Presidente da Direcção do Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual
Número:50/A/97
Processo:R-3865/96
Data:19.06.1997
Área: A2

Assunto:CULTURA E COMUNICAÇÃO SOCIAL – APOIO AO CINEMA – FUNDOS COMUNITÁRIOS – PROGRAMA MEDIA I – RECUSA DE FINANCIAMENTO

Sequência:Não Acatada

I-Dos Factos

1. A Provedoria de Justiça recebeu uma reclamação da Associação SCALE, protestando o cumprimento pelo Estado Português, através do IPACA, do pagamento de 50% dos custos do seu funcionamento durante o período de vigência do Programa MEDIA I – 1991/1995 (adiante designado de Programa), conforme compromisso assumido perante a Comissão Europeia.

2. Este Programa destina-se a promover a indústria cinematográfica europeia, nomeadamente em Estados-membros com fraca capacidade de desenvolvimento do audiovisual, ou em regiões com uma área geográfica ou populacional restrita, tendo sido iniciado através da celebração em 15 de Dezembro de 1991 de uma convenção, entre o IPC, por Portugal, e a Comissão das Comunidades, pela União Europeia, tendente à implantação de duas das dezanove estruturas do Programa em Portugal.

3. A instalação dos dois projectos ou estruturas (MEDIA E LUMIÈRE), implica o pagamento pela Comissão e pelo Estado-membro de acolhimento da totalidade dos custos de funcionamento, em partes iguais, que o Estado, através do IPACA, não cumpriu na totalidade.

4. Inquirido o IPACA relativamente ao bem fundado das queixas do reclamante, foi argumentado, em síntese:
– não ser líquido que o Estado português se tivesse comprometido a financiar parte substancial do Programa MEDIA I, nos termos do art. 3.º da Decisão do Conselho das Comunidades de 21/12/90 (e não do Conselho Europeu, como afirma por lapso), publicada no JOCE n.º L 380/37, de 31 do mesmo mês. Nem o Governo português, nem o ex-IPC (actual IPACA), são ou foram partes contratantes da Comissão no âmbito do Programa MEDIA, mas sim a Associação SCALE;
– mesmo que, por mera hipótese, se entenda que foi o ex-IPC a assumir a obrigação de financiamento por conta própria, esta obrigação apenas vigorava para o ano de 1992, em que o financiamento foi realizado, inexistindo qualquer dívida actual pelo IPACA;
– embora não reconhecendo a existência da dívida, o IPACA procurou averiguar junto da Associação reclamante da existência contabilística da dívida, ou de compromissos perante terceiros, que apenas pudessem ser assegurados mediante a transferência “do montante alegadamente em dívida”. Tendo a Sociedade de Revisores Oficiais de Contas que auditou a Associação SCALE concluído que a situação financeira desta Associação é boa, inexiste qualquer fundamento para intervenção do Estado;
– relativamente às transferências de verbas do IPACA para a Associação LUMIÈRE, gestora do Projecto com o mesmo nome, estas deveram-se, não ao reconhecimento de qualquer dívida pelo IPACA, mas sim a uma dádiva, atendendo a que a análise efectuada às contas de 1992 a 1995 da Associação, revelou a existência de um saldo negativo que não permitiria cumprir os compromissos assumidos perante terceiros.

II-Da Instrução do Processo: Prova Produzida

5. A questão controvertida respeita à factualidade relativa à existência de um compromisso assumido pelo Estado Português através do ex-IPC, relativamente ao pagamento de parte dos custos de financiamento da Associação SCALE, durante os anos de 1993 a 1995.

6. Nas atribuições do extinto Instituto Português de Cinema, inseria-se o fomento da cultura e criação cinematográfica, bem como o apoio, incentivo e disciplina das actividades cinematográficas, nomeadamente através da celebração de protocolos e acordos com entidades públicas e privadas (vd art. 3.º do Decreto-Lei n.º 391/82, de 17 de Setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 51/91, de 25 de Janeiro). O Decreto-Lei n.º 25/94, de 1 de Fevereiro revogou os decretos supra citados, extinguindo o IPC, sucedendo-lhe o IPACA na universalidade dos direitos e obrigações de que era detentor, e em quaisquer outras posições decorrentes da lei ou de negócio jurídico, sem necessidade de quaisquer formalidades posteriores (vd art. 26.º, n.ºs 1 e 2 deste decreto).

7. No âmbito das suas atribuições, e no exercício das competências que lhe foram legalmente cometidas pelo DL n.º 391/82, a Presidente do ex-IPC (Dra. Eduarda Rosa), que celebrou em 1991 com a Comissão das Comunidades, a convenção relativa à promoção do Programa MEDIA I e sua instalação em Portugal, afirmou que nas negociações para a instalação do Projecto SCALE em Portugal foi assumido que o parceiro nacional na comparticipação dos custos de funcionamento do Projecto seria o ex-IPC. Com efeito, afirma que: “Neste sentido, foi assumido que o parceiro nacional do Programa Media no Projecto SCALE seria o Instituto Português de Cinema, o que se traduzia, em termos financeiros, na comparticipação em 50% dos custos de funcionamento do Projecto, incluindo neste montante, a cedência de instalações e o apoio logístico e administrativo.”Refira-se que a existência de um parceiro nacional que garantisse aquele funcionamento era, aliás, uma regra imposta pela Comissão Europeia neste tipo de Projectos, que como tal funcionavam em todos os países em que estavam sediados.”

8. Também o anterior Presidente do ex-IPC, Sr. Manuel Falcão, que negociou a criação em Portugal dos projectos LUMIÈRE e SCALE, corroborou a assunção pelo ex-IPC da obrigatoriedade de financiamento do Programa SCALE até final, conforme exigência comum da Comissão Europeia para criação de Projectos no seio do MEDIA I: “(…) com o conhecimento da tutela, foi assumido que o Governo Português se comprometeria a participar em 50% dos custos de funcionamento dos respectivos projectos, o que era uma regra geral de funcionamento e criação dos projectos no seio do MEDIA. Era entendimento comum entre os representantes portugueses nas negociações e a tutela que este compromisso existiria até final do MEDIA, em Dezembro de 1995 (…).”
“Durante o período em que exerci as funções de Presidente do IPC e posteriormente enquanto Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Secretário de Estado da Cultura, e tanto quanto me foi dado saber, os atrasos que se verificaram no pagamento dos encargos acima referidos, foram sempre justificados por dificuldades de tesouraria, nunca tendo sido posto em causa o compromisso firmado e o interesse de Portugal na sua manutenção nos referidos projectos.”

9. Idêntica posição foi corroborada pela Sra. Holde LHOEST, que, enquanto representante da Comissão das Comunidades, negociou com o ex-IPC a instalação do Projecto SCALE em Portugal. Mais afirmou aquela funcionária da Comunidade que a obrigação de subsidiar os custos de funcionamento pelo Estado-membro, se aplicou a todos os 19 (dezanove) Projectos decorrentes do Programa MEDIA I, nos seguintes termos:
“b) Il a été base des negociations que la Comission a menées en 1991 avec les autorités portugaises en vue de la création de deux projets à Lisbonne:
SCALE et LUMIÈRE. Les interlocuteurs de la Commission ont été, à l`époque, MM. Pedro Santana Lopes, Sécrétaire d`État à la Culture, António Pedro Vasconcelos, alors Coordinateur du Sécretariat National de l`Audiovisuel, et Manuel Falcão, Président de l`IPC.”
“c) Il était entendu que l`accord intervenu au sujet des objectifs et du financement des structures portugaises couvrirait toute la durée de MEDIA I, à l`instar des conventions avec les autres projets du Programme.”

10. O não cumprimento atempado destas obrigações pelo Governo Português, segundo foi comunicado à Associação reclamante pelo Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Secretário de Estado da Cultura, Sr. Manuel Falcão, e pela ex-Presidente do IPACA, Dra. Zita Seabra, deveu-se a dificuldades financeiras. Mas foi igualmente afirmado que esta impossibilidade era temporária, o que foi igualmente corroborado aos responsáveis europeus pelo Dr. Pedro Santana Lopes, enquanto Secretário de Estado da Cultura.

11. Nunca, até ao final do Programa, foi posto em causa, quer o compromisso firmado, quer o interesse de Portugal na manutenção dos Projectos SCALE e LUMIÈRE.

12. Quando da necessidade de devolução ao ex-IPC, em meados de 1993, das instalações cedidas para o funcionamento da sede da Associação SCALE, aquele comunicou à reclamante que os custos inerentes aos novos escritórios seriam assegurados pelo Instituto, englobando-se aquele montante na sua participação financeira no SCALE.

13. A Associação SCALE é uma associação de direito privado sem fins lucrativos, cujo objecto visa contribuir para a promoção da indústria audiovisual na Europa, relativamente aos países com menor capacidade (arts. 1.º e 2.º dos “Articles of Association”), e as suas receitas resultam de subsídios e doações concedidas por entidades públicas e privadas (art. 16.º do referidos estatutos).

III-Do Direito Aplicável

14. A Decisão do Conselho de 21 de Dezembro de 1990 (90/685/CEE), in JOCE N.ºL 380/37 de 31-21-90 (Decisão), prevê que o Programa tem uma duração quinquenal (1991-1995), e nele se estipula a obrigatoriedade de os co-contratantes que participem na realização das acções previstas no seu artigo 3.º assegurarem uma parte substancial do financiamento, representativa de pelo menos 50% do respectivo custo.

15. O contrato foi celebrado pelo Estado Português, através do IPC, e a Comissão das Comunidades, ao abrigo da supra referida Decisão, para a qual remete expressamente nos seus considerandos, afirmando todos os negociadores da convenção (representantes do ex-IPC e da Comissão), a assunção por Portugal de 50% dos custos de funcionamento inerentes ao Projecto SCALE.

16. A existência de um pagamento feito pelo IPC em 1992 não afasta a existência de um compromisso que se destine a vigorar durante um período de 5 (cinco) anos; ao contrário das obrigações instantâneas, as obrigações duradouras podem traduzir-se no cumprimento de prestações de execução continuada, ou de prestação periódica, renovando-se em cada período anual (art. 1.º da Decisão, e “Article 8” da convenção celebrada entre o IPC e a Comissão das Comunidade) – sobre a distinção entre a estrutura das obrigações, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I vol., 3ª ed., Almedina, 1980, p. 62 e segs..

17. E embora a letra dos acordos celebrados possa não ser peremptória nesse sentido, não pode uma das partes alegar desconhecimento das negociações nas quais participou, para se eximir ao seu cumprimento. Quem negoceia com outrém para a conclusão de contratos, deve proceder de boa-fé, sob pena de responder pelos danos que venha a causar, culposamente, à outra parte (art. 227.º do Código Civil – CC), incluindo-se entre as relações negociais o esclarecimento e a veracidade de factos ou informações prestadas pelas partes.

18. A relevância dos factos preliminares ou preparatórios dos acordos, afastada pelas teorias declarativistas, é elemento essencial para a interpretação e integração das declarações negociais (vd Subsecção IV, Título II, do Livro I do Código Civil, “Interpretação e integração”), bem como para a relevância do interesse prosseguido num determinado negócio jurídico (sobre a “causa” do negócio, JOÃO de CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. III, Lisboa, 1979, p. 403, e 559).

19. Este interesse legalmente protegido é a causa da relação de provisão acordada a favor do beneficiário (art. 443.º CC), ficando o promitente vinculado, quer aos deveres acessórios de conduta, quer ao cumprimento da obrigação.

20. Do mesmo modo, aliás, sendo certa a assunção pela jurisprudência e doutrina da responsabilidade do Estado na formação dos contratos, a boa-fé constitui princípio que deve nortear toda a actividade da Administração, no exercício da sua actividade administrativa (art. 6.º-A do Código de Procedimento Administrativo, aditado pelo Decreto-Lei n.º 6/96, de 31 de Janeiro – CPA).

21. Nos termos da norma supra citada, deve a Administração pautar-se pelos valores fundamentais do direito, nomeadamente “a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa” (al. a) do .º2 do art. 6.º-A CPA). A inexistência de uma “regra” escrita (que não expressa – art. 217.º, n.º1 CC), a inexistência de uma inserção contabilística de um crédito (embora o mesmo conste dos anexos às convenções assinadas para os anos de 1993 a 1995), ou a boa situação financeira da entidade credora (que se pode dever à canalização para o funcionamento administrativo de verbas destinadas ao financiamento de projectos), não relevam para o incumprimento de uma obrigação previamente assumida, como pretende o IPACA.

22. Mas não só no momento da formação do contrato vigoram princípios de boa-fé; também no seu cumprimento, devem as partes pautar a sua actuação pelos ditames da boa-fé (arts. 762.º, 789.º e 799.º do Código Civil), devendo os contratos ser pontualmente cumpridos – isto é, na íntegra, e nos precisos termos em que foram acordados, de forma a satisfazer a pretensão que levou o credor a celebrar o contrato em causa. É certo que, da parte do devedor, interessa “a colaboração leal na satisfação da necessidade a que a obrigação se encontra adstrita. Por isso ele se deve ater, não só à letra, mas principalmente ao espírito da relação obrigacional. (…) O apelo aos princípios da boa-fé, feito nos termos amplos que constam do art. 762.º, n.º2 (…) trata é de apurar, dentro do contexto da lei ou da convenção de onde emerge a obrigação, os critérios gerais objectivos decorrentes do dever de leal cooperação das partes, na realização do cabal interesse do credor com o menor sacrifício possível dos interesses do devedor, para a resolução de qualquer dúvida que fundadamente se levante” nomeadamente “acerca dos deveres de prestação (forma, prazo, lugar, objecto, etc.) (…)” (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, II vol., 3ª ed., Almedina, 1980, pp. 11-12).

23. Sendo certo que o prazo e o objecto de um contrato são elementos essenciais do negócio, e como tal determinantes na vontade de contratar, se o IPACA ignora as condições em que determinado acordo fôra celebrado, competia-lhe não se ater à inexistência de “regras do Programa MEDIA I”, escritas, e averiguar das negociações tendentes ao acordado entre o Estado português e a Comissão das Comunidades.

24. Da análise das declarações dos negociadores pelo Estado Português e pela Comissão, resulta clara, quer a garantia do interesse do Estado no Projecto SCALE, quer a assunção da obrigação de custear em 50% os custos administrativos necessários à gestão e aplicação dos fundos comunitários de financiamento de projectos, durante todo o quinquénio 1992-1995.

25. Sendo certo que o IPACA sucedeu na universalidade das relações jurídicas do IPC, nos seus poderes e atribuições, inexistindo qualquer supressão do fim a cuja prossecução a sua actividade visava, compete àquele instituto o cumprimento pontual das obrigações contratualmente assumidas pelos seus órgãos – não relevando quaisquer alterações sofridas no seu suporte (ESTEVES de OLIVEIRA, Direito Administrativo, vol. I, 10ª ed., Almedina, p. 218, MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. II, p. 205).

Pelo que,RECOMENDO:

Ao IPACA que seja prestado o pagamento à Associação SCALE, de 50% dos custos de funcionamento inerentes à instalação e implementação do Projecto SCALE em Portugal, conforme compromisso assumido pelo ex-IPC junto da Comissão Europeia para os anos 1992/1995.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel