Presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras
Número:48/A/96
Processo:R-1342/92
Data:23.04.1996
Área: A1
Assunto:URBANISMO E OBRAS – LICENÇA DE CONSTRUÇÃO – NULIDADE – DIREITO AO AMBIENTE.
Sequência: Acatada
I-Exposição de Motivos
1. Através do ofício n.º…., recomendei a V.ª Ex.ª (recomendação n.º 130/A/95) a declaração de nulidade do acto de licenciamento da construção do edifício implantado nos lotes 1 e 2 do alvará de loteamento n.º 14/86, bem como a demolição parcial da mesma construção na medida em que esta afectasse as condições de boa habitabilidade das fracções que integram o lote n.º 25-A, da Av.ª General Humberto Delgado, desde que, por falta de acordo entre os interessados, em tempo razoável, não se mostre possível retirar às fracções cuja utilização é lesada a qualidade de vãos de compartimentos de habitação.
2. Fundamentaram-se as medidas recomendadas na constatação de que a violação pelo citado acto de licenciamento das normas contidas nos art.ºs 58.º, 59.º e 73.º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, conduziu a um atentado ilícito ao conteúdo essencial do direito fundamental dos queixosos ao ambiente (art.º 66.º, n.º 1, da CRP, e art.º 133.º, n.º 2, alínea d) , do Código do Procedimento Administrativo).
3. Consideradas as normas infringidas como o resultado da delimitação negativa do conteúdo do direito ao ambiente, entendi que se encontravam manifestamente comprometidos os níveis mínimos de arejamento, iluminação e exposição directa à luz solar que as mesmas visam tutelar, e assim, atingida a essencialidade do ambiente objecto do direito fundamental em questão.
4. Dando cumprimento ao preceituado no art.º 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, transmitiu V.ª Ex.ª a posição assumida pela Câmara Municipal de Torres Vedras através do ofício n.º … do ano findo.
5. Pretende justificar esse órgão autárquico o não acatamento da Recomendação, considerando que o acto de licenciamento contestado não terá violado qualquer dos preceitos urbanísticos invocados como fundamento das medidas sugeridas.
6. No entanto, não posso deixar de entender como contraditória tal argumentação em face da posição anteriormente assumida pela Câmara Municipal de Torres Vedras, pela Inspecção Geral da Administração do Território e pelo próprio Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa na acção de indemnização interposta pelos moradores do lote n.º 25-A contra essa Câmara Municipal e o seu Presidente. Com efeito, aceite que o licenciamento do edifício implantado nos lotes 1 e 2 do alvará 14/86 havia violado várias disposições do RGEU, tais ilegalidades constituiriam vícios de violação de lei, geradores de mera anulabilidade, pelo que se encontrariam convalidadas na ordem jurídica por efeito do decurso do prazo para interposição de recurso contencioso de anulação (cfr. a título exemplificativo a Informação n.º …, da IGAT) . Em consequência, aos interessados restaria recorrer aos adequados meios jurisdicionais a fim de obter o ressarcimento pelos prejuízos causados.
7. Não se vislumbram, deste modo, quais os novos elementos que tenham conduzido a Câmara Municipal de Torres Vedras a alterar a posição anteriormente assumida, concluindo pela inexistência de infracções aos referidos preceitos do RGEU. Funda-se a resposta desse órgão autárquico na inexistência de tais irregularidades sem que se justifique a discordância relativamente ao anterior entendimento, comum à própria entidade de tutela inspectiva.
8. No que concerne ao teor da argumentação aduzida para refutar a violação dos art.ºs 58.º, 59.º e 73.º, do RGEU, cumpre referir, em primeiro lugar, que sendo o alvará de loteamento n.º 14/86 posterior à licença de construção do lote n.º 25-A, não teve o acto de licenciamento da operação de loteamento em conta a implantação do designado lote 3. Com efeito, veio a prever como zona aedificandi uma área que abria a possibilidade de implantação no lote 2 causadora de prejuízo para os moradores do primeiro edifício e para o interesse público na criação de condições urbanísticas adequadas.
9. Assim, a empena lateral sul do edifício a implantar nos lotes 1 e 2, mesmo considerando as alterações aprovadas por despacho de 17.11.1991, conflitua sempre com o disposto no art.º 73.º, do RGEU, atenta a existência de vãos de compartimentos de habitação na fachada principal do lote n.º 25-A.
10. Por outro lado, a Câmara Municipal de Torres Vedras, ao determinar o embargo das obras de construção do edifício reclamado, pelas razões enunciadas na resposta à Recomendação, está a admitir um entendimento inverso àquele que, logo após, pretende sustentar quanto ao sentido e alcance da disposição contida no art.º 73.º, do RGEU. Isto porque, de outro modo, não se vê que outro fundamento possa ter tido o embargo, a admitir, como pretende esse órgão autárquico, que o citado preceito apenas tenha como finalidade proteger o edifício a construir, e não, concomitantemente, os edifícios já construídos.
11. O que vem exposto no ponto 3 da resposta em análise, não fez caso julgado, dado encontrar-se em apreciação no âmbito do recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa para o Supremo Tribunal Administrativo.
12. Relativamente ao teor do ponto 4 da resposta, cumpre começar por precisar a apreciação adoptada pela Câmara Municipal de Torres Vedras quanto ao conceito legal de fachada fronteira. Aquilo que esse órgão autárquico entende como fachada fronteira, para efeitos de aplicação do disposto nos art.ºs 59.º e 60.º, do RGEU, não deixa de corresponder à verdade, mas o certo é que, corresponde apenas a parte da verdade.
13. As edificações situadas a montante da Av.ª General Humberto Delgado são, com efeito, prédios fronteiros. Todavia, a fachada principal do edifício implantado no lote 2 não pode deixar de ser entendida como fachada fronteira, na medida em que, sobressaem da mesma corpos volumétricos salientes cujos lados terão que ser considerados como fachada fronteira, a qual, de resto, se opõe à fachada principal do edifício 25-A numa linha traçada perpendicularmente.
14. Certo é que o primeiro dos apontados balanços avançados se encontra a uma distância inferior aos 10 metros estipulados no art.º 60.º, do RGEU, sem ser necessário determinar qual o valor obtido segundo o disposto no art.º 59.º a partir da linha recta a 45.º traçada desde o limite da edificação anterior.
15. Considera na resposta formulada a Câmara Municipal que as condições de salubridade e ambiente acauteladas pelo disposto no art.º 58.º são, apenas e tão só, as do próprio edifício que se pretende construir ou reconstruir, não se vislumbrando violação desta norma pelo acto de licenciamento do edifício reclamado. Outro tanto, sustenta a Câmara Municipal quanto à esfera de protecção das normas contidas no art.º 73.º, cingida essa esfera de protecção, segundo a argumentação do Município, “às habitações a construir que tenham janelas que deitem sobre muro ou fachadas fronteiros” (Ac. STA, de 11.12.1964, in AD, n.º 40, p. 458).
16. A jurisprudência citada por V.ª Ex.ª, em abono deste entendimento, encontra-se, porém, ultrapassada. E, ultrapassada em bom sentido, ou seja, no sentido de uma concepção conforme à Constituição no tocante à salvaguarda dos valores ambientais e urbanísticos, à prossecução do ordenamento do território e à garantia dos legítimos interesses de terceiros (art.º 266.º, n.º 1, da CRP).
17. Assim, e neste sentido, em Acórdão de 25 de Outubro de 1990, o Supremo Tribunal Administrativo vem a considerar que o art.º 73.º do RGEU é de aplicar, tanto ao licenciamento da construção do prédio em que se abrirão os vãos, como ao licenciamento do outro, sem vãos para esse lado, se existirem vãos para o lado do outro, em prédio fronteiro já construído. Fundamenta o Tribunal esta conclusão na consideração de que a norma em análise se destina a fixar os espaços livres, resultando estes de uma relação, de uma posição relativa das construções, devendo, por isso, ser tidos em conta quando do licenciamento de qualquer das construções envolvidas. Neste sentido prossegue a motivação do citado Acórdão, considerando que tratando-se de salvaguardar os interesses de insolação e arejamento as edificações, não teria qualquer sentido que se impusesse que uma janela ou outro vão não fosse aberta a menos de 3 metros do muro ou parede fronteiro se, logo de seguida, se autorizasse a construção de muro ou parede a, por exemplo, 50 cm da janela ou do vão, assim se desvirtuando a medida de salvaguarda antes adoptada. Em conclusão, tratando-se de uma norma relacional, impõe-se a sua observância quando do licenciamento de qualquer das construções, quer da que tenha os vãos quer da outra.
18. No caso em análise, impõe-se a observância da distância mínima estatuída no art.º 73.º do RGEU, pelo que o acto de licenciamento do edifício implantado nos lotes 1 e 2 teria que ter em conta que no perímetro definido pelos 2 metros a partir do eixo vertical das janelas do prédio n.º 25-A não pode existir qualquer obstáculo à iluminação a uma distância inferior a 3 metros.
19. Também não se pode aceitar, por manifesto erro de interpretação e aplicação da disposição legal em análise, que esta norma “só proíbe a existência de obstáculos a um e outro lado das janelas, a menos de 2 metros dos respectivos eixos verticais” . Resulta claro do elemento literal da norma que esta impede a existência de obstáculos à iluminação dos dois lados das janelas, mas não é certo fazer depender a aplicação da proibição, em simultâneo, de obstáculos dos dois lados, uma vez que é manifesto que o desrespeito do limite mínimo de 3 metros apenas a um dos lados das janelas é suficiente para impedir o arejamento e iluminação da edificação.
20. Para mais, parece ser este o argumento utilizado pela Câmara Municipal de Torres Vedras para considerar que a demolição parcial da fachada principal do edifício dos lotes 1 e 2 constituiria uma solução excessiva, por violação do princípio constitucional da proporcionalidade, uma vez que localizando-se este edifício a poente do lote 25-A, não obstruiria a incidência directa dos raios solares nas citadas janelas.
21. Não procede tal argumentação, uma vez que qualquer obstáculo a poente de uma edificação impede a incidência, ainda que não directa, dos raios solares durante a parte da tarde. Não obstante, admitindo como válido tal argumento para efeitos de apreciação da proporcionalidade da medida, há que reconhecer que prescindindo a aplicação da proibição contida no art.º 73.º, de tal demonstração, certo é que, a esfera de protecção da norma não se limita à salvaguarda dos interesses ao arejamento, iluminação e insolação dos prédios, mas também à salvaguarda da reserva da intimidade da vida privada e familiar, sendo esta uma das preocupações expressas no preâmbulo do Regulamento, pelo que, sempre estaria afectado este valor, designadamente, através da violação simultânea do disposto no art.º 60.º do RGEU pelo primeiro dos corpos volumétricos avançados.
22. Deve acrescer-se que de nada servirá invocar o princípio da proporcionalidade em favor da manutenção da ilegalidade de um acto a praticar no exercício de um poder vinculado, ou seja, não há proporcionalidade relevante dentro das fronteiras da ilegalidade.
23. Refutada a argumentação aduzida pela Câmara Municipal de Torres Vedras para justificar o não acatamento da Recomendação que formulei em 9 de Novembro do ano findo, reitero – as considerações então formuladas quanto à responsabilidade desse órgão autárquico pelos prejuízos causados aos moradores do lote n.º 25-A em virtude do licenciamento inválido da construção dos lotes 1 e 2 do alvará n.º 14/86. Invalidade que se manteve, não obstante as alterações introduzidas no alinhamento da fachada principal desse prédio, uma vez que o facto da respectiva empena deixar de cobrir as janelas do lote n.º 25-A, bem como. a montra existente no rés do chão, foi insuficiente para assegurar o respeito pelas normas técnicas relativas à construção acima invocadas.
24. Constitui meu entendimento que, caso a Câmara Municipal de Torres Vedras não venha a repor a legalidade urbanística no presente caso manterá a violação de direitos subjectivos públicos dos moradores do edifício 25-A, devendo, como tal, ressarci-los, sem prejuízo, naturalmente, da responsabilidade civil do dono da obra infractora, cujos pressupostos não compete ao Provedor de Justiça analisar, visto que a intervenção deste Órgão do Estado se confina à fiscalização do exercício dos poderes públicos. Esta consideração nada obsta, nem é obstada, pela circunstância de se encontrar pendente recurso no Supremo Tribunal Administrativo (cfr. art.º 21.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril).
25. Conforme se viu, o princípio da proporcionalidade não releva no âmbito do exercício de um poder vinculado. Isto é, quando o legislador não confere ao órgão o poder de introduzir pressupostos, antes impõe a tomada de uma decisão quando sejam verificados determinados factos enunciados na lei, não pode fazer sentido procurar qual a solução menos onerosa para os particulares.
26. o mesmo já não sucede quando tais pressupostos enunciados na lei deixem de verificar-se por iniciativa dos particulares. Foi neste sentido que sugeri em alternativa à imediata demolição que se aguardasse um possível compromisso entre os interessados, o qual permitiria desqualificar as partes das fracções lesadas na sua fruição como vãos de compartimentos de habitação.
27. E como nada impede ao Provedor de Justiça recomendar a tomada de decisões que atenuem o estrito rigor da lei, desde que não extrapolem a sua letra, nem o seu espírito, mais sugiro que, após declarada a nulidade do acto de licenciamento da obra infractora seja notificado o seu responsável para, querendo, proceder à legalização da mesma, nos termos do disposto no art.º 167.º, § 1.º, do RGEU, o que passará por executar trabalhos no prédio vizinho de modo a deslocar o eixo das janelas existentes na fachada principal do lote n.º 25-A. Por tal forma garantirá que no limite de 2 metros definido a partir dos eixos verticais respectivos deixe de existir qualquer obstáculo à iluminação a uma distância inferior a 3 metros.
28. Objectará, porventura, V.ª Ex.ª que esta última sugestão deixará intocada a violação do disposto no RGEU sobre distâncias entre fachadas. Assim é, com efeito. Todavia, essa violação não atingindo a salubridade e insolação de vãos de compartimentos de habitação deixa de tocar no conteúdo essencial do direito fundamental ao ambiente, pelo que se poderá considerar como uma invalidade sanada pelo decurso do tempo – mas apenas quanto a esse ponto.
II-Conclusões
Em face do exposto e no exercício da atribuição constitucional que me é confiada para prevenção e reparação das injustiças e ilegalidades (art.º 23.º, n.º 1, da CRP) ,
RECOMENDO a V.ª Ex.ª :
A) Que delibere a Câmara Municipal de Torres Vedras no sentido de ser encontrada uma solução que assegure o respeito pelo edifício reclamado das prescrições contidas nos art.ºs 60.º e 73.º, do RGEU, e, assim salvaguarde os interesses dos moradores do lote n.º 25-A ao arejamento, iluminação e insolação das respectivas habitações, nos termos do disposto no art.º 58.º do mesmo Regulamento.
B) Que para esse efeito seja ponderada a possibilidade de deslocação do eixo das janelas existentes na fachada principal do lote n.º 25-A.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel