Ministra do Ambiente
Número: 6/B/97
Processo: 2570/91
Data: 21.03.1997
Área: A1

Assunto: AMBIENTE – APICULTOR – ABELHARUCO – ESPÉCIES PROTEGIDAS – DANOS – RESPONSABILIDADE – INDEMNIZAÇÃO – CONVENÇÃO DE BERNA RELATIVA à CONSERVAÇÃO DA VIDA SELVAGEM E DOS HABITATS NATURAIS DA EUROPA, RATIFICADA PELO DECRETO Nº 95/81, DE 23 DE JULHO.

Sequência: Não Acatada

I – Introdução

A Reclamação

1. O Provedor de Justiça recebeu uma reclamação relativa aos prejuízos causados por abelharucos “Merops apiaster” na actividade apícola, na sequência da qual foi instruído processo neste Órgão do Estado.

2. Os abelharucos são aves migradoras que nidificam em Portugal (bem como em outros países do Sul da Europa e do Norte de África), após terem passado o Inverno na África tropical e, pela raridade das suas ocorrências, estão submetidos a medidas especiais de protecção.

3. A impossibilidade legal do abate dos abelharucos, por força do disposto no Decreto n.º 95/81, de 23 de Julho (Convenção de Berna), e a circunstância de aquelas aves se alimentarem de insectos voadores – em especial, abelhas e vespas – podem, em conjunto, causar diminuição considerável na população dos enxames e, por via desse facto, perdas significativas aos apicultores.

4. No âmbito da instrução do processo importava, pois, não só cuidar da situação concreta apresentada pelo reclamante mas, também e principalmente, tratar de buscar uma solução para a generalidade de casos similares.

II – Exposição de Motivos

Do Regime Jurídico de Protecção do Lobo Ibérico: Identidade de Objectivos

5. O ordenamento jurídico português apenas contempla um regime específico de protecção relativamente a espécies selvagens não cinegéticas: o do lobo ibérico (“Canis lupus signatus Cabrera”, 1907).

6. A Lei n.º 90/88, de 13 de Agosto (que define as bases para a protecção, conservação e fomento daquela espécie protegida), e o Decreto-Lei n.º 139/90, de 27 de Abril (que a regulamenta), não se limitam a estipular a proibição de abate ou captura do lobo ibérico, mas compreendem, igualmente, regras sobre a detenção, transporte, comercialização e exposição de exemplares, sobre os meios de extermínio, sobre os cães assilverados e sobre a natureza das infracções e seu processamento.

7. O n.º 1, do art. 6º, da Lei n.º 90/88, sob a epígrafe “responsabilidade do Estado face a eventuais prejuízos causados pelo lobo”, determina que “o Estado assume a responsabilidade de indemnizar os cidadãos que venham a ser considerados como directamente prejudicados pela acção do lobo”.

8. O art. 9º,do Decreto-Lei n.º 139/90, regulamenta o procedimento de participação da ocorrência, da vistoria ao local, do exame aos animais e do cálculo e pagamento da indemnização.

9. Para além do mecanismo indemnizatório previsto nas normas referidas – instrumento imprescindível para a inversão da tendência de rarificação e desaparecimento – são também previstas excepções à proibição de abate e captura do lobo ibérico.

10. No n.º 1, do art. 2º, elencam-se as situações em que é excepcionalmente permitido o abate e a captura de exemplares de “Canis lupus signatus Cabrera”, 1907:

a) No interesse da protecção da fauna [alínea a)];

b) Para prevenção de danos relevantes no gado e na caça [alínea b), 1ª parte];

c) Para salvaguarda de interesses patrimoniais [alínea b), “in fine”];

d) Por motivos de saúde pública [alínea c)];

e) Para fins de investigação, de educação, de repovoamento, de reintrodução e de criação artificial da espécie [alínea d)].

11. A autorização para abate ou captura é concedida mediante a emissão de uma credencial, da qual consta:

– o número de exemplares a abater ou capturar;

– a delimitação da área abrangida;

– a indicação dos processos a utilizar; e

– o prazo de validade.

12. Tendo em vista as finalidades de educação ambiental ou a prossecução de fins científicos, é permitida, excepcionalmente, a detenção, o transporte, a comercialização e a exposição de exemplares do lobo ibérico, nos termos do disposto no art. 5º.

13. A detenção de exemplares vivos do “Canis lupus signatus Cabrera”, 1907 – quando permitida – é condicionada ao respeito dos requisitos de aptidão das instalações e de outras características relativas ao maneio e à alimentação dos animais, comprováveis mediante vistoria (cfr. art. 6º, n.ºs 3, 4 e 5).

14. A deslocação de exemplares vivos carece de autorização, nos termos do disposto no n.º 6, do mesmo art. 6º.

15. O disposto no art. 7º, referindo-se aos laços, “ferros” e armadilhas para captura do lobo ibérico, define o princípio geral de proibição do seu fabrico, detenção, comercialização e uso, bem como a necessidade de organização e manutenção de um registo actualizado dos fabricantes e comerciantes de meios de extermínio.

16. Por fim, foi disciplinado um regime contra-ordenacional (cfr. art.s 10º a 13º), que prevê – para além da enumeração das contra-ordenações e respectivas coimas – as sanções acessórias correspondentes.

17. Resulta do que ficou exposto que a Lei n.º 90/88, de 13 de Agosto e o Decreto-Lei n.º 139/90, de 27 de Abril, criaram um regime jurídico coerente e tendencialmente completo para protecção do lobo ibérico.

18. Com efeito, a lei que define as bases e o Decreto-Lei que a regulamenta, definiram regras relativamente ao abate, captura, detenção, transporte, comercialização e exposição de exemplares de “Canis lupus signatus Cabrera”, 1907; acrescidamente, previram normas sobre o controlo de cães assilvestrados; regularam, ainda, o processo de ressarcimento dos prejuízos causados pelo lobo; e, por fim, disciplinaram a matéria da responsabilidade contra-ordenacional.

19. Regime semelhante inexiste no ordenamento jurídico português relativamente ao abelharuco (“Merops apiaster”), o que, significando uma menor protecção conferida a estas aves, conduz, igualmente, à falta de previsão de mecanismos de ressarcimento pelos danos por elas causados.

Da Convenção Relativa à Protecção da Vida Selvagem e do Ambiente Natural na Europa (Convenção de Berna)

20. Os diplomas que criaram o regime jurídico de protecção ao lobo ibérico e seu habitat contêm os princípios básicos informadores da política de conservação da Natureza que levaram, igualmente, à assinatura, e posterior ratificação em Portugal, de uma convenção, no âmbito do Conselho da Europa, com o objectivo de garantir a conservação da flora e da fauna selvagens e dos seus habitats naturais: a Convenção de Berna.

21. Aliás, a disciplina jurídica contida na Lei n.º 90/88, de 13 de Agosto e no Decreto-Lei n.º 139/90, de 27 de Abril, representa a adopção, a nível nacional, das medidas legislativas e regulamentares necessárias ao cumprimento das finalidades da Convenção Relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa (a mencionada Convenção de Berna), assinada em 19 de Setembro de 1979 e ratificada, em Portugal, pelo Decreto n.º 95/81, de 23 de Julho.

22. O anexo II à Convenção enumera, sob a epígrafe “Espécies da fauna estritamente protegidas”, os mamíferos, as aves, os répteis e os anfíbios que gozam de protecção total no território dos respectivos países contratantes.

23. Entre os primeiros (mamíferos), na categoria “Carnivora, Canidae”, figura o “Canis lupus”; entre as segundas (aves), na categoria “Coraciformes, Meropidae”, consta o “Merops apiaster”.

24. Carecendo ambas as espécies de semelhante protecção, é injustificado que apenas o lobo ibérico goze de um regime jurídico que a confira, estando por regulamentar os aspectos relativos à defesa das outras espécies, designadamente o abelharuco.

25. O regime contido no texto da Convenção de Berna visa a adopção, pelos países contratantes, de medidas necessárias à conservação da flora e fauna selvagens e dos habitats naturais (cfr. art.s 2º e 3º).

26. Em cumprimento do disposto no art. 4º (artigo único, do Capítulo II, intitulado “Protecção dos habitats”), devem as partes contratantes tomar “as medidas legislativas e regulamentares adequadas e necessárias à protecção dos habitats das espécies selvagens da flora e da fauna, especialmente das que são mencionadas nos anexos I e II, e à defesa dos habitats naturais ameaçados de extinção” (cfr. n.º 1).

27. No tocante às espécies da fauna selvagem enumeradas no anexo II – incluindo, como se viu, tanto o lobo ibérico, como o abelharuco – devem ser tomadas “as medidas legislativas e regulamentares adequadas e necessárias para garantir a (sua) conservação” (cfr. art. 6º, do Capítulo III, epigrafado “Conservação das espécies”).

28. Em especial, são proibidas as formas de captura intencional, detenção e abate intencional [cfr. alínea a)]; a deterioração ou destruição intencionais dos locais de reprodução ou das áreas de repouso [cfr. alínea b)]; a perturbação intencional da fauna selvagem [cfr. alínea c)]; e a detenção e a comercialização interna de animais vivos ou mortos, incluindo os embalsamados, e de qualquer parcela ou produto obtidos a partir do mesmo animal [cfr. alínea d)].

29. No art. 9º enumeram-se os casos em que se permitem derrogações às proibições atrás enunciadas.

30. As excepções permitidas (apenas quando não exista outra solução satisfatória) e sempre relativas (pois nunca poderão por em causa a sobrevivência da população), devem respeitar a protecção da flora e da fauna, permitir a prevenção de danos importantes nas diferentes formas de propriedade, interessar à saúde e segurança públicas, segurança aérea ou outros interesses públicos prioritários, visar a investigação e educação ambiental, o repovoamento, a reintrodução e a criação de exemplares, e, por fim, possibilitar a captura, a detenção ou qualquer exploração permitida de animais ou plantas.

31. O art. 10º (único, do Capítulo IV, “Disposições especiais respeitantes às espécies migradoras”), confere especial protecção às espécies migradoras enumeradas nos anexos II e III.

32. Nos termos do disposto no art. 12º, o regime previsto na Convenção de Berna não impede a adopção de medidas mais restritas relativamente à protecção das espécies da flora e fauna selvagens.

Do Decreto-Lei n.º 316/89, de 22 de Setembro (e o Decreto-Lei n.º 196/90, de 18 de Junho)

33. A regulamentação da Convenção Relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais ocorreu mediante a publicação do Decreto-Lei n.º 316/89, de 22 de Setembro.

34. No art. 4º, reafirma-se o princípio geral da proibição da captura, detenção e abate intencionais, bem como das outras formas de destruição ou perturbação intencionais, das espécies da fauna inscritas no anexo II da Convenção de Berna [cfr. alíneas a) a e), do n.º 1]; no n.º 2 prevêem-se as respectivas excepções.

35. No art. 7º enumeram-se os meios, métodos e equipamentos cuja utilização não é permitida para perseguir, capturar ou matar as espécies da fauna selvagem protegidas pela Convenção.

36. Em casos excepcionais, porém, é autorizada a prática de actos ou actividades proibidas, ou a utilização de meios vedados, desde que não exista alternativa satisfatória e se verifique algum dos pressupostos enunciados no n.º 1, do art. 8º:

a) Para protecção da flora e da fauna [alínea a)];

b) Para prevenção de danos importantes nas culturas, nas florestas, nas águas, na caça, nas pescas e no gado [alínea b)];

c) Por motivos de defesa da saúde pública, da segurança da população e da segurança aérea ou de outros interesses públicos prioritários [alínea c)];

d) Para fins de investigação, de educação, de repovoamento, de reintrodução e de criação artificial das espécies da flora e da fauna [alínea d)].

37. No n.º 2 da mesma disposição definem-se os termos da credencial que titula a autorização.

Da Inexistência de Disposições Legais e Regulamentares Sobre Ressarcimento de Prejuízos Causados por Espécies Protegidas (Exceptuando o Lobo Ibérico)

38. Em parte alguma do diploma vêm previstas normas relativas ao ressarcimento de danos causados pelas espécies protegidas no âmbito da Convenção, ou decorrentes da impossibilidade de as capturar ou apanhar.

39. O Decreto-Lei n.º 196/90, de 18 de Junho, alterou a o regime das contra-ordenações pela prática de infracções ao Decreto-Lei n.º 316/89, tendo, em especial, elevado os limites máximos dos montantes das coimas e alargado o número de sanções acessórias cuja aplicação é possível.

40. Subsiste, no entanto, a omissão legislativa, e regulamentar, no tocante à indemnização devida pelos prejuízos causados pelas espécies protegidas pela Convenção Relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa, ou resultantes da proibição de as capturar ou apanhar.

41. Apenas no tocante ao “Canis lupus signatus Cabrera”, 1907, o Estado Português assume a responsabilidade de ressarcimento dos prejuízos causados. Para tornar eficaz a política de conservação de outras espécies selvagens, deve ser criado um regime similar que contemple as espécies da flora e da fauna cuja protecção é assegurada no âmbito da Convenção de Berna.

Do Ressarcimento de Prejuízos Causados Antes da Entrada em Vigor do Diploma a Criar

42. A reclamação que motivou a presente intervenção do Provedor de Justiça era relativa a prejuízos causados por abelharucos na actividade apícola do Sr…

43. É certo que, mesmo em casos em que o ressarcimento de prejuízos vem previsto e o seu regime regulado (v.g. a Lei n.º 90/88, de 13 de Agosto e o decreto-lei n.º 139/90, de 27 de Abril, no que se refere ao lobo ibérico), o pagamento de indemnização não é automático e obedece a um procedimento que compreende a participação da ocorrência, a vistoria ao local, o exame aos animais, o cálculo da indemnização e, finalmente, a entrega da quantia.

44. Apesar do tempo entretanto decorrido, julgo que o I.C.N.-Instituto da Conservação da Natureza, deve indemnizar o Senhor… pelos prejuízos causados pela acção dos abelharucos.

45. Lembro a Vossa Excelência que a informação n.º 267/92, de 25/05/92, do Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza – homologado por despacho de 15/06/92, de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Recursos Naturais – refere expressamente que “a espécie de ave em questão (“Abelharuco Merops apiaster”), embora estritamente protegida no âmbito da legislação nacional e Comunitária em vigor, pode, em determinadas condições, vir a causar localmente alguns prejuízos nas actividades apícolas, sendo então legítima a tomada de medidas correctoras apropriadas” e conclui que “basicamente, esta situação resulta em prejuízo dos cidadãos lesados, sem benefício aparente para as espécies em causa”.

46. Acresce que ao Sr… não pode ser imposto o encargo de suportar os prejuízos causados pela espécie em questão uma vez que, em tempo, solicitou autorização para “afugentar” aquelas aves, tendo-se verificado conflito negativo de competências que impediu uma resposta ao seu requerimento.

47. Assim, o diploma a criar – ou a alteração legislativa a introduzir – deve assegurar o ressarcimento dos danos provocados por espécies selvagens não cinegéticas, ainda que anteriores à sua entrada em vigor, desde que o lesado faça prova da sua verificação e do seu valor.

48. Só assim será assegurada uma adequada protecção dos “habitats” das espécies selvagens da flora e da fauna descritas na Convenção, através da motivação dos diferentes intervenientes no processo de conservação.

49. O mecanismo indemnizatório – se justo e célere – constituirá um precioso meio de prossecução dos princípios do equilíbrio, da procura do nível mais adequado de acção e da responsabilização, para concretização do direito fundamental a um ambiente ecologicamente equilibrado (cfr. art. 66º, da Constituição da República Portuguesa e art.s 2º e 3º, da Lei de Bases do Ambiente), do mesmo passo que permitirá proceder com justiça à repartição dos encargos com a conservação da natureza.

50. De outra forma, a proibição do abate, da captura ou da colheita, da destruição ou da deterioração dos habitats e da perturbação das espécies durante os períodos de reprodução e de dependência, não beneficiará do auxílio, nem da colaboração, de quem com elas convizinha – em especial dos agricultores, dos criadores de gado e dos apicultores.

51. Esta faculdade – de ver ressarcidos os danos causados pelas espécies protegidas antes da entrada em vigor do diploma a criar – deve excepcionar os prejuízos provocados pelo lobo ibérico, na medida em que, quanto a estes, está já prevista, desde 1988, a possibilidade de ser requerida a respectiva indemnização.

Pelas razões que deixei expostas,

RECOMENDO

A promoção de iniciativa legislativa destinada à elaboração de diploma, ou à alteração do actualmente existente, por forma a possibilitar o ressarcimento dos danos causados pelas espécies da fauna protegidas no âmbito da Convenção Relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos “Habitats ” Naturais.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL