Secretário Regional da Habitação,
Obras Públicas, Transportes e Comunicações dos Açores
Número:54/A/96
Processo:R-1640/94
Data:30.05.1996
Área:A 1
Assunto:URBANISMO E OBRAS – OBRAS PÚBLICAS – VIA PÚBLICA – FALTA DE SINALIZAÇÃO – ACIDENTE DE VIAÇÃO – RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL – RESPONSABILIDADE DO DONO DA OBRA – FACTOS DE NATUREZA CRIMINAL – CRIME DE PERIGO COMUM.
Sequência: Sem resposta.
I-Dos Factos
1. C… apresentou queixa a este Órgão do Estado alegando que, em 3 de Outubro de 1992, seu filho, J…, menor, sofreu um acidente de viação, quando circulava em motociclo próprio, de marca “Vespa”, com a matrícula 1PDL-23-42, na Rotunda de Belém/S. Gonçalo – onde decorriam as obras designadas por “Saída Leste de Ponta Delgada” – em virtude da existência de um buraco no pavimento, circunstância agravada pela falta de sinalização avisadora.
2. Instado Vossa Excelência a pronunciar-se quanto ao teor da queixa, concluiu que:
a) terá havido co-responsabilidade do lesado na produção do acidente, já que este “não regulou a velocidade do seu veículo ao estado da via, nem conseguiu imobilizá-lo no espaço livre e visível à sua frente, indo embater no buraco lá existente, violando, assim, o n.º 1 do art.º 24.º do Código da Estrada”.
b) cabia ao empreiteiro – quer nos termos do contrato regulador da empreitada, quer nos termos do disposto na al. b) do n.º 2 do art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 235/86, de 18 de Agosto (actualmente al. b) do n.º 2 do art.º 24.º do Decreto-Lei n.º 405/93, de 10 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 101/95, de 19 de Maio) – garantir a segurança das pessoas empregadas na obra e do público em geral, executando os trabalhos para tanto necessários e assinalando os obstáculos existentes.
c) o direito do sinistrado a ser indemnizado já prescreveu, tendo em conta o disposto no n.º 1 do art.º 498.º do Código Civil, pelo que poderá o adjudicatário recusar o seu pagamento.
3. Foram ouvidos os Serviços Municipalizados da Câmara Municipal de Ponta Delgada.
II-Dos Fundamentos
4. Quanto ao sujeito da obrigação de indemnizar:
4.1. Admitindo que o dono da obra foi avisado da necessidade de realização dos trabalhos em causa, tendo ficado acordado com o empreiteiro que era a este que competia proceder à reparação da via, e que só a forma deficiente como tal veio a acontecer determinou o abatimento dos terrenos com o consequente aparecimento do obstáculo que veio a dar causa ao acidente (já que tais factos não foram contrariados por Vossa Excelência, quando confrontado com as informações prestadas pelo Serviços Municipalizados de Abastecimento de Água de Ponta Delgada), vejamos:
4.2. Decorre do disposto na al. b) do n.º 2 do art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 235/86, de 18 de Agosto, que aprovou o Regime de Empreitadas de Obras Públicas, constituir obrigação do empreiteiro a execução dos trabalhos necessários para garantir a segurança das pessoas empregadas na obra e do público em geral.
4.3. Semelhante obrigação decorre do disposto no art.º 4.º do Decreto Regulamentar n.º 33/88, de 12 de Setembro, que faz impender sobre aqueles que, por acção ou omissão, derem causa à existência de qualquer obstáculo localizado na via pública a obrigação de o sinalizar, de forma bem visível, e a uma distância que permita evitar qualquer acidente.
4.4. Nessa conformidade, necessário é concluir pela existência de acto culposo do empreiteiro, ao inobservar as disposições legais atrás citadas, não colocando os sinais avisadores do perigo existente, ainda que tenham os Serviços Municipalizados intervindo no local.
Assim, deve o empreiteiro indemnizar por facto ilícito.
4.5. Resta saber se poderá a Região Autónoma ser responsabilizada pelos danos verificados no acidente em apreço.
4.6. Merece aqui, integral aplicação o regime da responsabilidade pelo risco constante do art.º 500.º do Código Civil.
4.7. Na verdade, para que se verifique responsabilidade objectiva do comitente impõe-se, para além da existência de um facto danoso praticado pelo comissário no exercício da função confiada, a existência de uma relação de comissão, a qual se caracteriza pela verificação de um vínculo de autoridade e subordinação correspectivas.
4.8. Embora não seja de admitir que a relação de subordinação exista nos contratos civis de empreitada, atenta a autonomia com que o empreiteiro realiza a obra (vide entre outros, Ac. RP de 21.01.1977, BMJ, 265.º, 280; Ac. STJ de 30.01.1979, BMJ, 283.º, 301, ALMEIDA e COSTA, Direito das Obrigações, Coimbra, 4ª ed., pag. 404 e seg.; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Almedina, 6ª Ed., pag. 608 e seg), o mesmo não pode aceitar-se para o contrato administrativo de empreitada de obras públicas.
4.9. Efectivamente, tratando-se de um verdadeiro contrato administrativo (vide FREITAS do AMARAL, Direito Administrativo, 1985, Vol. III, pag. 424 e seg.), possui características relevantíssimas que o diferenciam do contrato de empreitada disciplinado pelo Código Civil.
Naqueles contratos, e atento o interesse público que a celebração dos mesmos visa prosseguir (vd. MÁRIO ESTEVES de OLIVEIRA, Direito Administrativo, Almedina, 1984, 2ª reimpressão, Parte II, Cap. IV, pag. 646), a autoridade administrativa detém um verdadeiro poder de direcção sobre o modo de execução das prestações, como se alcança da análise do disposto, nomeadamente, no art.º 157.º do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, em especial nas n) e o), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 235/86, de 18 de Agosto.
Na verdade, o papel desempenhado pela Administração na execução do contrato, extrapola a simples fiscalização, traduzindo-se num verdadeiro “acompanhamento directivo” (JOSÉ MARQUES VIDAL e JOSÉ CORREIA MARQUES, Empreitada e Fornecimento de Obras Públicas, 1982, Almedina, pag. 29).
4.10. Assim, não posso deixar de concordar com a doutrina exposta por Jorge Andrade da Silva, quando defende que “os poderes de direcção, de controle e de vigilância pertencem em exclusivo ao dono da obra, como poderes originários e inalienáveis, consequência da natureza pública do fim que se pretende realizar”, e acrescenta “O empreiteiro é um colaborador, mas completamente estranho à direcção propriamente dita. Esta revela-se particularmente (…) na emanação de ordens, no prosseguimento regular dos trabalhos, no controle sobre o aspecto técnico dos materiais, dos métodos de trabalho (…), resolução de situações imprevistas” (in anotação ao art.º 157.º do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, 1992, Almedina, 3ª edição, pag. 408) assistindo-se a uma verdadeira acção orientadora por parte do dono da obra.
5. É esta ordem de razões que me leva a concluir pela existência de uma relação de subordinação no contrato de empreitada de obras públicas, o que possibilita a aplicação do regime jurídico da responsabilidade objectiva do comitente relativamente aos actos culposos praticados pelo comissário no exercício do mandato.
Todavia, e estando a responsabilidade do comitente só justificada pelo proveito que este retira da actividade que deu origem à relação de comissão – já que na responsabilidade objectiva se prescinde da existência de culpa daquele – prevê-se o direito de exigir do comissário tudo o que pagou, excepto se houver também culpa da sua parte (n.º 3 do art.º 500.º do Código Civil), ficando assim relegado para uma posição de garante da indemnização. Na verdade, assistindo-se à existência de responsabilidade subjectiva do comissário, o lesado poderia ter optado, desde logo, pela sua interpelação mas o facto de não o ter feito não exime, como se viu, o comitente da responsabilidade de indemnizá-lo pelos danos sofridos.
6. Quanto à alegada prescrição:
6.1. Dispõe-se no n.º 3 do art.º 498.º do Código Civil que caso o facto ilícito constitua crime para o qual a lei estabeleça prazo mais longo que o previsto no seu n.º 1, será aquele o aplicável.
6.2. Ora, pela análise das disposições conjugadas dos art.º 263.º e 117.º, n.º 1 al. c) do Código Penal aprovado pela Lei n.º 24/82, de 23 de Agosto (ainda aplicável ao caso em apreço por força das disposições conjugadas do art.º 2.º, n.º 1 e 4 do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que aprovou o “novo” Código Penal), temos que o prazo prescricional para o crime de violação das regras de construção será não de três, mas de cinco anos.
Para que se encontre preenchido o tipo legal de crime previsto e punido no citado art.º 263.º do Código Penal – violação das regras de construção -, basta que a conduta em apreço, ainda que meramente negligente, viole disposições legais, regulamentares ou regras técnicas, que no caso e segundo as normas geralmente respeitadas ou reconhecidas devam ser aplicadas, no planeamento (concepção), direcção (orientação, administração, fiscalização) ou execução (realização em concreto) de construção ou demolição, por forma a criar, ainda que culposamente, um perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de grande valor (LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, art.º 263.º do Código Penal Anotado, Rei dos Livros, 1986, Vol. 3, pag. 331 e seg.).
O que se verificou ter acontecido.
6.3. Defende a doutrina, e é entendimento da jurisprudência dominante, que para a aplicação do prazo prescricional previsto no n.º 3 do art.º 498.º do C. Civil, basta que a conduta em apreço preencha, em abstracto, o tipo legal de crime a que se subsume.
Na verdade, admitindo-se a possibilidade de o facto, para o efeito de responsabilidade penal, ser apreciado em juízo para além dos três anos transcorridos sobre a data da sua verificação, nada justificaria que análoga possibilidade se não oferecesse à apreciação da responsabilidade civil (neste sentido, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 2ª edição, Vol. I, Pag. 505 e 506; VAZ SERRA, Prescrição do Direito de Indemnização, Estudos, BMJ, 87.º, 58; Ac. STJ, de 3.11.1985, BMJ, 331.º, 504; Ac. STJ, de 30.01.1985, BMJ, 343.º, 323).
6.4. Acresce que, e acompanhando o que vem sendo entendimento da doutrina e jurisprudência dominante, entendo que o comitente não beneficia de um prazo de prescrição do direito indemnizatório diverso daquele que a lei estipula para o comissário.
Com efeito, defende, nomeadamente ANTUNES VARELA, que o comitente responde objectivamente com base no princípio de que se ele se serve de outra pessoa para a realização de determinado acto, colhendo as vantagens dessa situação, é justo que sofra as consequências prejudiciais dela resultantes, sendo que a nota mais característica da situação do comitente é a sua posição de garante da indemnização perante o terceiro lesado (Das Obrigações em Geral, 2ª Edição, Vol. I, pag. 520, 521 e 533; PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA, art.º 498.º do Código Civil Anotado, 1987, Coimbra, 4ª edição, pag. 503).
Por seu turno, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. STJ, de 30.01.1985, BMJ, 343.º, 323) que “o prazo alongado do art.º 498.º (…) é aplicável a quem nos termos do n.º 1 do art.º 503.º do Código Civil, tem mera responsabilidade pelo risco, se agiu por intermédio de um comissário cuja condução tenha integrado um ilícito criminal”.
Atente-se que já o Tribunal da Relação do Porto havia entendido que “se a causa de pedir assentar em facto criminoso imputado ao comissário, cujo prazo de prescrição do respectivo procedimento seja mais longo que o prazo trienal previsto no art.º 498.º, n.º 1 do C. Civil, se observe tanto para o comissário como para o comitente, por força do n.º 3 do referido art.º 498.º, aquele prazo” (Ac. RP, de 19.01.1984, CJ, 1984, 1.º-217) e ainda, “o art.º 500.º, n.º 1 do C. Civil ao responsabilizar o comitente pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar, o que quer significar com esta expressão não é que esta responsabilidade do comitente se mantém e se extingue com a do comissário estando-lhe, pois, subordinada, mas sim que o comitente é, ab initio, e em princípio, responsável se o comissário também, e em princípio, o for (Ac. RP, de 12.04.1984, CJ, 1984, 2.º-241).
7. Atente-se que o prazo prescricional da obrigação de indemnizar só se inicia no momento em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete (art.º 498.º, n.º 1 do C. Civil).
Não sendo o direito à indemnização um direito absoluto, só após esclarecido o lesado quanto à natureza das relações entre a Região Autónoma – através do Governo Regional -, da sociedade empreiteira e dos Serviços Municipalizados, se poderá, com propriedade, falar do conhecimento do direito que lhe assiste.
8. Por outro lado, e mesmo que o direito à indemnização, por parte do lesado, já houvesse prescrito, o que não se concede, sempre haveria que invocar o princípios da boa fé, da tutela da confiança, e o cumprimento de obrigações naturais por parte das pessoas colectivas públicas.
9. Assim sendo, conclui-se que não pode o obrigado/comitente recusar o cumprimento da prestação, ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito do lesado a receber a indemnização apta a ressarci-lo dos danos emergentes da actuação culposa do comissário.
Conclusões
I) No âmbito do contrato de empreitada de obras públicas, o dono da obra é responsável, objectivamente, pelos danos causados a terceiro, pelo empreiteiro, na execução da tarefa que lhe foi confiada, nos termos do disposto no art.º 500.º do Código Civil.
II) Constituindo o facto ilícito, praticado pelo empreiteiro, crime para o qual a lei penal estabeleça prazo prescricional mais longo que o previsto no n.º 1 do art.º 498.º do Código Civil, será aquele o aplicável, também para o dono da obra.
III) Deverá a Secretaria Regional da Habitação, Obras Públicas, Transportes e Comunicações, indemnizar o acidentado dos danos que sofreu em consequência do sinistro.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel