Presidente do Conselho de Administração da TAP Air Portugal
Rec. n.º 61A/97
Proc.:R-3336/94
Data: 28.07.1997
Área: A3
Assunto: SEGURANÇA SOCIAL – TRABALHADOR DA TAP – PRÉ-REFORMA – CÁLCULO DE PENSÃO – PREJUÍZO – COMPENSÃO – DECRETO-LEI 329/93, DE 25 DE SETEMBRO.
Sequência: Não Acatada.
1. Como é do conhecimento de V.ª Ex.ª, foram-me dirigidas várias reclamações subscritas por trabalhadores da TAP, actualmente na situação de reforma, que alegam, essencialmente, o seguinte:
1.1. Entre os reclamantes e a TAP foram celebrados acordos de pré-reforma, por via dos quais os trabalhadores ficaram vinculados a requerer a passagem à reforma, assim que completada a respectiva idade mínima legal de acesso.
1.2. Em 25 de Setembro de 1993, foi publicado o Decreto-Lei n.º 329/93, que alterou, em larga medida, as condições de reforma e as regras de cálculo das pensões do regime geral de segurança social (regime em que os trabalhadores da TAP se encontram genericamente integrados).
1.3. De entre as alterações introduzidas, há uma que traduz inelutavelmente a menor relevância do tempo de serviço para efeitos do cálculo da pensão: a taxa anual de formação de pensão por cada ano civil passou de 2,2% (nos termos do art. 2º do Decreto Regulamentar n.º 9/83, de 7.2) para 2%, nos termos do art. 32º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 329/93. Daqui resulta que, para se atingir a pensão máxima (equivalente a 80% da remuneração de referência), são necessários 40 anos de serviço com registos de contribuições, ao contrário dos anteriores 36 anos e meio.
1.4. Para além da relevância do tempo de serviço, também a forma de cálculo da remuneração de referência foi alterada, em termos que se podem considerar genericamente mais desfavoráveis para os trabalhadores cujo último período da sua carreira profissional se passou numa só empresa, por, nestes casos, ser de esperar um aumento progressivo das remunerações ao longo dos anos. Assim, a remuneração de referência passou a ser determinada em função das remunerações (actualizadas por aplicação do índice geral de preços no consumidor) dos dez anos civis em que aquelas sejam mais elevadas, compreendidos nos últimos quinze anos (art. 33º, n.º 1). No regime anterior, o cálculo era feito tendo em conta as melhores remunerações de cinco anos de entre os últimos dez.
1.5. De tais alterações legais resultou, nos casos que me foram apresentados, uma diminuição do valor da pensão de reforma quando comparada com a que teria sido atribuída ao abrigo do regime anterior. Num dos casos, que refiro a título de exemplo, a diferença é de Esc. 96.930$00 mensais, o que representa cerca de 30% do valor recebido.
2. Não está aqui em causa questionar a aplicação do novo regime de protecção na invalidez e na velhice à situação dos reclamantes. Na inexistência de normas transitórias que excepcionem situações como a dos reclamantes, rege o princípio da aplicação da lei nova aos factos novos e, portanto, as relações de reforma que se constituam depois da sua entrada em vigor são abrangidas pelo novo diploma.
3. O que, pelo contrário, interessa evidenciar é que a alteração das circunstâncias em que os contratos de pré-reforma foram celebrados pode, em alguns casos, revestir os requisitos necessários para se considerar que se justifica a correcção das prestações contratuais.
4. Assim, recorrendo ao instituto da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, previsto no art. 437º do Código Civil, há que verificar se se encontram reunidos os respectivos requisitos: por um lado, se houve uma alteração anormal das circunstâncias e, por outro, se a exigência das obrigações à parte lesada afecta gravemente os princípios da boa fé contratual e não está coberta pelos riscos próprios do negócio.
5. No que respeita à primeira condição de admissibilidade, é inegável que se verificou uma modificação das circunstâncias em se fundou a decisão de contratar. Não se trata de um erro sobre essas circunstâncias, mas de uma alteração superveniente. Com efeito, em todos os casos em apreciação os acordos de pré-reforma foram celebrados antes da entrada em vigor do aludido Decreto-Lei n.º 329/93. Por outro lado, uma vez que, por efeito do contrato, os trabalhadores ficaram vinculados a requerer a reforma logo que reunidas as respectivas condições, não foi indiferente à sua decisão de contratar o regime que então era aplicável àquela relação, nomeadamente quanto ao montante da pensão de reforma que iriam receber. E não se trata de uma “aspiração subjectiva extracontratual de uma parte”( ), mas de condição que afecta todo o negócio, porquanto respeita de forma directa a ambas prestações contratuais: o trabalhador vincula-se a requerer a reforma e a entidade patronal deixa de ter o encargo com o pagamento da remuneração ou da prestação de pré-reforma em virtude da caducidade da relação laboral.
6. Por alteração anormal das circunstâncias tem-se entendido que se deve estar perante uma alteração imprevisível, pois caso contrário – ou seja, em caso da alteração poder ter sido prevista pelas partes – ou se trata de uma situação de erro ou foi intencional a não previsão contratual dos possíveis efeitos da verificação de tal alteração. Os reclamantes assinaram os acordos de pré-reforma em data anterior à publicação do Decreto-Lei n.º 329/93, a qual ocorreu em 25 de Setembro de 1993 (sendo certo que a entrada em vigor só veio a verificar-se em 1 de Janeiro de 1994). E, nessa altura, ao contrário do afirmado pelos serviços da empresa que V.Exa dirige, não era previsível que viesse a ocorrer a alteração do regime de cálculo das pensões de reforma do regime geral de segurança social, nos moldes que veio a revestir. Na verdade, este tipo de alterações, porque obviamente impopular, não é habitualmente divulgado com antecedência pelo Governo pelo menos em toda a sua extensão e com todas as implicações. Aliás, o próprio preâmbulo do diploma (cfr. ponto n.º 7, 4º) procura apresentar uma visão optimista das alterações introduzidas, podendo mesmo levar um intérprete menos atento a concluir tratar-se de uma medida que representa um aumento das pensões. Com efeito, afirma-se ter-se regressado “à fixação da taxa da pensão em 2% por ano civil, com manutenção da taxa mínima de 30% e da taxa máxima de 80%”, explicitando-se, de seguida, que “esta última, em conjugação com a revalorização das remunerações, é susceptível de contribuir para uma efectiva melhoria do montante das pensões dos beneficiários com maior carreira contributiva”.
Por outro lado, ainda que tivessem sido anunciadas tais medidas e tivessem sido explicitados os seus efeitos negativos no montante das pensões, o certo é que seria legítimo esperar que o novo diploma não se aplicasse aos contribuintes em vias de requerer a passagem à reforma e, consequentemente, contivesse normas transitórias similares às constantes do Decreto-Lei n.º 286/93, de 20.8 (diploma que alterou a forma de cálculo das pensões de aposentação no âmbito do regime de protecção social da função pública). Aliás, nem é possível afirmar-se que as alterações legislativas não podiam ser ignoradas pelos trabalhadores, em face da sua divulgação pela comunicação social. É que até à aprovação do projecto em Conselho de Ministros (o que ocorreu em Julho de 1993) são muito raras as notícias que se debruçam sobre o teor das reformas. E é curioso verificar que até as centrais sindicais – que formularam propostas na fase da preparação do diploma – manifestaram alguma surpresa em face do teor das medidas aprovadas, que consideraram não terem tido em atenção aquelas propostas e serem “injustas” para os trabalhadores (cfr., por exemplo, Público de 9.7.93 e Diário Económico de 12.7.93).
7. Falar-se em alteração anormal das circunstâncias implica, ainda, a existência de uma parte lesada, cujos prejuízos assumem alguma relevância. Caso contrário, estaremos perante uma alteração desprezível, sem significado. Se é certo que nem todos os trabalhadores que celebraram acordos de pré-reforma sofreram prejuízos de vulto com a aludida alteração das circunstâncias em que fundaram a sua decisão de contratar – casos, por exemplo, em que a diferença do montante da pensão é compensado pelo complemento atribuído pela TAP( ) – não é menos certo que, noutros, se verificaram danos não desprezíveis. Recordo o caso referido em 1.5. e saliento que, tratando-se de uma pensão de reforma, a diminuição do valor mensal da pensão, que é vitalícia, se repercute ao longo de toda a vida do pensionista e, mesmo depois da sua morte, no montante da pensão de sobrevivência que, eventualmente, venha a ser atribuída aos seus herdeiros hábeis. Por outro lado, a tal prejuízo corresponde, do lado da TAP, o inegável benefício de aqueles trabalhadores terem solicitado a passagem à situação de reforma assim que atingida a respectiva idade mínima de acesso, o que determinou a caducidade dos seus contratos de trabalho e, consequentemente, a desoneração da TAP quanto ao pagamento da remuneração (sem prejuízo de outros direitos que os trabalhadores mantêm, junto da empresa, enquanto reformados). Ou seja, se os trabalhadores tivessem previsto a alteração que veio a verificar-se, não teriam celebrado os acordos de pré-reforma, requerendo a passagem à reforma apenas quanto estivesse assegurado o acesso à pensão máxima. O acima exposto não impede que a avaliação do carácter anormal dos prejuízos não deixe de ser feita caso a caso. De facto, o instituto em análise exige sempre uma apreciação atenta das circunstâncias concretas de cada contrato e da situação relativa de cada uma das partes.
8. Resta, então, averiguar se a exigência aos trabalhadores das obrigações por eles assumidas afecta gravemente os princípios da boa-fé. Para a apreciação deste requisito, importa chamar à colação as circunstâncias de facto e de direito que precederam todo o processo de negociação dos acordos de pré-reforma. É sabido que, ao abrigo do art. 12º do Decreto-Lei n.º 261/91, de 25 de Julho, os então Ministros das Finanças, das Obras Públicas, Transportes e Comunicações e do Emprego e Segurança Social aprovaram, por despacho conjunto de 11 de Maio de 1992, medidas facilitadoras do recurso à pré-reforma, tais como o reconhecimento, pelo período de um ano, da equivalência à entrada de contribuições, a concessão pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional de uma comparticipação no pagamento das prestações de pré-reforma e a previsão da faculdade de os trabalhadores de passarem à situação de reforma com 60 anos. Ora, se assim é, se o Governo promoveu directamente a criação de condições mais vantajosas na celebração dos acordos de pré-reforma, é natural que os trabalhadores tivessem confiado que, uma vez celebrados tais acordos, estas condições não fossem alteradas por intervenção do mesmo órgão executivo. Por isso, exigir-lhes a manutenção dos contratos tais como se encontram ofende gravemente o princípio da boa fé, na sua vertente da tutela da confiança legítima.
9. A Direcção-Geral de Pessoal dessa empresa, quando confrontada pelos serviços da Provedoria de Justiça sobre a possibilidade de ser acolhida a sugestão da modificação dos contratos, pelos motivos expostos, para além de questionar a imprevisibilidade da alteração legislativa, em termos inaceitáveis pelas razões que já se aduziram, alegou que tais alterações se verificaram no âmbito da relação trabalhador-segurança social e não no domínio da relação trabalhador-entidade empregadora. Ora, a verdade é que a constituição da primeira relação, no momento e nos termos em que ocorreu, resultou do dever que os trabalhadores assumiram, nos contratos de pré-reforma celebrados com a entidade patronal, de requerer a reforma assim que atingida a respectiva idade de acesso. E parece-me suficientemente demonstrada, pelo que já foi dito, a relevância que tal dever assumiu no domínio da esfera contratual em causa. Invocou, por outro lado, que a passagem à situação de reforma resultou necessariamente do disposto no art. 10º do aludido Decreto-Lei n.º 261/91, e não da correspondente obrigação do contrato.
Quanto a este aspecto, sempre se diz que se trata inelutavelmente de uma obrigação contratual, sendo irrelevante aferir se a mesma decorre do regime imperativo do contrato ou da esfera de liberdade de estipulação das partes. Por último, não se duvida da importância do princípio da estabilidade dos contratos de que essa empresa faz apelo. Todavia, é inegável que, no seu confronto com o princípio da justiça, este prevalece sobre aquele. É aliás desta ponderação de interesses em presença que surge o instituto da alteração anormal das circunstâncias.
10. Por todo o exposto, RECOMENDO:
Que essa empresa, após requerimento fundamentado dos trabalhadores interessados com a invocação dos prejuízos por si sofridos, proceda à avaliação das situações em que se verificaram prejuízos de vulto. E, nesses casos, deverão ser promovidas formas de compensação de tais prejuízos, através da modificação da relação existente entre a empresa e os trabalhadores, nomeadamente por via do aumento da prestação complementar de reforma.
Informo ainda V.ª Ex.ª que, sobre o assunto da presente recomendação, foi formulada, nesta data, a Sua Excelência o Primeiro-ministro, a recomendação de que junto cópia (recomendação n.º 60/A/97).
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel