RECOMENDAÇÃO N.º 8/A/2008
(artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Odivelas
Proc.º: R-4256/07
Área: A1
Data: 11-09-2008


Assunto: licenciamento de obras – técnico – inscrição municipal.


 


I – exposição de motivos



§ 1.º



1. Em queixa que me foi dirigida, contesta-se a obrigatoriedade de inscrição, nos serviços do órgão autárquico a que V. Ex.a superiormente preside, de técnicos autores de projecto que não se encontrem inscritos em associação pública de carácter profissional.



2. Na sequência da reclamação supracitada, veio a ser promovida a audição do Senhor Director do Departamento de Gestão e Ordenamento Urbanístico da Câmara Municipal de Odivelas, tendo sido prestadas informações relevantes para a instrução do processo R-4256/07 (A1), na sequência das quais entendi dirigir a V. Ex.a a presente Recomendação.



3. Nomeadamente, pude comprovar que os serviços dessa Câmara Municipal não exigem apenas a inscrição municipal dos técnicos autores de projectos que não se encontrem validamente inscritos em associação pública, mas ainda – no caso da direcção técnica de obras – daqueles que façam prova da sua inscrição na respectiva ordem profissional.



4. Com efeito, entendo que o entendimento sufragado pelos serviços desse órgão autárquico não se coaduna com o quadro normativo actualmente em vigor, na medida em que se pode concluir ter vindo o artigo 30.º do Regulamento Municipal de Edificação e Urbanização do Concelho de Odivelas repristinar uma disposição normativa inequivocamente revogada, o que não obedecerá às exigências do princípio da legalidade, conforme passo a evidenciar.



§ 2.º



5. Em primeiro lugar, importa fazer notar que o Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, determinava, no seu artigo 6.º, n.º 3, a inscrição obrigatória dos técnicos autores dos projectos nas câmaras municipais. Durante a vigência do referido diploma, não se colocaria qualquer dúvida quanto à possibilidade, por parte das câmaras municipais, de exigirem a inscrição dos técnicos autores de projectos, enquanto condição para a apreciação de projectos por si elaborados e submetidos à aprovação dos órgãos autárquicos.



6. Contudo, a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, que produziu a alteração do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, teve por efeito isentar de inscrição municipal os técnicos autores de projectos, desde que inscritos em associação pública de natureza profissional. Quanto a profissões não abrangidas por ordem profissional, manteve-se a possibilidade de exigir a inscrição nas câmaras municipais.



7. Aquando da entrada em vigor do actual Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, deu-se uma alteração do paradigma vigente, tendo sido suprimidas as referências à inscrição municipal de técnicos, conforme consta do seu artigo10.º.



8. Desde então, revogado o Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro (cfr. artigo 129.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro), tornou-se inexigível a inscrição municipal dos técnicos autores de projectos, bem como dos responsáveis pela direcção técnica de obras, podendo mesmo afirmar-se que a revogação (expressa) do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, operou a proibição daquela exigência. Não a deixou ao critério de cada município. Pôs-lhe termo.



9. Ora, o artigo 30.º, n.º 1, do regulamento municipal de Odivelas pretende reproduzir o artigo 6.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro. Tal inovação normativa não pode, porém, ser permitida, uma vez que a acção do legislador teve por fim e por efeito a criação de um enquadramento legal positivamente oposto ao regime regulamentar que o município de Odivelas se propôs estabelecer.



§ 3.º



10. Traçado o quadro evolutivo do regime jurídico concernente à inscrição dos técnicos nas câmaras municipais, cumpre determinar se pode ser encontrada algures a previsão atributiva da competência para prever essa inscrição, não obstante ter sido alterado o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.


11. De forma a obviar à inquestionável exclusão da obrigatoriedade de inscrição municipal dos técnicos autores de projectos e daqueles que pretendam assumir a direcção técnica de obras, opõem os serviços desse órgão municipal o artigo 50.º do Código Administrativo, na parte em que este se reporta à competência para deliberar sobre (…) a segurança, elegância, salubridade e prevenção de incêndios das edificações confinantes com ruas e lugares públicos (cfr. n.º 5).



12. É entendimento do Senhor Director do Departamento de Gestão e Ordenamento Urbanístico que essa previsão legal, bem como, em termos genéricos, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas – os quais legitimaram, em tempos, o disposto no artigo 8.º do Regulamento Municipal de Edificações Urbanas do Concelho de Loures, de 13 de Dezembro de 1963 – seriam suficientes para impor, por regulamento municipal, a inscrição de técnicos, no âmbito do controlo prévio de operações urbanísticas.



13. No entanto, a coexistência de atribuições municipais em matéria de urbanismo e a competência regulamentar genérica municipal não bastam para obrigar à inscrição dos técnicos, desde logo, porque se exige a interpretação sistemática dos elementos normativos aplicáveis.



14. Nesses termos, não é despicienda a circunstância de ter o legislador regulado a matéria sub iudice, primeiramente elaborando normas que previam a inscrição municipal dos técnicos, vindo, posteriormente, a eliminá-las, manifestando uma firme intenção de facilitar progressivamente o exercício da profissão por parte dos técnicos em questão.



15. A norma do artigo 50.º do Código Administrativo guarda um elenco de atribuições, não de competências. Não atribui aos órgãos autárquicos senão o poder para deliberarem sobre as matérias aí elencadas, o que não constitui fundamento bastante para considerar que seja possível às câmaras municipais sujeitar os técnicos – quaisquer técnicos – a inscrição nos serviços autárquicos, mas tão-só à subscrição de um termo de responsabilidade, conforme previsto no artigo 10.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.



16. Diversamente do que sustenta o Departamento de Gestão e Ordenamento Urbanístico, não posso concordar que estejamos perante um campo de regulamentação municipal, de tal modo que a evolução legislativa pudesse configurar a remoção de uma interferência do legislador ordinário em matérias compreendidas na esfera de competências dos municípios.



17. Aliás, sempre haveria que suscitar fortes dúvidas sobre a constitucionalidade orgânica da disposição que pretendesse sujeitar o exercício de uma profissão a restrições estabelecidas por norma regulamentar estribada apenas na competência genérica dos órgãos das autarquias locais para disporem normativamente em matérias incluídas nas suas atribuições.



§ 4.º



18. Não ignoro pretender a Câmara Municipal de Odivelas incrementar o controlo da qualidade dos projectos executados na sua área de jurisdição, simultaneamente prevenindo a ocorrência de acidentes associados à realização das operações urbanísticas projectadas.



19. Contudo, pondero existirem instrumentos adequados a prosseguir os mesmos fins, sem que se imponha a exigência de inscrição dos profissionais legalmente habilitados para elaborar e subscrever projectos e para assumir a direcção de obras concernentes a operações urbanísticas sujeitas a controlo prévio.



20. Reporto-me, entre outras disposições, ao artigo 98.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, que elenca os ilícitos de mera ordenação social respeitantes à realização de operações urbanísticas. Simultaneamente, o artigo 99.º daquele diploma legislativo estabelece, no seu n.º 1, alínea b), a sanção acessória de interdição de exercício, no município, da profissão ou actividade conexas com a infracção praticada, até um período máximo de quatro anos.



21. Essa estatuição permite alcançar os objectivos a que se propôs o município de Odivelas aquando da aprovação do artigo 30.º do regulamento municipal, sem, no entanto, sujeitar os técnicos à inscrição que o legislador pretendeu remover do ordenamento jurídico português – e que não podem as autoridades municipais, na falta de norma atributiva de competência e perante a evidente intenção do legislador, vir repristinar.



22. Posto isto, nada impede que a Câmara Municipal sugira a inscrição (facultativa) dos técnicos, de modo a facilitar o exercício da profissão, evitando a repetição da entrega dos documentos legalmente exigíveis.



23. Acresce que dificilmente se compreenderia que aos serviços autárquicos se permitisse exigirem a inscrição municipal dos técnicos, ao mesmo tempo que se empreendem esforços para harmonizar o direito aplicável, inclusivamente ao nível comunitário. Reporto-me, designadamente, à Directiva 2001/19/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Maio de 2001, que pretendeu facilitar a livre circulação e o exercício de diversas profissões, entre as quais a de arquitecto – de que constitui acto próprio a direcção técnica de obras, nos termos do artigo 42.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 465/88, de 15 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 176/98, de 3 de Julho.



24. Permitir a criação de obstáculos ao exercício das profissões que constituem habilitação legal para a elaboração de projectos e para a assunção da direcção técnica de obras, nos termos da legislação aplicável a essa matéria, pode, além de violar o enquadramento legislativo em vigor, configurar inclusivamente um incumprimento da obrigação de cooperação leal (artigo 10.º do Tratado da Comunidade Europeia) e a violação das liberdades de circulação de pessoas e de prestação de serviços, no espaço da Comunidade Europeia (Título III da Parte III do Tratado da Comunidade Europeia).



25. Com efeito, sujeitar os técnicos a inscrição prévia em cada autarquia nacional acarretaria dificuldades para o exercício da actividade dos profissionais em causa, o que coloca dificuldades aos esforços de integração empreendidos no domínio do direito comunitário.


II – conclusões



1. A inscrição municipal dos profissionais habilitados a intervir nas operações urbanísticas sujeitas ao controlo prévio autárquico deixou de figurar na ordem jurídica nacional, por força das alterações introduzidas progressivamente nos instrumentos legislativos respeitantes à urbanização e à edificação.



2. Em face da revogação expressa das disposições legais concernentes à referida inscrição, deixou de haver fundamento jurídico que legitime a aprovação de normas regulamentares que tenham por efeito a reprodução do regime anteriormente em vigor, como veio a suceder mediante a aprovação do Regulamento Municipal de Edificação e Urbanização do Concelho de Odivelas.



3. De acordo com o sistema normativo hodierno, afigura-se inadmissível sujeitar os técnicos autores de projectos (não abrangidos por associação pública de cariz profissional) e aqueles que assumem a direcção técnica de obras (quer estejam ou não inscritos em ordem profissional ou associação equivalente) à exigência de inscrição nas câmaras municipais, procedimento que veio a ser destituído da sua obrigatoriedade, podendo apenas subsistir na qualidade de expediente facultativo colocado à disposição dos profissionais.



4. Concomitantemente, não será admissível pretender reconduzir a disposição do artigo 30.º do regulamento municipal em apreço à previsão do artigo 50.º do Código Administrativo, nem tão-pouco ao Regulamento Geral das Edificações Urbanas, ignorando a evolução legislativa entretanto ocorrida; nomeadamente, a revogação expressa das normas legais que, em certo momento, legitimaram a inscrição municipal dos técnicos.



5. O legislador, ao dispor sobre a matéria, com recurso ao Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, dotou o ordenamento jurídico dos instrumentos sancionatórios adequados, prevendo inclusivamente a interdição de exercício da profissão por parte de profissionais que incorram na prática dos ilícitos de mera ordenação social tipificados naquele diploma.



6. Resulta claro das iniciativas empreendidas pelos órgãos comunitários, a fim de harmonizar a legislação dos Estados-membros e facilitar o exercício de certas profissões, nomeadamente, a de arquitecto, que a colocação de obstáculos à actividade destes – por exemplo, a exigência de inscrição nos municípios onde pretendam exercer a sua profissão – não é conforme ao direito comunitário, tal como não obedece às manifestações do princípio da legalidade, em virtude da revogação inequívoca de idêntico regime, por parte do legislador nacional.



7. As atribuições municipais em matéria de urbanismo constituem um domínio relevante do exercício do poder autárquico, embora dessa circunstância não se possa concluir deterem os órgãos dos municípios uma competência genérica para aprovar normas regulamentares dissociadas do sistema normativo aplicável, ignorando o sentido da intervenção hodierna do legislador.







Assim, nos termos do disposto no artigo 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, e em face das motivações precedentemente apresentadas, recomendo à câmara municipal presidida por V. Ex.a que se digne levar à consideração da Assembleia Municipal de Odivelas proposta de alteração do Regulamento Municipal de Edificação e Urbanização do Concelho de Odivelas, a fim de rever a disposição regulamentar em que se funda a exigência de inscrição municipal obrigatória dos técnicos autores de projectos e dos responsáveis pela direcção técnica de obras.




Dignar-se-á V. Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.



O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues