General Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana

Rec.nº64/A/97
Proc.:R-2353/94
Data:3.09.1997
Área: A5

Assunto:FORÇAS ARMADAS – GNR – SOLDADO – PUNIÇÃO DISCIPLINAR – AMNISTIA – DIREITO A PROMOÇÃO NA CARREIRA.

Sequência: Não Acatada

I-Os Factos

1. O soldado de Infantaria n.º…, ao tempo a prestar serviço na Formação do Comando Geral da Guarda Nacional Republicana, apresentou reclamação nesta Provedoria de Justiça, por entender que o despacho de V.ª Ex.ª de 22 de Fevereiro de 1994 que lhe indeferiu o requerimento de promoção a Cabo não estava em conformidade com a amnistia decretada pelo art.º 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 194/74, de 10 de Maio.

2. Mais alegou o reclamante que na sua caderneta militar estavam averbadas três punições, respectivamente de 10 dias de prisão disciplinar, 5 dias de detenção e 20 dias de prisão disciplinar, mas que todas elas haviam sido amnistiadas pela norma atrás indicada.

3. Na sequência das diligências instrutórias essenciais ao processo acima referenciado, foi ouvido esse Comando-Geral, sendo informada a Provedoria de Justiça de que o indeferimento em causa se ficou a dever à circunstância de o somatório das penas sofridas pelo militar ser superior a 20 dias de detenção e, por isso, o mesmo reclamante não satisfazer o requisito da promoção previsto na alínea c), 1), do art.º 266.º do EMGNR, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho.

4. Com efeito, dispõe o art.º 266.º, alínea c), 1), do EMGNR, que é condição de promoção por diuturnidade a circunstância de o militar não ter sido punido pela Guarda com o somatório de penas superiores a 20 dias de detenção ou equivalente. Ponderada a situação, foi dirigida a V.ª Ex.ª Recomendação formulada ao abrigo do art.º 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, na qual se recomendava a revogação do despacho de V.ª Ex.ª de 21 de Fevereiro de 1994, e que consequentemente fosse reconhecido ao reclamante o direito à promoção verificados que estivessem os demais pressupostos previstos no aludido art.º 266.º do EMGNR. Em resposta à minha Recomendação, veio V.ª Ex.ª manifestar a sua discordância quanto aos argumentos aduzidos na mesma, não a acatando em consequência disso.

II-Síntese dos Argumentos Invocados Para o Não Acatamento da Recomendação

a) Sempre interpretou o Comando-Geral da GNR o art.º 266.º do EMGNR no sentido vertido no despacho;
b) A amnistia imprópria não apaga o facto na sua materialidade naturalística;
c) As condutas consideradas amnistiadas para efeitos disciplinares podem ser tomadas em consideração com vista à aplicação de medidas de natureza administrativa;
d) A condição especial da alínea c), 1), do art.º 266.º do EMGNR é pressuposto de uma decisão administrativa, sem natureza disciplinar, visando apenas analisar a capacidade profissional e moral do militar;
e) Constando da nota de assento de um soldado da GNR punições cujo somatório é superior a 20 dias de detenção (ou equivalente), não pode tal praça ser promovido a cabo, ainda que tais punições hajam sido amnistiadas.

III-Apreciação dos argumentos invocados

a) Quanto ao 1.º argumento invocado por V.Ex.ª, e como parece evidente, não pode com base nele aferir-se a justeza ou não da decisão tomada no caso. Com efeito, não é pelo facto de em muitas outras situações idênticas se ter dado uma solução similar à que é objecto de crítica na Recomendação que a decisão passa a ser bem ou mal fundada. Trata-se de um argumento meramente quantitativo ou estatístico, sem qualquer valoração quanto ao fundo da questão.
Mas vejamos os restantes argumentos.
b) A amnistia imprópria não apaga os factos na sua materialidade naturalística.

1. No que concerne a este argumento, aparentemente, ao fazer a distinção entre amnistia imprópria e própria pretende V.ª Ex.ª retirar consequências ao nível do regime aplicável e dos efeitos da medida de clemência em causa. É que, segundo V.ª Ex.ª, na amnistia própria estaríamos na presença de uma verdadeira extinção do procedimento encetado com esta finalidade, ao passo que na amnistia imprópria a medida de clemência incidiria sobre as consequências da falta cometida. Esta distinção doutrinária foi introduzida pela primeira vez em Portugal pela mão do Professor Beleza dos Santos que, por influência clara da doutrina italiana, afirmava que na amnistia própria a medida de clemência respeitava ao próprio crime ou infracção, ao passo que a amnistia imprópria respeitava à consequência jurídica do crime ou infracção. Esta posição doutrinal, que reaparece ainda hoje feita pelo nosso ordenamento jurídico quando se refere à amnistia (própria) e perdão genérico (que corresponde em termos doutrinários à dita amnistia imprópria), recebeu o aplauso do Prof. Eduardo Correia. Porém, como ensina o Professor Figueiredo Dias( ), se tal distinção pode ser feita, o certo é que “não deve considerar-se susceptível de fundar efeitos jurídicos diversos, reduzindo-se portanto a um dispensável e inconveniente luxo de conceitos. Não se trata minimamente, na verdade, de que na amnistia própria exista uma espécie de “discriminalização”, enquanto na amnistia imprópria se estaria perante uma mera “despenalização”: Ainda na amnistia própria, e mesmo quando ela seja feita por apelo a certos tipos de factos, o que definitivamente está em causa (e só) é o impedir-se que o agente agraciado sofra a sanção a que poderia vir a ser (ou a que já foi) condenado. Em suma: “tanto a amnistia própria como a imprópria (ou perdão genérico) se reconduzem à mesma fonte de legitimação e devem possuir os mesmos efeitos jurídico-penais”.
O exercício do direito de graça vai constituir, assim, um acto de soberania estadual que, criando um obstáculo à efectivação da punição – ou genericamente da sanção -, deve qualificar-se, por isso mesmo, como a contraface do “ius puniendi” estadual, atingindo a da sanção e não o facto em si mesmo na sua materialidade naturalística. Isto mesmo resulta do art.º 128.º, n.º 2, do Código Penal, quando afirma que a amnistia “extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança”. E nós diríamos até de todas as consequências jurídicas das mesmas.

2. No que respeita aos efeitos e condições da amnistia algumas outras observações têm de ser feitas. É que, possuindo a lei de amnistia um valor hierárquico exactamente igual ao Código Penal, torna-se evidente que aquela, dentro dos limites jurídico-constitucionais admissíveis, regula como entender preferível as questões dos efeitos e condições da aplicação da amnistia, de nada valendo, aliás, nesse caso, limites e requisitos como os constantes do art.º 126.º, n.ºs 2, 3 e 4 do Código Penal de 1982, e que não foram mantidos com a revisão de 1995. Estes apenas podem valer como direito subsidiário a utilizar em caso de omissão ou deficiência da lei de amnistia.

3. Compulsando a lei de amnistia em causa – Decreto-Lei n.º 194/74, de 10 de Maio -, constata-se que resulta do art.º 1.º, n.º 1, da mesma que “são amnistiados todos os crimes essencialmente militares, praticados até ao dia 25 de Abril, exclusive, a que não caiba pena superior à de presídio militar de seis anos e um dia a oito anos, ou equivalente”. E o n.º 2 desse mesmo artigo dispõe ainda que “são amnistiadas todas as infracções disciplinares militares praticadas até à mesma data”. Se mais nada houvesse, daqui decorreria, sem mais, que todos os ilícitos praticados anteriormente ao 25 de Abril e que se enquadrassem na previsão dos n.ºs 1 e 2 do art.º 1.º da referida lei de amnistia não poderiam fundar qualquer tipo de pena, seja principal ou acessória, nem qualquer tipo de consequência negativa, desde que apoiada exclusivamente na prática do ilícito em causa. Como antes se afirmou, o exercício do direito de graça, constituindo um acto de soberania estadual, vai criar um obstáculo à efectivação da punição ou sanção enquanto contraface do “ius puniendi” do Estado, atingindo, por isso mesmo, a da mesma. Ou seja, não podem os ilícitos em causa fundar qualquer tipo de sanção uma vez amnistiados. Isto é, do ponto de vista político-criminal, a amnistia representa sempre um acto de perdão, e como tal tem por efeito impedir a verificação das consequências jurídicas do crime ou ilícito, eliminando a culpa dos actos praticados no passado. Porém, consciente de que as sanções derivadas dos actos praticados e agora amnistiados já teriam sido executadas, tornando irreversível a sua aplicação, e de que a reposição da situação anterior à aplicação da sanção traria maiores perturbações do que a sua manutenção, estabeleceu o art.º 2.º da referida lei de amnistia que “a amnistia não prejudica a responsabilidade civil emergente dos factos delituosos praticados”( ) “nem compreende a anulação dos efeitos das penas, se já verificados, tais como transferência, mudança de quadro, baixa de posto ou de serviço, eliminação, demissão, reforma e descida na escala de antiguidade”.

4. Ou seja, parece resultar claramente da conjugação do art.º 1.º, n.ºs 1 e 2, com o art.º 2.º do referido Decreto-Lei que o legislador, considerando embora amnistiados os ilícitos que prevê, sejam de natureza penal sejam de natureza disciplinar, entendeu manter alguns efeitos jurídicos, relativamente aos quais, porque já efectivados, causaria mais perturbação a sua eliminação do que a sua manutenção. O art.º 2.º do citado Decreto-Lei constitui assim uma excepção à regra estabelecida no art.º 1.º. É como se o legislador estabelecesse a seguinte regra: Ficam amnistiados os ilícitos penais e disciplinares aí previstos e, bem assim, os efeitos desses ilícitos, sejam eles principais ou acessórios, à excepção dos previstos no art.º 2.º.

5. Se analisarmos as situações excepcionadas no art.º 2.º, constatamos algo de comum a todas elas (à excepção da indemnização): os efeitos dos ilícitos só se mantêm, não obstante estes terem sido amnistiados, se já verificados. Isto é, todas as consequências dos ilícitos que não constem do art.º 2.º do referido diploma ficam sem efeito, não podendo vir a ser aplicadas mais tarde invocando-se como fundamento os factos já amnistiados. Relativamente a este ponto, parece não haver discussão possível quanto à interpretação da referida lei de amnistia. Repare-se, porque é um aspecto particularmente relevante para o caso presente, que entre as consequências dos factos amnistiados que o art.º 2.º ressalva, se produzidos no passado – e que, portanto a contrario, não se podem produzir no futuro -, se encontrem medidas “de natureza administrativa” em tudo semelhantes à que agora está em causa.

c) Possibilidade de a conduta amnistiada vir a ser relevante em matéria de decisão administrativa.

1. No que ao ponto agora em análise concerne, afirma V.ª Ex.ª que do facto de um comportamento delituoso ser amnistiado não decorre que o acto, na sua materialidade, seja apagado, podendo vir a ser tomado em linha de conta para efeitos de decisão administrativa. Isto é, não obstante o comportamento delituoso praticado no passado não poder fundar nenhum tipo de sanção, isso não significa que não possa ser tomado em conta na sua materialidade para efeitos puramente administrativos. Citando o Professor Marcelo Caetano, defende V.ª Ex.ª que a amnistia “não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, nem determina o cancelamento do registo do castigo aplicado que servirá para futura apreciação da conduta do funcionário, embora nele se averbe ter a pena cessado de produzir efeitos legais”.

Paralelamente, apelando à jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 13 de Outubro de 1988, in Acs. do S.T.A. n.º 362, pag. 144 e segs.), afirma-se que “condutas consideradas amnistiadas para efeitos disciplinares podem ser tomadas em consideração com vista à aplicação de medida de natureza administrativa”. De resto, citando o acórdão do S.T.A. de 23 de Maio de 1991, (in Acs. S.T.A. n.º 373, pag. 84), que aparentemente corrobora esta solução, afirma-se que, “mesmo que não se possa voltar a falar mais na falta abrangida na Lei amnistiadora, apagada definitivamente da memória dos homens, seria contrariar a natureza das coisas, querer-se dizer com isto que não houve sequer uma decisão condenatória com todos os efeitos daí derivados”. Afirma ainda V.ª Ex.ª, citando agora o Parecer 61/90 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, que “nada terá de estranho que uma conduta sancionada criminal e disciplinarmente, embora considerada extinta a pena aplicada, seja relevante para outros efeitos, nomeadamente de promoção na carreira…”

2. O que dizer dos argumentos invocados?

2.1. A amnistia impede que a conduta praticada seja tomada em linha de conta para efeito de decisão administrativa que tenha por missão apreciar o mérito ou demérito do visado?
Claro que não. Como já afirmámos, a amnistia (seja ela própria ou imprópria) atinge o acto praticado, não na sua materialidade, mas nas suas consequências. Ou seja, o que se pretende na amnistia (própria ou imprópria) é só impedir que o agente agraciado sofra sanção em que poderia vir a ser ou em que já foi condenado, não apagando por isso mesmo o facto na sua materialidade naturalística.

Assim, os actos praticados, enquanto reveladores da personalidade do visado, poderão ser tomados em linha de conta na tomada de decisões administrativas, como são as promoções por distinção.
A personalidade do ser humano, os seus méritos e deméritos, revela-se pelo comportamento exterior, pelo bom ou mau desempenho das suas funções.

Por isso mesmo, todas as condutas tidas no passado, sendo susceptíveis de reprovação, embora amnistiadas e não podendo por isso mesmo ser alvo de qualquer tipo de sanção, podem porém ser tidas em conta para efeitos de decisão administrativa. A lei de amnistia não mata o homem velho dando à luz o homem novo. O homem e o seu comportamento subsistem. Apenas se impede que condutas do passado entretanto amnistiadas sejam alvo de sanções.
Concordamos por isso mesmo com a jurisprudência e a doutrina abundantemente citadas por V.ª Ex.ª. Porém, a questão é outra. Será que o art.º 266.º, alínea c), 1), do EMGNR se refere em si mesmo a uma decisão administrativa? Não conterá o referido preceito uma verdadeira sanção?

2.2. Quando é que uma impossibilidade de promoção deve ser considerada uma decisão administrativa assente na apreciação do mérito ou demérito do visado, e portanto sem natureza sancionatória, e quando é que deve ser considerada uma consequência jurídica da sanção aplicada? Será que, quando se impede uma promoção, a decisão que na sua base se encontra é sempre uma decisão de mérito? Claro que não.

Mas vejamos estes pontos mais de perto.
O problema decisivo que importa resolver é o da distinção entre efeitos das penas e efeitos dos crimes para cuja análise se torna indispensável ter em conta alguns textos legais, desde logo o art.º 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”.
No mesmo sentido reproduzindo aliás o texto constitucional vem dispor o art.º 65.º, n.º 1, do Código Penal.

2.2.1. A questão da distinção entre penas acessórias e efeitos das penas tem sido mais recentemente colocada pela generalidade da doutrina e jurisprudência em termos diversos. Tradicionalmente, penas acessórias são “aquelas que só podem ser pronunciadas na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal. Distinguem-se assim – ao menos de um ponto de vista puramente teorético – dos chamados efeitos das penas, onde se trata de consequências, necessárias ou pendentes de apreciação judicial, determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória; efeitos que, deste modo, podendo embora possuir “carácter penal”, não assumem a natureza de verdadeiras penas por lhes faltar o sentido a justificação as finalidades e os limites próprios daquelas”.( )

Com efeito, a doutrina portuguesa, apoiando-se no art.º 83.º do Código Penal de 1886 e no art.º 65.º do Código Penal de 1982, entendeu dever-se fazer a distinção entre pena acessória e efeito da pena através do carácter automático ou “ope legis” que o efeito da pena envolve por oposição à pena acessória, que, embora recortada dos efeitos das penas, carece de ser objecto de uma sentença a proferir pelo juiz.

2.2.2. Tanto os efeitos das penas, como os efeitos do crime, como ainda a própria pena acessória, historicamente andam ligados à “infâmia” da legislação medieval e às penas de honra. Com efeito, a prática de certos crimes determinava tradicionalmente a incapacidade ou inabilitação do seu autor, atingindo por via de regra o delinquente após o cumprimento da pena principal. Pretendia-se através destas sanções adicionais ou complementares assegurar uma eficaz intimidação da generalidade das pessoas, afastando-as da prática do crime. No fundo, as penas acessórias e os efeitos da pena funcionavam como puras providências de conteúdo preventivo, estranhas por isso mesmo à ideia de culpa. Porém, razões ponderosas de política criminal aconselharam a uma revisão profunda da matéria, culminando nos textos anteriormente citados. Com efeito, o art.º 65.º, n.º 1, do Código Penal, ao dispor que nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, teve no fundo o intuito de retirar às penas todo e qualquer efeito infamante ou estigmatizante que acresce ao “inevitável mal” da pena. Compete ao Estado o dever indeclinável de assegurar a socialização do delinquente. Porém, como é bom de ver, o art.º 65.º é apenas uma norma inserida na legislação ordinária e, enquanto tal, não pode limitar o poder legislativo do legislador, assumindo nessa medida uma função meramente programática. No que concerne ao art.º 30.º, n.º 4, da Constituição, ele representa já, sem dúvida, o reconhecimento de que o princípio socializador foi de tal forma interiorizado no que concerne ao entendimento do correcto programa de política criminal, que foi elevado à categoria de princípio constitucional, obrigando o legislador passado e futuro em todo o campo de legislação penal a não conferir, em qualquer caso, automaticidade à produção daqueles efeitos. O Tribunal Constitucional já sustentou, aliás, que o art.º 30.º, n.º 4, da Constituição, não seria mais do que um corolário do princípio do Estado de Direito Democrático (art.º 2.º da Constituição) com implicações na Constituição Penal. Ainda segundo este Tribunal, os efeitos das penas traduzem-se materialmente numa verdadeira pena, que não pode deixar de estar sujeita, na sua aplicação, às regras próprias do Estado de Direito Democrático, designadamente reserva judicial, princípio da culpa, proporcionalidade da pena, etc. (Acórdão do Tribunal Constitucional n.ºs 127//84, e 16/84). Não é necessário, porém, ir tão longe. É que sempre se pode afirmar que o princípio da não produção automática dos efeitos das penas, estabelecido no art.º 30.º, n.º 4, decorre do princípio político-criminal de luta contra o efeito estigmatizante e criminógeno das penas.

Em conclusão, não pode, sob pena de inconstitucionalidade, qualquer pena ter como efeito automático a produção de certos efeitos, devendo estes surgir como objecto de sentença do tribunal. E, note-se, se isso é assim nos casos normais, por maioria de razão se impõe que o seja nos casos em que as condutas praticadas no passado tenham sido amnistiadas. Concluindo, e citando os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, o que o art.º 30.º, n.º 4, da Constituição pretende é proibir que “à condenação em certas penas se acrescente de forma automática, mecanicamente e independentemente de decisão judicial, por efeito directo da lei (“ope legis”) uma outra “pena” daquela natureza. A teleologia intrínseca da norma consiste em retirar às penas efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação social do delinquente e impedir que, de forma mecânica, sem se atender aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, se decrete a morte civil, profissional ou política do cidadão” (cfr. Acs. T.C. n.ºs 16/84, 91/84, 310/85, 75/86, entre outros). E note-se, como muito bem fez notar o Ac. T.C. 282/85, a doutrina do art.º 30.º, n.º 4, não deve restringir-se de modo algum à matéria criminal, justificando-se a sua aplicação aos demais domínios sancionatórios.
d) A análise do art.º 266.º do EMGNR.

Dispõe o art.º 266.º al. c), 1), do EMGNR, sob a epígrafe “Condições especiais de promoção a cabo”, que são condições especiais de promoção ao posto de cabo, por diuturnidade, “não ter sido punido na Guarda com o somatório de penas superior a 20 dias de detenção ou equivalente”. Pela leitura do citado artigo retira-se, sem margem de dúvida, que estamos na presença de um efeito automático da punição. Na verdade, ao se dispor na lei que o soldado que tiver sido punido com pena superior a 20 dias de detenção ou equivalente, deixa de reunir as condições especiais de promoção ao posto de cabo, facilmente se conclui que não estamos na presença de uma valoração autónoma, assente num comportamento anterior, mas de uma decorrência automática, e por isso “ope legis”, da pena anteriormente aplicada.

Contrariamente ao que pretende fazer crer V.ª Ex.ª, não se trata de uma decisão administrativa de apreciação da capacidade profissional e moral do militar, já que nenhuma apreciação é imposta, mas antes de um efeito ou consequência automática da pena aplicada. E não se argumente contra aquilo que acabamos de afirmar com o art.º 124.º do mesmo EMGNR. Com efeito, o referido preceito, ao permitir a título excepcional, para efeitos de inclusão na lista de promoção, que o Comandante Geral, ouvido o Conselho Superior da Guarda e mediante despacho fundamentado, dispense o militar dos quadros da guarda das condições especiais de promoção, com excepção do tempo mínimo de permanência no posto e da prestação de prova de concurso, não retira em nada a automaticidade das referidas consequências. Antes a vem corroborar. Na verdade, a única coisa que se pode afirmar é que, a título excepcional e por estrita conveniência de serviço, o Comandante Geral pode, através de despacho fundamentado, dispensar o militar das condições especiais de promoção. Acresce que nunca a decisão de inclusão ou não nas listas de promoção assenta na apreciação do mérito ou demérito do candidato, mas tão só na estrita conveniência de serviço. Em lado nenhum se atribui à entidade a quem compete a decisão da promoção qualquer tipo de valoração ou apreciação do candidato. Sendo assim, não tem razão V.ª Ex.ª quando defende estarmos na presença de uma medida administrativa sem carácter sancionatório, mas tão só profissional. Diremos até que a norma em causa, pelas razões anteriormente expostas, é inconstitucional, por violação clara do art.º 30.º, n.º 4, da Constituição.

Acresce, aliás, que mesmo que assim não se entendesse, e não vemos como, tendo o militar em causa sido punido com pena de detenção superior a 20 dias e dispondo a lei de amnistia – Decreto-Lei n.º 194/74, de 10 de Maio – que ficam amnistiadas todas as infracções disciplinares praticadas até à data, e com elas os efeitos das penas não excepcionados no art.º 2.º da referida lei, não podem as condutas amnistiadas fundar, em termos automáticos, qualquer tipo de consequência jurídica negativa. Note-se mais uma vez que a lei não faz decorrer de qualquer decisão administrativa, mais ou menos discricionária, a impossibilidade de promoção. Esta surge antes como uma decorrência normal e necessária da pena anteriormente aplicada. Podemos aliás configurar a seguinte hipótese. Suponha-se que o soldado em causa tem um “curriculum” invejável, com várias medalhas de mérito, e louvores averbados na sua caderneta. Suponha-se também que, não obstante apresentar uma carreira inteira de bom comportamento, vem a ser punido com pena de 22 dias de detenção. O militar deixa, por esse facto, de reunir as condições especiais de promoção. Se estivesse em causa uma decisão administrativa de apreciação do mérito do militar, e não uma sanção ou uma consequência automática da pena aplicada, a entidade a quem compete, nos termos da lei, a decisão de promoção deveria ter a possibilidade de decidir promover o militar em causa, atendendo ao mérito de toda uma carreira.
Porém não é isso que acontece. A lei faz decorrer da aplicação da pena de mais de 20 dias de detenção a impossibilidade de promoção, sem colocar nas mãos da entidade competente qualquer poder de apreciação quanto ao mérito ou demérito do candidato. Deste modo, amnistiados os ilícitos que determinaram o cumprimento da pena superior a 20 dias de detenção, não pode considerar-se a mesma para o efeito de impedir a promoção, nos casos em que esta consequência produz efeitos automáticos. Acresce, aliás, que esta solução não tem nada de estranho, contrariamente àquilo que pretende fazer crer V.ª Ex.ª É que, se assim não se entendesse, então, uma vez que a pena de detenção já tinha sido cumprida, não podendo por isso mesmo a lei de amnistia restituir a liberdade perdida durante esse período, nenhuma consequência benéfica para o visado poderia ser retirada. Que vantagem teria tirado da lei de amnistia? Nenhuma. Ora, visando a referida lei factos passados e penas já cumpridas, pretendendo através da medida de graça impedir que os factos praticados no passado, e em que houve decisão condenatória, possam fundar qualquer tipo de consequência jurídica futura, tem de se impedir que se produzam as consequências jurídicas que a lei em termos automáticos faz decorrer da punição. Para além disso, como vimos, o art.º 266.º, alínea c), 1), do EMGNR, ao estabelecer as condições especiais de promoção a cabo, impõe que o militar não tenha sido punido na Guarda com o somatório de penas superiores a 20 dias de detenção ou equivalente. Isto é, faz depender a promoção, não tanto dos factos praticados no passado, na sua dimensão naturalística, contrariamente ao que V.ª Ex.ª pretende fazer crer, mas sim das consequências jurídicas que a prática de tais factos acarretou para o infractor – condenação em pena superior a 20 dias de detenção ou equivalente. Ora, como vimos, tendo sido amnistiados os ilícitos que deram origem à detenção, ainda que estes não tenham sido apagados na sua materialidade, foi apagada a punição pelos mesmos, nunca nela se podendo fundar os efeitos negativos da não promoção. Como já se disse, a amnistia, enquanto acto de soberania estadual, vai criar um obstáculo à efectivação da punição, atingindo não o facto na sua materialidade, mas a pena e as consequências jurídicas desta.

Em Conclusão:

1) A norma do art.º 266.º, alínea c), 1), do EMGNR é uma norma de produção de efeitos jurídicos automáticos, não implicando qualquer decisão administrativa assente no mérito ou demérito do candidato; tem por isso natureza sancionatória.
2) Enquanto cominadora de efeitos jurídicos automáticos decorrentes da aplicação da pena, é inconstitucional, como resulta de forma clara do art.º 30.º, n.º 4, da Constituição e da jurisprudência do Tribunal Constitucional.
3) Independentemente de assim se considerar ou não, o art.º 266.º, alínea c), 1), do EMGNR estabelece, como condição de não promoção, a condenação em pena superior a 20 dias de detenção ou equivalente, e não a prática de quaisquer factos naturalisticamente considerados; ora, tendo a lei da amnistia apagado a detenção a que o guarda foi condenado, não pode fundar-se nela a decisão de não promoção.
4) A própria lei da amnistia, ao excluir do seu âmbito no art.º 2.º, os efeitos das penas já verificados -exemplificados com situações em tudo equiparáveis à presente -, é muito clara no sentido de que tais efeitos são por ela abrangidos desde que ainda não verificados.

Nestes termos,RECOMENDO:

Que seja revogado o despacho de V.ª Ex.ª de 21 de Fevereiro de 1994 e que, consequentemente, seja reconhecido ao reclamante o direito à promoção, verificados que sejam os demais pressupostos previstos no art.º 266.º do EMGNR, reiterando, assim, a minha recomendação n.º 18/A/95.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel