrangeiros por decisão governamental mediante solicitação dos interessados que preencham cumulativamente diversas condições(1), expressão do exercício de um poder discricionário traduzido na faculdade de definição pontual e concreta de quem deve integrar a categoria de português (2).

No âmbito da instrução do processo de naturalização, dispõe o art.º 18º, n.º s 7 e 9, do Decreto-Lei nº 322/82, de 12 de Agosto, que serão solicitadas ao Ministério dos Negócios Estrangeiros informações pertinentes que considerarão, em especial, os possíveis inconvenientes da naturalização para as relações de Portugal com o Estado de que o requerente é nacional ou com Estados terceiros. De harmonia com este preceituado, o Instituto da Cooperação Portuguesa vinha emitindo parecer negativo relativamente à concessão da nacionalidade portuguesa aos bolseiros africanos que permaneceram em Portugal, invocando a quebra do compromisso de participar directamente no processo de desenvolvimento científico e técnico dos seus países após a conclusão da sua formação, procedimento que, recentemente, foi restringido à simples informação sobre se o requerente beneficiou ou não do estatuto de bolseiro.

Sustentando-se no parecer negativo daquele Instituto, vinha esse Ministério da Administração Interna adoptando o procedimento de indeferir, em consequência, os pedidos de naturalização formulados por antigos bolseiros africanos residentes em Portugal, ainda que os solicitantes preenchessem os restantes pressupostos legais. Num segundo momento, verifica-se que a instrução destes processos tem permanecido suspensa, tanto quanto me é dado saber, por ausência de definição de orientação alternativa àquela, situação que se vem arrastando muito para lá do que seria razoável, como os casos dos ora reclamantes, acima relatados, demonstram à saciedade.

Tal como é apanágio do exercício de um poder discricionário, a concessão de naturalização implica a ponderação de todas as circunstâncias relevantes para a apreciação do caso concreto com vista à realização dos interesses que se visam prosseguir. O mero enunciado das circunstâncias caracterizadoras das situações dos ora reclamantes permite concluir que o critério seguido, não formalmente substituído embora suspenso, desatende à análise concreta das condições de cada requerente, constituindo-se como uma auto-limitação à liberdade de apreciação inerente ao próprio exercício do poder discricionário, em nome da tutela incondicional dos interesses conexos com a cooperação, em detrimento de quaisquer outros que possam relevar para efeitos de naturalização.

Na verdade, como é jurisprudência constante, não sendo ilegal em si mesma a adopção de critérios de decisão, orientadores da actividade administrativa nesta matéria, os mesmos nunca poderão ser utilizados de forma a olvidar as circunstâncias de cada caso concreto, de alguma forma convertendo o poder discricionário criado e querido pela Lei num poder vinculado.(3)

 

I I I

 

Não é meu propósito, Senhor Ministro, negar a por demais evidente relevância das políticas de cooperação na qual a formação de quadros africanos constitui um importante vector de progresso dos países beneficiários e de consolidação do relacionamento entre os Estados de língua portuguesa. Tão-pouco contesto, em termos abstractos, a relevância da situação de não retorno ao país de origem por parte dos bolseiros africanos no âmbito do processo de naturalização, o que não significa que considere aceitável a sua sobreposição relativamente aos demais factores que mereçam ser tutelados nesta sede processual.

É pois inteiramente legítimo, talvez mesmo desejável na perspectiva da realização do interesse público, a instituição de mecanismos que assegurem a realização dos objectivos a que os programas de cooperação se propõem, dificilmente realizáveis sem a criação de regras próprias e eficazes de responsabilização dos bolseiros pelo incumprimento das obrigações a que se vincularam perante o Estado português, que terão que assentar numa estratégia comum aos diversos organismos estatais envolvidos no processo.

De todo o modo, no que à naturalização diz respeito, a tutela desses interesses deverá avultar na proporção da sua efectiva importância face aos demais valores relevantes, o que exige a definição de critérios de orientação que obstem a decisões arbitrárias ou injustas e, nesta medida, atentatórias dos valores essenciais do Estado de direito democrático tutelados pela Lei Fundamental.

Na verdade, Senhor Ministro, o critério que vinha sendo adoptado revelava-se desproporcionado e injusto por ser manifestamente desadequado cominar a quebra dum compromisso desta natureza (sendo duvidoso que quem subscreva este compromisso tome efectiva consciência deste tipo de repercussões) com um impedimento perpétuo de concretização da legítima expectativa de aceder à nacionalidade portuguesa, cumprindo abundantemente os critérios legais e sem que nenhuma outra razão de índole política o impeça, não se identificando qualquer conexão directa entre estas duas realidades que justifique uma penalização desta grandeza. Por outro lado, é totalmente irrazoável que os interesses subjacentes à cooperação com os PALOP se sobreponham de forma absoluta e definitiva sobre quaisquer outros valores em jogo no processo de naturalização, obstando à ponderação das circunstâncias concretas que rodeiam a situação dos requerentes. Realço a este propósito os valores de integração e de pertença efectiva à comunidade nacional, inerentes a qualquer juízo de valor em matéria de naturalização – que a têm sustentado no que toca a tantos cidadãos dos países africanos de expressão oficial portuguesa -, não se vislumbrando qualquer razão ponderosa para que aqui sejam pura e simplesmente ignorados.

A título exemplificativo, faço notar o paradigmático caso do Eng.º AM, no qual foi inteiramente desatendido o facto de se tratar de um antigo militar do exército português, mais a mais tendo na realidade tentado contribuir para o desenvolvimento do seu país de origem após a conclusão da sua formação universitária.

Se este critério se revelava merecedor de censura, não pode o Provedor de Justiça ser agora indiferente ao actual estado de estagnação processual e da consequente omissão do dever de decisão que se observa quanto a esta matéria. Se em determinadas circunstâncias a negação da naturalização com aquelas motivações se afigura como uma decisão desproporcionada, o prolongamento indefinido da situação de incerteza em que os ora requerentes vivem revela-se uma situação totalmente inadmissível num Estado de Direito. Não será despropositado sublinhar que o facto de não assistir aos requerentes um direito à naturalização não legitima, em caso algum, o atropelo da obrigação legal de decidir e consequente direito a obter uma resposta fundamentada à sua pretensão em tempo razoável. Exemplifico apenas com o caso do processo de naturalização da Dr.ª AC, iniciado em 1993 e que continua a aguardar decisão, isto é, oito anos volvidos.

É deveras contraditório que o Estado fomente a estes indivíduos expectativas desta natureza, designadamente através do acesso ao estatuto de estrangeiro residente, mas lhes negue o acesso à nacionalidade do país que os acolhe, seja através da denegação pura e simples da sua pretensão, seja por via de uma interminável situação de incerteza que, afinal, é a forma mais perversa de denegação. Todo este lamentável processo permite-me concluir que o Estado português frustra há longos anos, por diversas formas, as legítimas expectativas de cidadãos plenamente integrados na sociedade portuguesa, que aqui organizaram a sua vida profissional e constituíram família, tão-só porque omite a definição de um regime sancionatório claro, em termos de necessidade, proporcionalidade e adequação à quebra do compromisso assumido pelos candidatos a bolseiros no âmbito da cooperação com os PALOP.

 

I V

 

Na verdade, como Vossa Excelência terá conhecimento, a problemática da naturalização dos antigos bolseiros africanos tem subjacente a questão da ausência de regras legais que sancionem o incumprimento do dever de regresso aos seus países, corolário normal de qualquer regime de concessão de benefícios desta natureza, sem as quais é legítimo questionar os resultados do investimento humano e financeiro despendidos neste domínio da cooperação com África.

O que actualmente sucede é que após o termo da sua formação académica uma boa parte dos bolseiros permanece em Portugal, sem que lhes seja assacada qualquer responsabilidade pelos benefícios que injustificadamente foram concedidos no tocante ao ingresso no sistema de ensino português e à atribuição das bolsas de estudo. Deste cenário resulta que todos aqueles que não solicitem a naturalização não sofrem qualquer tipo de penalização por terem defraudado o compromisso assumido de contribuir para o desenvolvimento sustentado dos seus países. Também não posso ficar indiferente ao que esta injusta situação representa para o interesse público, não só quanto aos resultados da cooperação mas também no que se refere à aplicação indevida de dinheiros públicos.

Por este motivo dirigi a Sua Excelência o Ministro dos Negócios Estrangeiros uma proposta no sentido de que fosse ponderada a instituição de mecanismos legais de responsabilização dos bolseiros em causa, após a conclusão dos seus estudos, que acautelem os objectivos visados pelos acordos de cooperação com os PALOP e permitam ao Estado português fazer-se ressarcir pelo investimento humano e material infundadamente realizado, por considerar ser este o âmbito adequado para o Estado sancionar, de maneira legítima e proporcionada, a violação dos interesses que, considerando defraudados, vem penalizando de forma assaz ínvia, negando a naturalização ou paralisando a sua concessão.

Tomo a liberdade de anexar, para conhecimento de Vossa Excelência, o ofício que dirijo a Sua Excelência o Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Concluo assim que:

a) a rejeição automática dos pedidos de naturalização, com fundamento no incumprimento do compromisso anteriormente assumido de regresso ao país de origem, viola a norma do art.º 6.º, n.º 1, da Lei nº 37/81, na medida em que procede a uma auto-vinculação estrita, aí onde a norma pretende o exercício da discricionariedade;

b) a “suspensão” da tramitação de processos pendentes viola o dever de resposta expressa aos peticionantes da decisão de naturalização.

 

Assim sendo, por força das razões aduzidas, ao abrigo do disposto no art.º 20º, n.º 1, al. a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, recomendo a Vossa Excelência que :

os processos de naturalização formulados por antigos bolseiros do Estado português, não só mas também os dos reclamantes identificados em epígrafe, sejam decididos com a maior brevidade, não assumindo uma eventual violação do compromisso de retorno um carácter absolutamente prejudicial ao deferimento da sua pretensão, antes se recorrendo aos critérios que permitam a livre apreciação e ponderação de todos os interesses e circunstâncias relevantes para a boa decisão dos pedidos em causa.

 

Nos termos do art.º 38.º, n.º 2, da mesma Lei, aguardo de Vossa Excelência a comunicação do entendimento que assume face a esta minha Recomendação.

Aproveito a oportunidade para apresentar a Vossa Excelência os meus melhores cumprimentos,

O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues

Notas de rodapé:

(1) Maioridade, residência em Portugal há, pelo menos, seis ou dez anos, caso se trate, respectivamente de nacionais de países de língua oficial portuguesa ou de outros países, conhecimento suficiente da língua portuguesa, ligação efectiva à comunidade nacional, idoneidade cívica e capacidade para reger as suas pessoas e prover à sua subsistência.
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(2) Cf. Rui de Moura Ramos, Do direito português da nacionalidade, pg. 146.
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(3) Cf. a respeito, acórdãos do STA de 1995.04.26, 1997.02.19 e 1998.02.18, publicados respectivamente no BMJ 446/83, 464/585 e 474/227, nos dois últimos casos em sumário.
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