Sua Excelência
O Ministro da Justiça
Praça do Comércio
1149-019 LISBOA

 
Vossa Ref.ª    Vossa Comunicação    Nossa Ref.ª  Proc. R-2803/09 (A6)    

Assunto: Regulamento das Custas Processuais. Isenção de custas. Trabalhadores.

Recomendação n.º  2/B/2010
(art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)

1. O Regulamento das Custas Processuais (adiante Regulamento), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, e em vigor desde 20 de Abril de 2009, consagra, no respectivo art.º 4.º, um conjunto de isenções subjectivas e objectivas de custas judiciais, que se tem por taxativo.

A presente iniciativa junto de Vossa Excelência tem por objecto uma dessas isenções em concreto, a que se contém na alínea h) do n.º 1 daquele dispositivo legal.

2. Assim, determina o legislador, na norma do Regulamento mencionada, que estão isentos de custas “os trabalhadores ou familiares, em matéria de direito do trabalho, quando sejam representados pelo Ministério Público ou pelos serviços jurídicos do sindicato, quando sejam gratuitos para o trabalhador, desde que o respectivo rendimento ilíquido à data da proposição da acção ou incidente ou, quando seja aplicável, à data do despedimento, não seja superior a 200 UC, quando tenham recorrido previamente a uma estrutura de resolução de litígios, salvo no caso previsto no n.º 4 do artigo 437.º do Código do Trabalho e situações análogas”.

O preceito em referência – aliás, pouco claro e mesmo equívoco na sua formulação – concederá a isenção de custas aos trabalhadores (e familiares) se se mostrarem cumulativamente preenchidas as seguintes condições:
a)    Os processos judiciais no âmbito dos quais é concedida a isenção respeitarem a matéria de direito do trabalho;
b)    Os trabalhadores (ou familiares) sejam representados, nesses mesmos processos, pelo Ministério Público ou pelos serviços jurídicos do sindicato, quando estes sejam gratuitos para aqueles;
c)    O rendimento ilíquido do trabalhador não ser, à data da proposição da acção ou incidente ou, se for o caso, à data do despedimento, superior a 200 UC;
d)    O trabalhador ou familiar ter recorrido previamente a uma estrutura de resolução de litígios.

A isenção subjectiva em análise é garantida, conforme resulta da conjugação dos requisitos necessários à sua concessão, a cidadãos que se encontram em circunstâncias que indiciam uma maior dificuldade no acesso ao direito e aos tribunais; assim, o preenchimento, pelo trabalhador (ou familiar), das condições acima enunciadas, desencadeia uma verdadeira presunção de insuficiência económica a favor daquele.

3. Não deixa de ser interessante verificar que a norma da alínea h) do n.º 1 do art.º 4.º do Regulamento em apreciação constitui uma espécie de compromisso perante as diferentes tendências da evolução legislativa mais recente da matéria do acesso ao direito e concretamente do apoio judiciário, no que aos trabalhadores e aos processos em matéria laboral diz respeito.

De facto, a revogada Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, que regulava anteriormente o regime de acesso ao direito e aos tribunais, continha um conjunto de presunções de insuficiência económica, designadamente com referência a quem tivesse rendimentos mensais, provenientes do trabalho, iguais ou inferiores a uma vez e meia o salário mínimo nacional e que, no limite, não fruísse, além destes rendimentos, outros rendimentos próprios ou de pessoas a seu cargo que, no conjunto, ultrapassassem montante equivalente ao triplo do salário mínimo nacional (art.º 20.º, n.ºs 1, alínea c), e 2).

Concomitantemente, o anterior Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção vigente após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, isentava de custas apenas os “sinistrados em acidente de trabalho e os portadores de doença profissional nas causas emergentes do acidente ou da doença, quando representados ou patrocinados pelo Ministério Público”, bem como os familiares desses trabalhadores a quem a lei conferisse direito a pensão, nos casos em que do acidente ou da doença tivesse resultado a morte do trabalhador e se propusessem fazer valer ou manter os direitos emergentes do acidente ou da doença, desde que representados ou patrocinados pelo Ministério Público (art.º 2.º, n.º 1, alíneas e) e f), não impondo o legislador como requisito qualquer tecto máximo relativo ao rendimento pelos mesmos auferido).

Note-se que o então Código das Custas Judiciais, na sua versão anterior à alteração promovida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, previa que todos os sinistrados beneficiassem de tal isenção, independentemente de o seu patrocínio ser feito pelo Ministério Público ou por advogado constituído.

Por seu turno, a nova legislação que enquadra o apoio judiciário – Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, republicada em anexo à Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto –, adoptando uma filosofia diferente da anterior Lei n.º 30-E/2000, não prevê presunções de insuficiência económica directamente relacionadas com a parte processual e a respectiva posição no processo; o apoio judiciário é concedido a todo o cidadão nacional e da União Europeia, bem como a estrangeiro e apátrida com título de residência válido num Estado membro da União Europeia, que demonstre estar em situação de insuficiência económica, segundo os critérios e regras previstos no diploma.

O Regulamento das Custas Processuais recupera a presunção de insuficiência económica para todos os trabalhadores – isto é, a concessão é dada independentemente da causa concreta que motiva o recurso aos meios jurisdicionais desde que o trabalhador aufira rendimentos globais até ao limite mencionado na lei –, mas faz depender a concessão da isenção da circunstância de esses trabalhadores serem representados ou patrocinados pelo Ministério Público.

É especificamente esta dissociação, quanto aos trabalhadores, da concessão de isenção de custas judiciais do patrocínio obrigatório pelo Ministério Público que motiva esta minha iniciativa junto de Vossa Excelência, permitindo-me, quanto à questão, tecer as considerações e formular a recomendação que seguem.

4. Em primeiro lugar, não gostaria de deixar de transmitir a Vossa Excelência que compreendo naturalmente a motivação simultaneamente moralizadora e pedagógica da norma.

De facto, o Estado assegura o pagamento do custo de um processo judicial a um cidadão colocado em determinadas circunstâncias que fazem presumir a sua insuficiência económica para suportar esse custo, através de uma racionalização dos recursos – todos eles pagos pelos contribuintes através dos seus impostos – que dispõe para o efeito: recursos humanos e técnicos no caso do patrocínio pelo Ministério Público, e apoio directo financeiro no caso da isenção de custas processuais.

Por outro lado, de alguma forma a norma parece querer impor que o cidadão que se encontra nas condições referidas de insuficiência económica não canalize as suas fracas disponibilidades financeiras para o pagamento de honorários a um advogado, na medida em que disporá de patrocínio judicial gratuito nos termos mencionados. No fundo, parece estar implícito na norma um juízo segundo o qual não fará sentido que o Estado apoie financeiramente de um lado para, de outro, o cidadão apoiado “desperdiçar” parte desses recursos financeiros, na medida em que o patrocínio por um advogado não se revelaria, nesta situação, imprescindível.

Em segundo lugar, admito que a solução da alínea h) do n.º 1 do art.º 4.º do Regulamento se revelará, na prática, uma solução tendencialmente universal, isto é, o trabalhador colocado nas condições mencionadas na norma, na prática, ver-se-á sempre ou quase sempre obrigado a recorrer ao patrocínio gratuito do Ministério Público e não ao patrocínio de um advogado.

Finalmente, há que dizê-lo, a norma aqui contestada é ainda de alguma forma reflexo de uma orientação legislativa passada no sentido do exercício em exclusividade do patrocínio oficioso dos trabalhadores pelo Ministério Público.

5. Não obstante, considero que o legislador teria tido espaço para, ainda assim, e sem prejuízo dos objectivos específicos da norma acima assinalados, adequar de forma mais satisfatória a solução legal em apreciação às orientações constitucionais sobre a matéria, designadamente decorrentes dos art.ºs 20.º (acesso ao direito) e 13.º (princípio da igualdade) da Lei Fundamental.

Na verdade, desde logo ocorre como mais evidente a situação real de o trabalhador dispor de patrocínio de um advogado também ele gratuito (casos de advocacia pro bono ou gratuita). E se é certo que esta situação poderá ocorrer, na prática, apenas marginalmente, também é certo que a mesma se mostra verosímil, e que a eventualidade de um patrocínio por advogado também ele gratuito afastará a possibilidade de isenção de custas a um cidadão colocado nas mesmíssimas condições, concretamente ao nível do rendimento, previstas na norma.

Dir-me-á Vossa Excelência que o trabalhador colocado nas mencionadas condições não estará inibido de concorrer ao apoio judiciário enquadrado actualmente pela Lei n.º 34/2004, na modalidade da dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, já que, no âmbito da referida legislação, se mostra possível dissociar o apoio ao nível das custas e encargos com o processo do apoio referente ao pagamento dos honorários do advogado.

Há que reconhecer, todavia, que as condições específicas para a concessão da isenção de custas previstas na alínea h) do n.º 1 do art.º 4.º do Regulamento revelar-se-ão tendencialmente mais favoráveis para os potenciais beneficiários da norma – seja pelo valor máximo do rendimento exigido, seja por contemplar uma presunção a favor do trabalhador colocado nas condições da norma –, face designadamente a um eventual recurso, pelos mesmos cidadãos, ao regime geral do apoio judiciário.

6. O Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional, por confronto designadamente com os princípios da igualdade e do acesso ao direito, a norma constante do art.º 2.º, n.º 1, alínea e), do anterior Código das Custas Judiciais, que isentava de custas os sinistrados em acidente de trabalho e os portadores de doença profissional nas causas emergentes do acidente ou da doença quando representados pelo Ministério Público, excluindo a norma da isenção os que fossem patrocinados por advogado.

A verdade é que a isenção de custas analisada pelo Tribunal Constitucional nos referidos arestos era concedida independentemente de qualquer requisito referente ao rendimento desses mesmos trabalhadores, colocando-se a tónica da questão mais no facto de o patrocínio ser feito pelo Ministério Público na defesa dos interesses e direitos que a lei manda confiar-lhe, designadamente quando há um interesse, não apenas privado ou particular, mas também público ou com uma dimensão pública e social, do que nas circunstâncias concretas da parte processual pelo mesmo representada (neste sentido mais se assemelhando à actual isenção de custas concedida aos incapazes, ausentes e incertos quando representados pelo Ministério Público, a que alude a alínea l) do n.º 1 do art.º 4.º do Regulamento das Custas Processuais).

Assim sendo, não se mostra possível a transposição, sem mais, da referida jurisprudência do Tribunal Constitucional para a situação enquadrada pela norma em discussão do actual Regulamento das Custas Processuais.

7. Em síntese, a isenção de custas prevista na alínea h) do n.º 1 do art.º 4.º do Regulamento das Custas Processuais constitui uma modalidade de apoio judiciário especial, mais favorável, conforme referido, para os seus potenciais beneficiários, face designadamente ao eventual recurso às modalidades de apoio judiciário previstas na legislação geral que enquadra o acesso ao direito.

No entanto, e ao contrário do que sucede no caso do Regulamento, no âmbito do regime geral do apoio judiciário o requerente preserva, ainda assim, a sua liberdade na escolha de advogado. Esta liberdade de escolha de advogado traduz-se, não na possibilidade de escolha de um advogado concreto nomeado pelo Estado, que também não existe por regra, mas na possibilidade desde logo de o requerente concorrer, se assim o entender e as circunstâncias concretas da sua vida o permitirem, apenas à modalidade do apoio nas custas e encargos do processo.

8. Pelas razões acima expostas, permito-me recomendar a Vossa Excelência, ao abrigo do art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

a promoção de iniciativa legislativa no sentido de se permitir que a isenção de custas processuais prevista no art.º 4.º, n.º 1, alínea h), do Regulamento das Custas Processuais, seja concedida independentemente de o patrocínio judiciário ser feito pelo Ministério Público ou por advogado, desde que naturalmente o trabalhador preencha as demais condições previstas na norma para essa concessão.

Na expectativa de que o teor da presente Recomendação mereça a melhor atenção de Vossa Excelência, e naturalmente aguardando por uma resposta à mesma, aproveito a oportunidade para apresentar a Vossa Excelência os meus melhores cumprimentos,

O Provedor de Justiça,

Alfredo José de Sousa