OUTRAS DECISÕES


Processo: R-5305/01(A6)
Assunto: Novas tabelas emolumentares dos registos e notariado.


1. Foram milhares os cidadãos que, na sequência do anúncio da aprovação pelo Governo do Novo Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado, se dirigiram a este Órgão do Estado, reclamando a devolução de quantias pagas a título de emolumentos por actos registrais e notariais realizados ao abrigo das tabelas revogadas com a entrada em vigor, a 01 de Janeiro deste ano, do Decreto-Lei n.º 322-A/2001, de 14 de Dezembro.


De facto, tendo em vista a reforma do sistema de financiamento da justiça, veio a Lei n.º 85/2001, de 04 de Agosto, que aprova a primeira alteração à Lei do Orçamento do Estado para 2001, autorizar o Governo a alterar as tabelas emolumentares dos registos e notariado com o intuito de as conformar, por um lado, ao disposto na Directiva 69/335/CEE do Conselho, de 17 de Julho, relativa aos impostos indirectos que incidem sobre as reuniões de capitais e, por outro, ao princípio da proporcionalidade da taxa ao custo do serviço prestado.


Da mesma forma, ficou o Governo autorizado a proceder à substituição das tabelas emolumentares aplicáveis às operações a que se reporta a mencionada Directiva, por rubricas de imposto do selo.


As alterações mencionadas viriam a ser concretizadas, respectivamente, através dos Decretos-Lei n.ºs 322-A/2001 e 322-B/2001, ambos de 14 de Dezembro.


Estabelece ainda a Lei n.º 85/2001 o prazo de 30 dias, contados desde a data da entrada em vigor das novas tabelas, para a execução integral, através da devolução das quantias indevidamente pagas, das sentenças anulatórias dos actos de liquidação de valores emolumentares.


2. Enquadrando, antes de mais, a questão subjacente à presente análise, importa referir que Portugal estava vinculado, desde a sua adesão à então CEE, à transposição da Directiva 69/355/CEE, nunca o tendo no entanto feito. A omissão na transposição da legislação comunitária em foco levou a que Portugal viesse a conhecer sucessivas condenações no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.


A Directiva em causa, com as alterações produzidas por uma Directiva de 1985, prevê a existência de um imposto harmonizado no âmbito do mercado interno incidente sobre as operações de reuniões de capitais, designadamente sobre as constituições de sociedades de capitais e o aumento do respectivo capital social.


A mesma legislação proíbe ainda a cobrança pelo Estado de quaisquer outros impostos sobre as operações em causa, permitindo no entanto que eventuais imposições sobre as referidas operações, para além do mencionado imposto, tenham apenas carácter remuneratório.


Desta feita, veio a jurisprudência comunitária considerar como uma imposição proibida pela Directiva de 1969 os emolumentos então devidos em Portugal pela celebração de uma escritura pública de aumento do capital social e de alteração da denominação social e da sede de uma sociedade de capitais, tendo designadamente em atenção que não revestiam carácter remuneratório, já que o montante a pagar aumentava directamente na proporção do capital social subscrito.


Entendia o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias que o carácter remuneratório só era observado se o montante cobrado fosse fixado de forma razoável em função do custo do serviço de que era contrapartida. Nestes termos, era certo que a cobrança pelo Estado de um valor mais elevado para as sociedades com um capital social maior e mais baixo para as que detêm um capital social menor, sem que a diferença de montantes tivesse qualquer ligação com o custo do serviço, retirava inevitavelmente o carácter remuneratório aos tributos em causa.


Propôs-se assim o Governo, autorizado pelo Parlamento, a conformar aos termos da Directiva em análise o regime emolumentar português, baseando a alteração das respectivas tabelas, designadamente no que respeita às operações visadas pela Directiva, no conceito de taxa remuneratória, para o que fez reportar os valores cobrados ao custo efectivo do serviço prestado.


Para além disso, criou uma nova rubrica na Tabela Geral do Imposto do Selo, onde passam a ser tributadas as operações que caem no âmbito de aplicação da Directiva, solução legal conforme ao modelo de imposto único sobre as reuniões de capitais estabelecido na mesma Directiva.


3. Paralelamente, também ao abrigo da mesma autorização legislativa concedida pela Lei n.º 85/2001, tomou o Governo a iniciativa de fundamentar todo o novo regime emolumentar nos supra referidos princípios da proporcionalidade e da correspondência ao custo efectivo.


Sublinha-se que a Directiva 69/335/CEE não tem como destinatários os particulares e que a presente análise não tem como objecto a apreciação das matérias que envolvem a tributação emolumentar das operações das empresas visadas pela legislação comunitária, sendo esta referida apenas para total compreensão das questões que interessam aos particulares.


Aliás, a decisão do Executivo de proceder em simultâneo à adaptação das tabelas emolumentares nacionais aos termos da Directiva comunitária e à reforma do sistema tributário dos registos e notariado com vista à sua conformação aos princípios da proporcionalidade da taxa ao custo do serviço prestado, terá muito provavelmente estado na génese das queixas dos particulares que se dirigiram a este Órgão do Estado, reivindicando a restituição de montantes pagos a título de emolumentos.


Tem razão o Senhor Ministro da Justiça quando, em ofício enviado a este Órgão do Estado contendo a resposta aos esclarecimentos que lhe foram solicitados no âmbito da matéria em discussão, afirma constituir uma opção política do Governo a decisão de aplicação a todos os actos notariais e registrais (e não só aos que resultam das operações de reunião de capitais) dos princípios do custo efectivo e da proporcionalidade.


Na verdade, não estava o Executivo obrigado a fazê-lo, não decorrendo do quadro constitucional em vigor qualquer imposição naquele sentido.


De qualquer forma, aproveitou o Governo a análise financeira a que obrigatoriamente teve de submeter o sistema – com o intuito designadamente de apurar o custo efectivo de cada serviço visando a introdução do conceito de taxa remuneratória imposto pela Directiva comunitária – para conceber um sistema seguramente mais justo, ao que parece menos oneroso para os utilizadores na maior parte das situações, e que terá a vantagem de resolver as dúvidas suscitadas à volta da qualificação das imposições emolumentares, tal como estavam concebidas nas tabelas ora revogadas, como taxas ou impostos.


4. Sublinha-se que não há paralelo possível entre a situação em análise e a referente à transposição da Directiva 69/335, acima aflorada. Assim sendo, qualquer eventual devolução de quantias pagas a título de emolumentos – que não as quantias pagas no âmbito da realização de operações abrangidas pela referida Directiva –, conforme pretendido pelos particulares e mesmo pela DECO, não encontraria fundamentação no quadro legal actual. Acresce que uma eventual iniciativa do Governo naquele sentido – só hipotética, já que o Executivo afastou liminarmente tal possibilidade – constituiria decerto um precedente de dimensões inimagináveis, inclusivamente ao nível financeiro.


Desta forma, não vejo, na verdade, qualquer hipótese de, por apelo a princípios ou regras constitucionais, ou, ainda, por apelo a qualquer sentimento de Justiça mais difuso, utilizar os poderes previstos na Constituição ou na Lei ao Provedor de Justiça.


Os reclamantes utilizaram um serviço público, tendo pelo mesmo pago uma quantia que lhes foi exigida, a título de remuneração daquele e também a título de imposto.


Na presente situação, apenas está em discussão a primeira parcela, ao contrário do que, precipitadamente, concluíram os reclamantes, exigindo a devolução de percentagem aliás não quantificada do total oportunamente pago.


Não nego que no cômputo geral dos tributos exigidos por determinado acto jurídico (uma compra e venda de imóvel, na larga maioria, se não totalidade, das reclamações) há ainda uma dimensão de proporcionalidade que o Estado deve respeitar, quanto mais não seja no âmbito do princípio da proibição do excesso. Seria uma violação de tal princípio, por exemplo o estabelecimento de emolumentos e impostos tais que dificultassem de modo visível a contratação pretendida, de alguma forma bulindo com posições jurídicas constitucionalmente consagradas (autonomia privada, neste caso o direito à habitação, a garantia da propriedade privada e da sua livre transmissão, etc.), eventualmente assumindo proporções quase expropriatórias e sem “justa indemnização”.


Ora, não é aqui que tocam as reclamações. Não existindo contestação à possibilidade de ser cobrada uma quantia a título de imposto pela prática do acto em causa (neste caso, o imposto de selo), é sim na parte respeitante à remuneração específica do acto que, por similitude com a Directiva, se invoca existir violação do princípio da proporcionalidade e, assim, inconstitucionalidade, decerto da norma que fixa o cálculo dessa remuneração.


No âmbito da Directiva, existindo um tecto para a possibilidade de tributação, a título de imposto, considera-se que a cobrança de outras quantias, designadamente para remunerar os serviços prestados pelo Estado, não pode ser baseada noutro critério (por exemplo proporcionalmente ao valor do bem ou direito objecto do acto) que não o do custo que as operações desenvolvidas acarretam.


Estabelecendo um raciocínio homólogo, entendeu a esmagadora maioria dos reclamantes, seguindo minuta fornecida por uma associação de defesa dos consumidores (DECO), que esta interpretação da Directiva correspondia à interpretação que se devia fazer, em direito interno, do conceito de taxa, enquanto retribuição exigida pelo Estado (neste caso), em contrapartida de uma contraprestação específica.


Dito de outra forma, por não me parecer estar em causa a primeira acepção de proporcionalidade a que acima aludi, parecem entender os reclamantes que um tributo cujo montante seja calculado, de modo directo ou inverso, sobre valor que não o da contraprestação será ilegítimo, pelo menos enquanto pretendendo assumir a figura jurídica da taxa e respectivo regime.


Continuando este raciocínio, seria tal regra de cálculo o bastante para se poder afirmar estarmos perante um imposto (ou figura próxima com regime não substancialmente diverso) e não uma taxa.


5. Assim, por mera hipótese, poder-se-ía defender, junto do Tribunal Constitucional, que a taxa tem como elemento essencial uma correspectividade em termos de valor económico, associando a prestação ao particular a um determinado custo da actividade realizada. Nessa medida, não só seria um verdadeiro imposto o tributo que pretendesse remunerar o Estado da feitura de uma escritura de compra e venda de um imóvel, em termos relacionados com o valor deste e não com o custo da actividade notarial ou registral, como todas as taxas, assim designadas, e que se reportam a critérios de quantificação distintos do resultante da estrutura de custos da actividade administrativa concretamente desempenhada. Exemplo desta última situação, seria a taxa de conservação de esgotos, calculada, em geral, sobre o valor matricial do imóvel.


Sucede que o Tribunal Constitucional, por diversas vezes, tem sempre decidido em sentido contrário. Na verdade, tem este Tribunal julgado que a correspectividade ou sinalagmaticidade que caracteriza a taxa é jurídica e não económica (cf., por todos, os Acórdãos 98/90, 583/94, 1108/96, 364/99 e 96/00). E, assim sendo, existindo essa relação sinalagmática na actividade notarial e registral, em termos que não violam a proibição do excesso e que não são arbitrários, parece que não haverá lugar à invocação de inconstitucionalidades que viciem as normas ao abrigo das quais foram cobradas as quantias que os reclamantes pretendem ver devolvidas.


De qualquer forma, e mesmo que se entendesse (o que, conforme explicitado, não acontece), que a quantia paga a título de emolumentos registrais e notariais, tal como estabelecida pela legislação anterior, constituía um verdadeiro imposto, não podendo o Governo estabelecer as respectivas taxas através de Portaria, como acontecia com as agora revogadas Portarias n.ºs 996/98, de 25 de Novembro, 709/2000, de 04 de Setembro e 942/93, de 27 de Setembro – as taxas dos impostos encontram-se, na decorrência das normas conjugadas constantes dos art.ºs 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, no âmbito da reserva de lei e de competência legislativa da Assembleia da República –, não se revelaria nunca oportuno o recurso ao Tribunal Constitucional, tendo em vista uma eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas em causa.


É que um eventual pedido do Provedor de Justiça com vista à declaração da inconstitucionalidade orgânico-formal das normas das Portarias implicaria sempre a apreciação pelo Tribunal Constitucional de normas revogadas, obstando muito possivelmente tal circunstância ao conhecimento do pedido, conforme orientação jurisprudencial daquele Tribunal (entre muitos outros, cf. o acórdão 580/95).


Mesmo que assim não acontecesse, tendo em conta que para a esmagadora maioria das queixas apresentadas já decorreu há muito o prazo para a impugnação da quantia liquidada, assim se tendo formado caso resolvido, é relevante notar que tem o Tribunal Constitucional entendido equiparar o caso resolvido ao caso julgado para efeitos da salvaguarda de protecção de efeitos, ao abrigo do art.º 282.º, n.º 3, da Constituição (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 231/94, publicado no Diário da República, I Série A, de 28 de Abril de 1994).


Ainda que assim não fosse, considerando a sua prática e os efeitos financeiros imprevisíveis de tal declaração, julga-se que, a acompanhar um eventual juízo no sentido da inconstitucionalidade das normas em apreço, decerto faria o Tribunal Constitucional uso da faculdade que lhe é concedida pelo art.º 282.º, n.º 4, da Lei Fundamental, no que toca à restrição da produção dos efeitos dessa hipotética inconstitucionalidade.


Ora, a entrada em vigor, no passado dia 1 de Janeiro, da nova tabela emolumentar, com a concomitante revogação da anterior, retira o interesse, para o futuro, dessa eventual declaração com força obrigatória geral.


Nestes termos, admitindo, por hipótese que se julga improvável, que o Tribunal Constitucional conheceria do mérito do pedido, não invocando, no quadro jurisprudencial firmado, a certa aplicação do mecanismo de restrição de efeitos previsto no art.º 282.º, n.º 4, da Constituição, e que efectivamente declararia a inconstitucionalidade das normas pertinentes, tal decisão apenas beneficiaria aqueles particulares que tivessem oportunamente impugnado o acto e que tivessem tido já ganho de causa ou cujos processos ainda estivessem em curso. Dito de outra forma, a eventual actuação do Provedor de Justiça junto do Tribunal Constitucional, para produzir efeitos úteis, sempre careceria que os particulares (aqueles que ainda estivessem em tempo), por sua vez, tomassem também a iniciativa de impugnarem contenciosamente a liquidação que lhes é feita.


Nestes últimos processos é sempre viável a arguição da inconstitucionalidade de normas, já para não mencionar o poder ou mesmo dever de conhecimento da mesma por parte dos juizes, em sede de fiscalização concreta.


Assim, não parece conveniente o exercício do poder de iniciativa da fiscalização abstracta sucessiva, atendendo ao nulo fundamento que para tal se encontra e à circunstância de a mesma nunca substituir o meio apto à tutela dos interesses que se tentariam salvaguardar.


6. Também não se revelará oportuna, no que aos particulares diz respeito, uma iniciativa junto do Governo, isto atendendo, não só à circunstância de não se encontrar fundamento para a devolução das quantias pagas, nos termos acima referidos, como ao facto de ter entrado em vigor uma nova orientação emolumentar que dá resposta positiva às preocupações expressas a propósito da legislação emolumentar revogada.


7. Por tudo o que acima fica exposto, entendi proceder ao arquivamento do presente processo.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues