Ministro da Justiça C/c Ministro da Administração Interna
Número: 1/A/97
Processo:22/96
Data: 08.01.1997
Área:A5

Assunto: SEGURANÇA PÚBLICA – POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA – AGENTE DETIDO – CONDIÇÕES DE RECLUSÃO – ESTABELECIMENTO PRISIONAL ESPECIAL

Sequência:Acatada

Em 26 de Dezembro de 1996, determinei a abertura de inquérito, nos termos do disposto nos artigos 24.º e 21.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, às circunstâncias que rodearam as agressões de que foi vítima, no dia … de 1996, um guarda da Polícia de Segurança Pública no estabelecimento prisional de Caxias. É dos resultados desse inquérito que venho dar conta a Vossa Excelência, com base nos quais entendi dever formular as recomendações finais.

I

1. Por decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Évora, foi decidida a prisão preventiva do Sr…, agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) na Esquadra de Évora, após ter participado em acção policial que teve lugar na madrugada do passado dia … , durante a qual veio a ocorrer a morte de um dos três assaltantes a estabelecimento comercial daquela cidade.

Em cumprimento da referida decisão judicial, o guarda… ingressou,no dia … ,no estabelecimento prisional regional de Évora onde, atentas as funções policiais que desempenhava, foi alojado em regime de separação com os outros presos.

2. De acordo com as informações que tive a oportunidade de recolher,a direcção do estabelecimento prisional regional de Évora assinalou de imediato à Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, a urgência de retirar o guarda… daquele estabelecimento por estar situado na cidade onde o mesmo exercia funções policiais. Assim, foi decidido transferi-lo para o estabelecimento prisional de Caxias, onde foi recebido cerca das 18 horas, do dia … .

3. Nem a funcionária que substituía na ocasião o director do estabelecimento prisional de Caxias, nem a guarda prisional, receberam quaisquer instruções relativas a procedimentos especiais que devessem ser adoptados face ao guarda… Aliás, por não ter sido recebida qualquer informação a esse respeito, desconhecia-se que o mesmo iria ser afecto àquele estabelecimento. Ainda a este propósito, foi dito que, com frequência, a guarda prisional só tem conhecimento da identidade dos reclusos no momento da sua chegada, sempre que esta ocorra fora do horário normal de expediente e que, em alguns casos, a informação prestada pelos serviços centrais acaba por chegar depois do preso.

4. O Senhor Director teve conhecimento da transferência do guarda… no dia … à tarde, quando se encontrava na Direcção Geral dos Serviços Prisionais, tendo entendido não ser necessário contactar com o estabelecimento por, segundo ele, a guarda prisional estar familiarizada com situações análogas a esta e confiar nas suas decisões.

5. No momento do ingresso, quando o guarda… mostrou a sua identificação, dando a conhecer que exercia funções na PSP, foi avisado por um elemento da guarda prisional que deveria tomar precauções e ocultar a sua identidade aos outros reclusos.

6. Foi alojado no reduto norte, numa zona onde estão os reclusos com ocupação laboral e relativamente aos quais haveria maior grau de confiança. Nessa noite jantou na cela.

7. Na manhã seguinte, quando no horário normal se dirigiu ao recreio, não reconheceu nenhum dos reclusos que ali se encontravam e foi objecto de ameaças por outros presos. Apurou-se junto dos guardas prisionais que naquela manhã, no recreio, o guarda… terá sido reconhecido por reclusos oriundos do estabelecimento prisional regional do Montijo.

Um preso terá avisado o guarda… que deveria abandonar aquele local. No entanto, logo a seguir, ainda no recreio, foi agredido a pontapé, a murro e à cabeçada por reclusos ali presentes. E voltou a ser agredido num local de acesso à zona de alojamento quando, já depois de ter abandonado o recreio, se dirigia à cela.

8. Os dois únicos guardas que estavam de vigia no recreio tinham tomado conhecimento na formatura, sábado de manhã, que estava detido no estabelecimento um guarda da PSP, sem que, no entanto, lhes tivessem sido fornecidos quaisquer sinais de identificação acerca dele. Quando as agressões ocorreram, estavam em postos fixos e por esse motivo alegaram estarem impossibilitados de socorrer o agredido.

Apurou-se que o guarda que se encontrava junto da porta do recreio se apercebeu que estavam cerca de quarenta reclusos a rodear um deles que estava a ser agredido, desconhecendo, no entanto, tratar-se do agente da PSP. Terá então procedido de forma a retirar o agredido do aglomerado de pessoas para que seguisse em direcção à respectiva cela.

9. Quando no dia 26 de Dezembro visitei o guarda… no estabelecimento prisional de Caxias, após ter sido observado e tratado no Hospital de S. Francisco Xavier, eram visíveis no rosto as marcas das agressões que sofreu.

10. Depois das ocorrências relatadas, o guarda… foi alvo de insultos por parte de outros reclusos, ainda no reduto norte, na ala onde se situa a cela.

Com a autorização do Senhor Director, o guarda… veio a ser alojado no reduto sul do estabelecimento, na enfermaria, juntamente com outros reclusos, cerca de sete, onde permanece, não fazendo vida em comum com a restante população prisional. Na opinião da direcção do estabelecimento, não se pode afirmar que a solução de recurso encontrada exclua novas agressões.

11. Para apuramento de eventuais infracções disciplinares, foi instaurado um inquérito pela DGSP, do qual resultou ter sido decidido punir disciplinarmente quatro reclusos, por terem agredido o guarda… , foi igualmente decidido extrair certidão daquele a enviar ao Ministério Público, tendo-se determinado o arquivamento do processo quanto ao mais, por não terem sido detectados indícios da prática de infracções disciplinares por parte dos funcionários.

No entanto, o Exm.º Senhor Director Geral dos Serviços Prisionais aquando da sua deslocação à Provedoria de Justiça, no passado dia 30 de Dezembro, afirmou que relativamente à eventual responsabilidade dos funcionários, o assunto poderia vir ser reapreciado, o que veio a verificar-se conforme informação telefónica prestada no dia seguinte ao signatário.

II

1. A Lei Orgânica da Polícia de Segurança Pública estabelece que “o cumprimento da prisão preventiva e das penas privativas da liberdade pelo pessoal com funções policiais ocorrerá em estabelecimentos prisionais comuns em regime de separação dos restantes detidos ou presos” (art. 104 .º do Decreto-Lei n .º 321/94, de 9 de Dezembro).

Esta norma não visa criar situações de privilégio de que seriam beneficiários aqueles a quem ela se dirige, consagrando porventura regimes de reclusão especiais. Ela responde, outrossim, à preocupação de prestar aos elementos daquela polícia, a segurança mínima que a todo o cidadão deve ser garantida pela administração prisional, tendo em consideração que a junção dentro dos estabelecimentos prisionais de presos que exerçam ou tenham exercido funções policiais com os restantes poderá originar situações de conflito relacionadas com esse exercício.

Foi-me transmitida pelo Senhor Director Geral dos Serviços Prisionais a intenção de vir a criar, dentro do parque prisional gerido por aquele departamento, um espaço reservado a alojar, em regime de separação da restante população prisional, pessoas que pertençam ou tenham pertencido a forças policiais ou de segurança, às forças armadas, à guarda prisional, à magistratura ou ainda todas aquelas que tenham exercido outras funções que, atenta a sua natureza, estritas razões de segurança aconselhem a reclusão em estabelecimento especial.

Sendo manifesto que tal estabelecimento ainda não existe e não constando a sua criação do elenco das prioridades traçadas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 62/96, de 29 de Abril, que aprova o Programa de Acção para o Sistema Prisional, haverá necessidade de adoptar as medidas adequadas à satisfação das preocupações que estão na base da determinação legal da separação de certas pessoas dos restantes detidos ou presos. Ou seja, sempre que se verificar a necessidade de fazer ingressar em estabelecimento prisional elementos da PSP � embora a afirmação seja igualmente válida para outras categorias de pessoas � impõe-se a imediata ponderação de três ordens de factores:

– qual o estabelecimento prisional mais adequado na circunstância?
– que tipo de precauções tomar no interior do estabelecimento que vier a ser escolhido?
– que regras especiais devem ser postas em marcha na comunicação entre os serviços centrais da DGSP e o estabelecimento prisional relativamente à pessoa em causa?

2. Feita esta observação, convirá avaliar em que medida as circunstâncias que rodearam a agressão de que foi vítima o guarda… terão sido potenciadas por uma deficiente avaliação dos critérios aptos a satisfazer as exigências atrás apontadas. Em suma, será necessário questionar se o estabelecimento prisional de Caxias era adequado, se, determinada a sua escolha, foram adoptadas as medidas especiais que o caso mereceria e, por fim, se houve ou não suficiente interacção entre os serviços centrais da DGSP e o estabelecimento prisional de Caxias que reflectissem a necessidade de protecção reforçada exigida pela condição do recluso em causa.

3. A resposta à primeira questão parece simples: o estabelecimento prisional de Caxias não era o adequado. O único factor que parece ter pesado na escolha do estabelecimento destinado a alojar o guarda… foi o da maior ou menor proximidade geográfica relativamente ao local onde exercia funções. Assim, foi considerada inviável a sua permanência no estabelecimento prisional regional de Évora, onde esteve algumas horas isolado dos restantes reclusos, tendo ainda sido afastada a hipótese do estabelecimento prisional de Pinheiro da Cruz, por não se encontrar suficientemente distante daquele local.

O critério da proximidade geográfica, para além de não poder ser o único a levar em linha de conta, não era, neste caso concreto, apto a evitar situações comprometedoras da segurança do guarda da PSP em causa. No caso em análise, a ampla divulgação pelos vários meios de comunicação social dos factos imputados ao guarda… , suspeito de ter morto um assaltante no exercício das suas funções de polícia, tornava irrelevante a maior ou menor distância do estabelecimento prisional do local da ocorrência desses factos, por indiciar a possibilidade de ele vir a ser identificado, mais tarde ou mais cedo, pelos reclusos de Caxias.

O critério a seguir deverá antes ser aquele que permita compatibilizar um elevado grau de segurança � embora a segurança absoluta, em termos abstractos, seja inatingível � com o gozo dos direitos que a todos os reclusos devem ser garantidos. Não pode pois cair-se em nenhum dos extremos que consistiriam, num caso, na segurança máxima com manifesto prejuízo desses direitos ou, no polo oposto, no total exercício destes mas com absoluto laxismo das regras elementares de segurança.

Ora, o estabelecimento prisional de Caxias � e em particular o reduto norte onde o guarda… foi alojado � não permite essa compatibilização. Não existem celas individuais � foi colocado numa cela com mais três reclusos � e não há possibilidade de fazer uma vida prisional normal separado da restante população prisional. Nestas circunstâncias,não se compreende como não foi equacionada a existência de um elevadíssimo grau de probabilidade de uma agressão vir a ocorrer. Como veio infelizmente a acontecer, de facto, na primeira ocasião em que o guarda… entra em contacto com a generalidade dos reclusos do reduto norte e que só não teve consequências mais gravosas pela circunstância fortuita de o guarda… só ter sido reconhecido pelos restantes reclusos no final da hora do recreio.

4. Avaliando agora as providências que terão sido tomadas no momento em que o guarda… dá entrada no estabelecimento prisional de Caxias, importará referir de novo que o Director aí não se encontrava naquela ocasião, que os elementos do corpo de vigilância do estabelecimento que o receberam não tinham tido conhecimento antecipado da sua chegada e que não acompanhavam o guarda… quaisquer instruções especiais, apenas constando a menção, na guia de marcha, de se tratar de membro da PSP.

Colocado perante a necessidade de encontrar o local mais adequado para alojar o guarda, os responsáveis do corpo de vigilância determinaram a sua colocação na ala onde se encontravam os reclusos com ocupação laboral � cerca de 90 � tendo sido factor dessa escolha a circunstância de serem indivíduos considerados de maior confiança pela direcção do estabelecimento.

Subsistem divergências acerca do teor da conversa havida entre o guarda… e um responsável do corpo de vigilância logo após a entrada daquele no estabelecimento: o primeiro afirma que apenas lhe terão sido transmitidos conselhos de carácter geral atendendo à sua qualidade de membro de uma polícia, ao contrário da versão de elementos da guarda prisional que referem ter-lhe sido expressamente aconselhado que não se deslocasse ao recreio, pelo menos nos primeiros dias.

Seja como for, a conclusão a tirar nesta sede é a de que não podem ser imputáveis aos elementos da guarda prisional em causa responsabilidades quanto à agressão, na medida em que terão tomado, atentas as circunstâncias, as providências que no caso se impunham.

Se é patente que neste caso foram adoptadas, em momento anterior, decisões susceptíveis de pôr em causa a segurança do guarda… e não foram cumpridos deveres de diligência mínimos exigíveis na circunstância, tal não implica porém que a responsabilidade recaia sobre aqueles que não dispõem de meios ou de poderes para alterar situações com que são confrontados.

Deve no entanto ponderar-se se em casos da mesma natureza não deveria estabelecer-se como regra a obrigação de a guarda prisional comunicar à direcção do estabelecimento a chegada a este de pessoas que envolvam preocupações especiais de segurança.

A mesma afirmação poderá no entanto já não ser válida relativamente à direcção do estabelecimento. Tendo sido confrontado com a transferência do guarda… quando se encontrava nas instalações dos serviços centrais da DGSP, pouco antes de esta se consumar, poderia o Director do estabelecimento prisional de Caxias ter dado conta das dificuldades em alojar o guarda… naquele estabelecimento em condições mínimas de segurança.

No caso de mesmo assim se manter a decisão de transferir o guarda… para aquele local, as normas de prudência aconselhariam que o Director contactasse directamente o estabelecimento, naquele mesmo dia, determinando as medidas que na ocasião considerasse adequadas.

5. A articulação especial que deve existir nestes casos entre os serviços centrais da DGSP e os estabelecimentos prisionais poderia também ter evitado o episódio que agora se analisa.

Valerá a pena, para o efeito, lembrar um caso com contornos semelhantes, que envolveu a agressão de que foi vítima um subchefe da PSP, no dia … de 1995, no interior do estabelecimento prisional de Lisboa, quando foi alojado na mesma ala que os arguidos em processo no qual ia depor na qualidade de testemunha.

Do processo de averiguações então realizado pela DGSP, resulta a conclusão que os factos terão sido potenciados pela deficiente comunicação entre a DGSP e o estabelecimento prisional em causa e pela falta de articulação, no interior do estabelecimento, entre a guarda prisional e a direcção do estabelecimento.

Com base nessas conclusões, o Senhor Director Geral dos Serviços Prisionais determinou, em despacho de 12 de Julho de 1996, que fosse elaborada circular, a difundir por todos os estabelecimentos prisionais, que estabelecesse as regras a respeitar relativamente aos reclusos “que estatutáriamente devam ser separados da restante população prisional”.

Essa circular, se existisse, como então fora determinado, podia ter impedido a repetição de um caso de agressão a elemento de força policial no interior de um estabelecimento prisional.

III

Do exposto retiram-se as seguintes conclusões:

1. A Direcção Geral dos Serviços Prisionais procedeu a uma incorrecta avaliação dos perigos que poderiam advir para o guarda… ao decidir interná-lo em estabelecimento prisional que não oferecia garantias de protecção especial que o seu caso requereria; não fez acompanhar a sua transferência do estabelecimento prisional de Évora para o estabelecimento prisional de Caxias das instruções que permitiriam conferir ao guarda… a segurança pessoal de que carecia; não procurou, junto da direcção do estabelecimento em causa, alertar para os cuidados que o melindre da situação justificariam.

2. Por seu turno, a direcção do estabelecimento prisional de Caxias omitiu deveres de diligência mínimos ao não proceder à fixação de orientações concretas aptas a salvaguardar, na medida do possível, a segurança do guarda…

Nestes termos,

RECOMENDO

a) A imediata transferência do guarda… para estabelecimento prisional tutelado pelo Ministério da Justiça que permita compatibilizar as exigências de segurança com o exercício dos direitos conferidos a qualquer recluso em ambiente prisional normal;

b) A elaboração da circular já determinada pelo Senhor Director Geral dos Serviços Prisionais em 12 de Julho de 1996 a estabelecer as regras a que deverá estar sujeito o internamento em estabelecimento prisional dos reclusos “que estatutáriamente devam ser separados da restante população prisional”;

c) A instauração de processo de averiguações que avalie os procedimentos adoptados no caso pela DGSP e pelo Director do estabelecimento prisional de Caxias;

d) A urgente criação de estabelecimento prisional especial onde possam ser alojadas as pessoas a que a lei ou as circunstâncias imponham exigências acrescidas de protecção, em virtude da natureza das suas funções profissionais.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL