Presidente da Câmara Municipal de Almeida

Rec. nº 19/A/97
Proc.: 1332/96
Data: 24.03.1997
Área: A1

Assunto: AMBIENTE – SAÚDE PÚBLICA – ALOJAMENTO DE ANIMAIS – VACARIA – LICENÇA DE UTILIZAÇÃO – OBRAS COERCIVAS – CONTRA-ORDENAÇÕES

Sequência: Acatada

I – Exposição de Motivos

Dos Factos

1. Reportam-se os autos à margem identificados a uma queixa apresentada a este Órgão do Estado contra a grave situação de insalubridade e perigo para a saúde pública motivada pela utilização, em condições ilegais, de um armazém destinado a recolha de alfaias agrícolas como local de alojamento de animais (vacaria), no prédio pertencente ao Sr…, sito em Freineda, concelho de Almeida.

2. Fundamentava-se a reclamação na significativa situação de poluição ambiental verificada no local e no perigo para a saúde dos moradores do prédio contíguo, em virtude da provável inquinação da água utilizada para consumo doméstico, proveniente de um poço localizado a três metros das citadas instalações. Na origem estariam os detritos dos animais e as águas residuais provenientes da exploração pecuária.

3. Anexa à exposição remetida à Provedoria de Justiça encontrava-se cópia do ofício n.º …, de … .1994, da Autoridade de Saúde Concelhia dirigido a V.Exa., no qual se dava conta da procedência da queixa que havia sido apresentada àquela entidade e se requeria o encerramento da vacaria, no caso de não se encontrarem licenciadas as respectivas instalações.

4. Por seu turno a Informação de … .1994, dos Serviços Técnicos dessa Câmara, confirmou a ocupação das instalações licenciadas para fins de recolha de alfaias agrícolas com os animais, sem observância das condições regulamentares respectivas.

5. Através do mandado de notificação de … .1994, foi o proprietário das edificações intimado a proceder ao despejo do armazém e a apresentar projecto de alteração ao uso fixado na licença de utilização (art. 30.º, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro).

6. Constatada em … .1994 a desobediência à ordem de despejo, foi efectuada participação ao Exmo. Delegado do Procurador da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de Almeida para efeitos da abertura de processo criminal por motivo da prática da infracção prevista no art. 348.º do Código Penal.

7. Por sentença de 30 de Abril de 1996, foi o Sr… condenado pela prática do crime de desobediência e da contra-ordenação prevista pelo art. 54.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, em virtude de se ter dado como provado que as instalações licenciadas para fins de recolha de alfaias e produtos agrícolas se encontram a ser utilizadas como local de alojamento de animais.

8. Atenta a alegada ausência de requisitos higio-sanitários das instalações utilizadas como local de alojamento de animais, em clara oposição ao estatuído pelos arts. 115.º e seguintes, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, e os prejuízos significativos que daí resultam para as habitações contíguas, foi requerida ao Exmo. Delegado Concelhio de Saúde a realização de uma vistoria sanitária ao local que permitisse avaliar a actual situação de insalubridade.

Mais se requeria que determinasse a autoridade de saúde, no exercício da competência que lhe é atribuída pelo art. 8.º, n.º 1, alínea r), do Decreto-Lei n.º 336/93, de 29 de Setembro, a realização de análises à água do poço existente no prédio contíguo, propriedade do Sr. … .

9. Com data de … de 1996, foi recebido na Provedoria de Justiça o ofício n.º …, daquela entidade no qual se dava conta da subsistência da situação de insalubridade e incomodidade e se explicitava as obras que o proprietário havia realizado a fim de a minorar.

10. Juntava-se, também, o resultado das análises efectuadas que considerava, em … .1996, encontrar-se a água bacteriologicamente imprópria.

11. Solicitado a V.Ex.ª o esclarecimento dos factos expostos através do ofício n.º … , de … .1996, foi obtida resposta em … p.p., através do ofício n.º … , no qual se confirmava a procedência da queixa, pretendendo a Câmara Municipal de Almeida, não obstante a constatada ilicitude urbanística e ambiental, atribuir a reclamação a problemas pessoais ente o queixoso e o proprietário reclamado.

12. Na citada resposta, não foram, contudo, esclarecidos os aspectos a que se referiam os pontos n.ºs 4.1., 4.2. e 4.3., do referido pedido de informações da Provedoria de Justiça.

Reportavam-se tais aspectos,respectivamente, à instauração dos procedimentos contra-ordenacionais pela prática das infracções previstas pelo art. 54.º, n.º 1, alíneas a) e c), do regime jurídico relativo ao licenciamento municipal de obras particulares e pelo art. 162.º, § 3.º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, às razões de facto e de direito que obstaram a que fosse coercivamente executada a ordem de despejo das edificações, à confirmação da alegada existência de obras ilegais e aos motivos justificativos do não exercício do poder de encerramento, atribuído aos executivos municipais pelo art. 30.º, das Instruções aprovadas pela Portaria n.º 6065, de 30.III.1929, dos estabelecimentos constantes da respectiva tabela anexa cuja exploração não se encontre titulada pelo adequado alvará de licença sanitária.

13. No que concerne à invocada existência de obras ilegais, referia a queixa que havia procedido o infractor, sem adequado título de licenciamento, à edificação de um alpendre para alojamento de parte dos animais, bem como à construção de uma fossa. Atenta a insuficiência das informações prestadas pela Câmara Municipal de Almeida, mais se poderá concluir que as obras recentemente executadas pelo Sr… também não foram licenciadas.

Do Direito

14. Incumprida a ordem de despejo das instalações indevidamente utilizadas como vacaria, nos termos do disposto no art. 165.º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, também não foi apresentado pelo respectivo proprietário, ao abrigo do art. 30.º, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, pedido de alteração ao uso fixado no alvará de licença de utilização.

15. Em face desta situação de ilegalidade, não utilizou a Câmara Municipal de Almeida todos os meios ao seu alcance para prossecução do interesse público subjacente à necessidade de fiscalização da utilização atribuída às edificações, qual seja, o de impedir que através da modificação objectiva do uso sejam defraudadas as regras respeitantes à natureza ou à densidade das construções admitidas numa zona determinada (CORREIA, Fernando Alves, As Grandes Linhas da Reforma do Direito do Urbanismo Português, Coimbra, 1993, p. 119), seja por razões de índole exclusivamente urbanística de política de ocupação e uso do solo, seja, reflexamente, para fins de tutela de valores ambientais e de saúde pública, no caso dos estabelecimentos potencialmente insalubres, incómodos, tóxicos ou perigosos.

16. Com efeito, a apresentação de queixa aos competentes serviços do Ministério Público para instauração ao infractor de procedimento criminal em virtude da desobediência à ordem de despejo, consiste numa medida de compulsão psicológica significativa para a sua execução e cumprimento ( OLIVEIRA, Mário Esteves e Outros, Código do Procedimento Administrativo, Vol. II, Coimbra, 1985, p. 230).

17. Todavia, não se trata de um mecanismo de execução do acto e, por tal razão, não é a medida apta, por si só, a realizar os respectivos efeitos: a cessação da indevida utilização das edificações e dos prejuízos que para os moradores da zona daí resultam.

18. Cabendo ao órgão administrativo, no exercício de um poder discricionário, decidir quanto à execução coactiva dos actos administrativos (art. 149.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo), certo é que, no caso em análise, o princípio da prossecução do interesse público, não pode deixar de impor tal solução, pois não se vislumbram quais as razões que possam obstar a que se faça cessar, de imediato, a situação de risco para a saúde do aglomerado populacional, o atentado ilícito ao ambiente e a lesão contínua e reiterada, dos direitos dos vizinhos à saúde e à faculdade de aproveitamento agrícola da respectiva propriedade.

19. Obstará V.Exa. com a alegação formulada no ofício n.º … , de … .1996, que “num concelho como o de Almeida em que a agricultura e a pecuária são o meio de subsistência de mais de 80% da população é normal os animais estarem em instalações situadas dentro do perímetro urbano das povoações, nomeadamente das aldeias rurais como é o caso da Freineda”.

20. É válida tal alegação, mas não pode a localização normalmente atribuída às explorações pecuárias em áreas rurais justificar a omissão do exercício dos poderes camarários em matéria urbanística e de fiscalização das actividades potencialmente lesivas do ambiente e da saúde pública.

21. Com efeito, tanto as prescrições regulamentares de carácter técnico-funcional relativas às edificações, como as regras de localização dos estabelecimentos insalubres, incómodos, tóxicos ou perigosos, permitem que as instalações destinadas a alojamento de animais em geral, e de bovinos, em particular, se situem em áreas habitadas (art. 115.º do RGEU e n.º 28 da Tabela anexa às Instruções aprovadas pela Portaria n.º 6065, de 30.III.1929).

22. Não obstante, a possibilidade de tais estabelecimentos se encontrarem localizados em áreas urbanas ou urbanizáveis encontra-se condicionada à ausência de qualquer prejuízo para a salubridade e conforto das habitações vizinhas, o que implica que os alojamentos reúnam as condições de protecção e higiene definidas pelos arts 56.º, e 116.º e segs. do RGEU, bem como aquelas que vierem a constar do alvará de licença sanitária em matéria de laboração (art. 19.º, § único das citadas Instruções).

Assim, estabelece o art. 115.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, que as instalações para alojamento de animais poderão ser consentidas nas áreas habitadas ou nas suas imediações quando construídas e exploradas em condições de não originarem, directa ou indirectamente, qualquer prejuízo para a salubridade e conforto das habitações e prescreve o art. 6.º das Instruções de 1929, bem como a respectiva Tabela anexa, quanto aos estabelecimentos de 3ª classe, nos quais se incluem os currais de bois e de vacas, a possibilidade de se instalarem em qualquer local desde que reúnam as necessárias condições de protecção e higiene.

23. Ora, sendo possível à luz dos preceitos citados a localização da exploração pecuária na aldeia de Freineda, bem actuou a Câmara Municipal de Almeida ao conceder ao proprietário a hipótese de legalizar a pretendida instalação para alojamento de animais, requerendo, para tal fim, a alteração da utilização licenciada. Contudo, este não o fez, pelo que a esse executivo camarário nada mais restava que ordenar e executar a ordem de despejo das edificações.

24. E mais grave se revela a situação se atentarmos ao facto de o estabelecimento não possuir alvará de licença sanitária.

Radica esta licença de funcionamento das actividades insalubres, incómodas, tóxicas ou perigosas na necessidade de defender os interesses higio-sanitários e ambientais da vizinhança do estabelecimento, bem como qualquer outro aspecto higio-sanitário que a Câmara Municipal entenda relevante. Daí que, no procedimento de licenciamento se preveja uma fase especificamente destinada à formulação de reclamações daqueles que se considerem potencialmente afectados com a projectada instalação (arts. 10.º a 12.º, das Instruções aprovadas pela Portaria n.º 6065, de 30.III.1929).

25. Não se encontrando licenciado o funcionamento do estabelecimento reclamado competia à Câmara Municipal de Almeida intimar o respectivo proprietário a proceder ao seu encerramento (art. 30.º, das Instruções aprovadas pela Portaria n.º 6065, de 30.III.1929).

A falta de exercício deste poder, para além de ofender o princípio da irrenunciabilidade do exercício das competências (art. 29.º, n.º 1, do CPA), permitiu a manutenção em funcionamento de um estabelecimento insalubre e perigoso à margem de todas as exigências de índole higio-sanitária e de defesa da saúde pública.

26. No tocante à existência de obras efectuadas sem licença camarária, deveria esse executivo municipal ter também determinado a instauração de procedimento contra-ordenacional ao proprietário das instalações, pela prática do ilícito previsto no art. 54.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/91, de 15 de Outubro.

27. Contudo, não é esta medida suficiente para completa reposição da legalidade urbanística e adequada reintegração de interesses legítimos de terceiros. À Câmara Municipal e ao seu Presidente competia ordenar o embargo ou a demolição das obras efectuadas, no que ao caso interessa, sem licença municipal de construção (art. 165.º, do RGEU e arts. 57.º e 58.º, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro).

28. Ainda que se admitisse que o poder de demolição assuma a natureza de poder discricionário (o que não se concede), sempre sofreria, contudo, uma importante limitação em virtude do disposto no art. 167.º, do RGEU. Ali se reduz a discricionariedade a uma de duas hipóteses: ou o presidente da câmara ordena a demolição da obra ilegal ou reconhece que a mesma é “susceptível de vir a satisfazer aos requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade”, devendo para tal efeito obter do interessado a legalização.

29. Isto significa que, caso não seja exercido o poder de legalização, ou porque a obra não é legalizável ou porque o seu autor não apresenta pedido nesse sentido, devem as câmaras municipais, no exercício de um poder vinculado ordenar a demolição dessas construções (Acordãos do STA. de 11.06.1987 e de 06.11.1990, in Acordãos Doutrinais, 322, pp. 1176 e segs., e Actualidade Jurídica, n.ºs 13-14, p. 35).

30. Ora, nada resulta da instrução do processo que permita afirmar que a Câmara Municipal de Almeida exerceu os poderes respectivos tendo em vista a reposição da legalidade urbanística violada.

Em face de quanto fica exposto,RECOMENDO:

1. Que seja notificado o Sr…, para que apresente num prazo razoável pedido de alteração ao uso constante da licença de utilização das edificações utilizadas, como local de alojamento de animais, nos termos do disposto no art. 30.º, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro

2. Que condicione a Câmara Municipal de Almeida a alteração pretendida à execução das obras necessárias à correcção das más condições de salubridade, tomando como parâmetro aferidor do adequado nível de protecção ambiental e de saúde pública as exigências dos arts. 56.º, e 115.º e segs. do RGEU quanto às edificações para alojamento de animais localizadas em áreas habitadas.

3. Que seja intimado o proprietário da exploração agro-pecuária a apresentar pedido de licença sanitária, nos termos do disposto no art. 7.º, das Instruções aprovadas pela Portaria n.º 6065, de 30.III.1929, sendo fixadas, no alvará sanitário, as condições necessárias a evitar a propagação de cheiros, a inutilização das terras de cultura do proprietário e a contaminação da água do poço respectivo, designadamente, através do licenciamento e construção de adequado sistema de drenagem de águas residuais.

4. Que seja instaurado ao autor das construções ilegais procedimento contra-ordenacional pela prática do ilícito previsto no art. 54.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro.

5. Que avalie V.Exa. e delibere sobre a viabilidade de legalizar a obra de construção do telheiro, edificada sem licença, nos termos e para efeitos do art. 167.º do RGEU, e ordene a sua demolição caso conclua pela inviabilidade, de acordo com o art. 58.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro.

6. Verificada a impossibilidade de as instalações para alojamento dos animais funcionarem sem riscos para a saúde e comodidade dos moradores locais, ou não sendo apresentado pelo proprietário pedido de alteração da utilização licenciada e de concessão de alvará sanitário, delibere a Câmara Municipal de Almeida no sentido de ser interdita a utilização das edificações para o referido fim, no exercício dos poderes que lhe são atribuídos pelo art. 165.º do RGEU (despejo das edificações) e pelo art. 30.º das Instruções aprovadas pela Portaria n.º 6065, de 30.III.1929 (encerramento).

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL