RECOMENDAÇÃO N.º 1/A/2001
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Armamar
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-3728/98
Data: 2001/01/17
Área: A1


Assunto: Urbanismo. Obras ilegais. Demolição.


I – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS


§ 1 – Dos Factos


1. Foi apresentada reclamação relativa às obras de ampliação realizadas pelo Senhor F…, alterando a fachada da sua casa, sita em S. Martinho das Chãs, bem como a fachada da edificação contígua, à revelia do consentimento do respectivo proprietário, criando um obstáculo à iluminação do vão de janela aberto nesta fachada e impossibilitando a realização e obras de beneficiação na mesma.


2. A fim de habilitar a instrução do processo foi questionada a Câmara Municipal de Armamar quanto às medidas adoptadas para resolução do assunto, no âmbito dos poderes de polícia que às câmaras municipais são atribuídos em matéria de legalidade urbanística das obras de construção particulares.


3. Em resposta, veio essa Câmara Municipal dar conta da emissão de uma ordem de demolição das obras executadas em 23 de Dezembro de 1998, mais informando que, na falta de cumprimento voluntário pelo destinatário da ordem proferida, havia remetido o processo ao consultor jurídico, para intentar acção judicial com vista a proceder à demolição dessas obras.


4. Contudo, desde então desconhece-se qualquer desenvolvimento da situação, não tendo sido realizadas as preconizadas obras de demolição.


5. Mantém-se, pois, inalterada a situação de obras ilegais que constituiu o objecto do presente processo, não obstante o dilatado lapso temporal decorrido desde a emissão da ordem de demolição daquelas obras.


§ 2 – Do Direito


6. Deve, primeiramente, notar-se que o exercício do referido poder de demolição, relativamente a obras particulares não precedidas do devido licenciamento, encontra apoio na lei. Com efeito, nos termos do art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto nº 38382, de 7 de Agosto de 1951, compete às câmaras municipais ordenar “a demolição ou o embargo das obras executadas em desconformidade com o disposto nos artigos 1º a 7º“. Também o art. 58º do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro (Regime Jurídico do Licenciamento Municipal de Obras Particulares) prevê o poder de demolição “das obras realizadas sem a respectiva licença ou em desconformidade com ela, quando for caso disso, por parte do presidente da câmara municipal”.


7. Trata-se, como decorre do enunciado literal dos preceitos citados, de um poder aparentemente discricionário. O município, através dos seus órgãos competentes, avalia os pressupostos de facto e decide em ordem à boa prossecução do interesse público local sobre o mérito da demolição da obra ilegal.


8. Isto, pois “se a obra apesar de não licenciada corresponder às exigências materiais da ordem jurídica não há interesse público na sua demolição” (MONTEIRO, Cláudio, O embargo e a demolição de obras no direito do urbanismo, Lisboa, 1995, p.147).


9. Contudo, certo é que este poder discricionário sofre uma importante limitação por via de quanto se estabelece no art. 167º do RGEU. Ali se reduz a discricionariedade a uma de duas alternativas: ou o presidente da câmara municipal ordena a demolição da obra ilegal ou reconhece que a mesma é “susceptível de vir a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade“, devendo para tal efeito, obter do interessado a legalização. O exercício do poder conferido no art. 167º irá produzir uma vinculação no poder de demolir.


10. Por outras palavras, nada resta à câmara municipal ou ao presidente se não ordenar a demolição da obra, caso esta não possa ou não venha a ser legalizada.


11. É esta a posição que tem ganho crescente acolhimento no Supremo Tribunal Administrativo, ilustrada no Acórdão de 11.6.1987 (in Acórdãos Doutrinais, 322, pp. 1176 e segs) e no Acórdão de 6.11.1990 (Procº 28440, in AJ, nºs 13-14, p.35). Neste aresto pode ler-se que “caso os particulares ou pessoas colectivas procedam a construções sem licença ou com inobservância das condições desta, dos regulamentos, posturas municipais ou planos directores, de urbanização ou de pormenor em vigor, devem as câmaras municipais, no exercício de um poder vinculado, ordenar a demolição dessas construções“.


12. Por seu turno, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de Junho de 1987 (cit., p. 1181), ao indeferir um pedido de legalização de uma obra, a câmara municipal fica “obrigada a ordenar vinculadamente a demolição, por força do art. 167º do RGEU. E a ordená-la sem a faculdade de escolher o momento mais oportuno de agir, porquanto o juízo que, com base em critérios técnicos, formulou acerca da obra, não se coadunava com a abstenção, por esta afectar desde logo os interesses colectivos de estética urbana que a competência conferida às câmaras municipais visa proteger”.


13. Isto significa, em conclusão, que caso não seja ou não possa ser exercido o poder de legalização a posteriori (art. 167º do RGEU), a discricionariedade optativa do art. 165º do RGEU – entre ordenar a demolição ou legalizar – fica reduzida a um poder-dever de ordenar a demolição. Neste mesmo sentido se deve entender o art. 58º, nº 1, do regime aprovado pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, ao atribuir ao presidente da câmara o poder de ordenar a demolição, quando “for caso disso”.


14. No caso em apreço, essa ponderação já terá sido feita, na medida em que a ordem de demolição foi proferida, não tendo sido acatada voluntariamente.


15. Não procedeu, porém, a Câmara Municipal de Armamar à execução coactiva da ordem de demolição, permitindo a subsistência, por tempo indefinido, de uma obra formal e materialmente ilegal, porquanto realizada sem licença e mostrando-se insusceptível de legalização.


16. É que não se vislumbra qual o interesse público que norteia a abstenção camarária em questão. A ordem jurídica não se compadece com a subsistência de obras ilegais: se não se mostrar viável a legalização, mais não resta que ordenar a demolição das construções (nos termos dos já citados artigos 167º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, e 58º, do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro).


17. Com efeito, quando as obras não são susceptíveis de legalização, apenas a demolição garante a completa reposição da legalidade urbanística e a adequada reintegração dos interesses legítimos de terceiros, sendo a única medida de tutela da legalidade urbanística possível.


18. Diversamente, veio a Câmara Municipal de Armamar a ponderar a instauração de procedimento judicial para o efeito.


19. Não se pode, porém, aceitar que a prolação das medidas adequadas dependa do referido processo judicial. Desde logo, porque não se vislumbra, no caso em presença, a necessidade de obtenção de sentença judicial com vista à execução do acto que ordenou a demolição do edificado.


20. É que só se mostraria necessário o recurso aos Tribunais comuns, se o proprietário da edificação tivesse demonstrado a sua oposição à entrada dos funcionários municipais, invocando a inviolabilidade do domicílio (art. 34º, nº 2, da Constituição) o que não merece referência em qualquer das informações prestadas.


21. Dispondo a Administração do poder de exigir de terceiros o cumprimento das obrigações e o respeito das limitações que decorrem dos actos administrativos, e não sendo necessária a intervenção do tribunal para tornar efectivas as medidas neles contidas (art. 149º, nº 2, do Código do Procedimento Administrativo), a actividade concreta desenvolvida como modo de realização da situação jurídica previamente definida está sujeita aos princípios da legalidade e da auto-tutela declarativa e executiva.


22. Reportam-se os princípios citados às formas admitidas de execução e ao respectivo procedimento (legalidade procedimental). Tratando-se, na presente situação, de execução para a prestação de facto fungível, o procedimento de execução inicia-se com a notificação da decisão de se proceder à execução (art. 152º do CPA), na qual se fixará um prazo razoável para a prática do acto devido, com indicação dos termos em que a execução terá lugar, no caso de incumprimento (art. 157º, nºs 1 e 2, do CPA).


23. A execução por via coactiva dos actos administrativos é, assim, uma das restrições legais ao direito à inviolabilidade do domicílio (art. 34º, nº 1, da Constituição). É um dos casos em que a exigência de consentimento do particular é afastada tendo em conta o interesse público que subjaz à garantia executiva dos actos administrativos. A falta de consentimento poderá ser suprida por decisão judicial que autorize a entrada no domicílio.


24. Deve, porém, entender-se que a reserva de decisão judicial se reporta exclusivamente à permissão de entrada no domicílio para execução das operações materiais previamente determinadas, seja a execução de obras em falta, seja a demolição de obras ilegais, a qual encontra sede legal na previsão do art. 166º do acima citado Regulamento Geral das Edificações Urbanas. A acção interposta não pode ser destinada a reconhecer o direito de realizar ou demolir as obras ou a apreciar a validade do acto que se executa, mas, tão somente, a remover um obstáculo ao exercício desse poder administrativo.


25. Nem, sequer, no âmbito do procedimento executivo, a intervenção judicial se destina a apreciar o conteúdo das medidas escolhidas pela Administração; só o autor do acto é competente para definir o conteúdo das medidas de execução e optar pelos meios de realização material do acto que considere mais adequados, no caso, à produção dos respectivos efeitos, não podendo o Tribunal pronunciar-se sobre o seu mérito ou legalidade.


26. Pelo que fica exposto, deve concluir-se que, em tudo o mais que não se reporte à questão do consentimento de entrada no domicílio (caso seja recusado pelo particular), se verificará a desnecessidade da tutela judicial.


27. Mais: se o recurso ao Tribunal tiver por objectivo o reconhecimento do direito a executar determinado acto administrativo ou a validade do procedimento que o antecedeu, deparamos com falta de um pressuposto processual, qual seja o da competência do Tribunal comum.


28. Ao Tribunal apenas se vai requerer que remova um obstáculo constitucional e legal ao exercício do privilégio de execução prévia. Não se está a subtrair à jurisdição administrativa o controlo da legalidade dos actos da Administração cuja execução exija a entrada num domicílio para atribui-lo aos Tribunais comuns, nem a permitir a execução coactiva do acto administrativo, mas, tão só, a cometer àqueles Tribunais a função de garantir o direito de inviolabilidade do domicílio em face da execução coactiva de actos administrativos.


29. Em tudo o mais, não carece a Câmara Municipal de Armamar de mandato judicial para executar coactivamente os actos administrativos praticados, sob pena de, não apenas ignorar o que vem disposto no art. 149º, nº 2, do Código do Procedimento Administrativo, como também a proceder, a final, à renúncia das competências que lhe são legalmente conferidas. Rege, no que se refere à irrenunciabilidade da competência, o art. 29º do Código do Procedimento Administrativo, que sanciona com a nulidade qualquer acto que tenha por objecto a renúncia à competência (nº 2). Estando a Administração adstrita à prossecução do interesse público, não pode o titular da competência abdicar ou desistir de exercer os poderes que a lei lhe atribui.


30. Pelas razões expostas, urge definir a situação e promover a execução da ordem de demolição, visto ser ilegalizável a obra. Como V. Exa. de certo não deixará de reconhecer, a manutenção de uma situação de facto precária por um período de tempo demasiado longo acaba por ocasionar lesões no interesse público e nos interesses legalmente protegidos de terceiros, contribuindo para a ineficácia da acção administrativa e para a quebra da autoridade das câmaras municipais no bom desempenho das missões de interesse público que a lei lhes confia.


II – CONCLUSÕES


Em face do exposto e no exercício da atribuição constitucional que me é confiada para prevenção e reparação das injustiças e ilegalidades (artº 23º, nº 1, da CRP), entendo dever RECOMENDAR:








Que V. Exa. providencie por executar coactivamente a ordem de demolição da obra de ampliação ilegal, uma vez reconhecida a insusceptibilidade de vir a mesma a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade, requerendo a intervenção judicial apenas e se estiver em causa a inviolabilidade do domicílio do dono da obra (artigos 165º, 166º e 167º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, e art. 149º, nº 2, do Código do Procedimento Administrativo).



… /…


Recordo, por fim, a V. Exa. o dever de comunicar a este Órgão do Estado, em sessenta dias, o teor da deliberação camarária a tomar em face da presente RECOMENDAÇÃO (art. 38º, nº 2, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril).


Lisboa, 17 de Janeiro de 2001


Com os melhores cumprimentos,


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues