General Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana
C/c: Ministro da Administração Interna
Número: 58/A/98
Processo: R-1722/95
Data:4.09.1998
Área: A5
Assunto:SEGURANÇA PÚBLICA – PSP – ABUSO DE PODER – DETENÇÃO ILEGAL – PRESSUPOSTOS MATERIAIS E FORMAIS – FLAGRANTE DELITO – INVALIDADE DO ACTOS PRATICADOS.
Sequência: Acatada
I-Introdução
Em… solicitei a V. Exa. que fossem ordenadas averiguações com vista ao esclarecimento de um caso de alegados maus tratos ocorrido na esquadra da Polícia de Segurança Pública (PSP) de Benfica, em Lisboa, que me foi participado pelo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.
A PSP respondeu prontamente que “em 95.07.18, foi ordenado ao Comando Metropolitano de Lisboa que instaurasse o respectivo processo” (cf. ofício nº…. fotocópia em anexo) e deu conta das conclusões do mesmo em 18.12.1995:
“o processo já foi concluído e não foi apurado qualquer ilícito disciplinar, pelo que o mesmo foi arquivado, aguardando, no entanto, a produção de melhor prova” (cf. ofício n.º…,fotocópia em anexo).
Mais precisamente, concluiu o Processo de Averiguações n.º … – que se destinava a apurar a eventual prática de agressões por parte de agentes pertencentes ao efectivo da esquadra de Benfica, na pessoa de … – que não se apurou matéria susceptível de configurar a aplicação de pena disciplinar ao subchefe L… e ao guarda L…, não sendo ainda “o seu comportamento perante a detenção do … (. . .) alvo de censura” (cf. n.º… do relatório final do Processo de Averiguações).
Permito-me duvidar de tais conclusões, especialmente no que concerne à legalidade da detenção e demais circunstâncias que a rodearam, nos termos e pelos fundamentos seguintes:
II-Exposição de Motivos
A-Os Factos
1. Aos supra identificados agentes da PSP incumbia a missão de conduzir o …, do Instituto Navarro de Paiva, sito na Rua …, em Lisboa, onde se encontrava internado, a um outro Estabelecimento Tutelar de Menores, situado na cidade da Guarda.
2. Para o efeito, deslocaram-se aqueles agentes ao Instituto Navarro de Paiva, cerca das 8.00 horas do dia 28.11.1994.
3. Ali, após diálogo circunstancial com o …, o subchefe … considerou-o suspeito da prática de um crime de violação, do qual tinha tido conhecimento, dado ter sido participado pela vítima poucos dias atrás, na esquadra de Benfica onde presta serviço.
4. Deste modo, em lugar de executar a missão que lhe fora confiada, acompanhando o … à cidade da Guarda, entendeu o subchefe …, por iniciativa própria, conduzi-lo, de imediato, às instalações da supra referida esquadra da PSP.
5. Onde, no mesmo dia, e uma vez mais por iniciativa própria, desencadeou investigações com vista ao esclarecimento do crime de violação.
5.1. Assim, cerca das 15.00 horas do dia 28.11.1994, foram ouvidos naquela esquadra, perante o subchefe …, em auto de declarações, … e … …, psicólogo técnico de educação e auxiliar técnico de educação do Instituto Navarro de Paiva, respectivamente;
5.2. Ali compareceu, pelas 17.30 horas, …, vitima do supra aludido crime, a qual, de igual modo, prestou declarações e
5.3. Procedeu ao reconhecimento do …, na qualidade de suspeito da autoria material do crime;
5.4. Tendo ainda reconhecido alguns objectos pertencentes ao suspeito, que lhe foram mostrados na esquadra;
5.5. Alguns dos quais apreendidos, instantes antes, no quarto do …, no Colégio Navarro de Paiva;
5.6. Já de noite, foi o … instado a deslocar-se ao local onde se teria consumado a violação, na companhia do guarda …, aparentemente com o objectivo de confirmar as suspeitas que sobre ele recaíam.
6. As 21 horas do dia 28.11.1994, o subchefe … registou a detenção do … por suspeita da prática de um crime de violação, em virtude de mandado de detenção emanado do Comando Distrital de Lisboa da PSP, nos termos e para os efeitos do disposto no número 2 do artigo 257º do Código de Processo Penal.
7. Na madrugada do dia 29.11.1994, em hora não especificada, o suspeito foi conduzido aos calabouços do Comando Metropolitano da PSP desta cidade, onde aguardou pela manhã, com vista a ser presente ao juiz de instrução criminal.
B-O Direito
8. Dispõe o número 2 do artigo 257º do Código de Processo Penal (que tipifica os casos em que pode ocorrer a detenção fora de flagrante delito) , no que especialmente concerne às autoridades policiais, o seguinte:
“As autoridades de polícia criminal podem também ordenar a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria, quando:
a) Se tratar de caso em que é admissível a prisão preventiva;
b) Existirem elementos que tornem fundado o receio de fuga; e
c) Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.”
Tal ordem passa, necessariamente, pela emissão de um mandado de detenção, com o formalismo imposto pelo número 1 do artigo 258º do CPP. Isto porque, aos pressupostos materiais da detenção fora de flagrante delito constantes do elenco supra citado, acrescem os pressupostos formais: o mandado das autoridades judiciárias ou a ordem das autoridades de polícia criminal (sendo certo que esta ordem, na terminologia do CPP, não é outra coisa senão o mandado de detenção, conforme resulta claramente do disposto no artigo 258º do CPP)
Conforme refere M. Simas Santos e Outros (Código de Processo Penal, 1996, Rei dos Livros, II vol., pp. 49) “a detenção só pode ter lugar com base em mandado para o efeito, passado segundo o formalismo previsto no art. 258º”.
Assim, no momento em que procedeu à detenção do …, não dispunha o subchefe …. de poderes bastantes para tanto.
Com efeito, a detenção, nos termos e para os efeitos do disposto nos normativos supracitados do CPP, não pode deixar de coincidir com o exacto momento em que o suspeito vê cerceada a sua liberdade por intervenção da entidade policial captora. E a partir deste momento, e não de qualquer outro, que se inicia a contagem do prazo previsto na alínea a) do artigo 254º do CPP, não sendo legítimo fazer coincidir a detenção com momento posterior, como ocorreu no caso em apreço, ao registar-se que o suspeito foi detido pelas 21 horas do dia 28.11.1994. Como resulta claramente da factualidade supra descrita o … esteve detido naquela esquadra da PSP de Lisboa desde o inicio da manhã do dia 28.11.1994 e não desde as 21 horas desse mesmo dia.
9. Por outro lado, dada a total ausência de referência ao facto, tudo indica que não foi observado o disposto no artigo 259º do CPP, segundo o qual, “sempre que qualquer entidade policial proceder a uma detenção, comunica-a de imediato ao Ministério Público” (cf. alínea b) do artigo cit., sublinhados nossos) , sendo legítimo supor que o Ministério Público só veio a tomar conhecimento da detenção – e demais diligências entretanto efectuadas pela PSP – quando o … deu entrada no Tribunal de Instrução Criminal na manhã do dia seguinte ao da detenção. Circunstância que, cumpre agora melhor explicitar, se reveste de apreciável gravidade, na medida em que até àquele momento, para além da detenção, a PSP levou a cabo, por iniciativa própria, as diligências investigatórias supra descritas (v. o número 5) , as quais consubstanciam verdadeiros actos de polícia judiciária, no sentido técnico do termo (sobre o, vd. José António Barreiros, Processo Penal, 1, Coimbra, 1981, p. 354).
10. Com efeito, a PSP não dispõe, à luz do Código de Processo Penal e demais legislação que rege a sua actividade, de competências originárias em matéria de investigação criminal. Bem pelo contrário, dispõe a alínea c) do artigo 5º do Estatuto da PSP, aprovado pela Lei n.0 321/94, de 29 de Dezembro, que a PSP só pode “praticar os actos processuais e de averiguação que lhe forem cometidos por lei ou por delegação” (em sentido bem diverso do que preceitua o decreto-lei n.0 295-A/90, de 21 de Setembro, que aprova a Lei Orgânica da Polícia Judiciária, a qual é configurada como um órgão de polícia criminal auxiliar da administração da justiça, tendo por atribuições a prevenção e a investigação criminal e presumindo-se deferida à Polícia Judiciária a competência exclusiva para a investigação de uma multiplicidade de crimes, v. artigos l.º, 2º e 4º do decreto-lei n.0 295-A/90, de 21/9). Tal regulamentação inscreve-se na opção – mais vasta e com consagração constitucional – por um modelo em que a investigação criminal foi pensada como actividade judicial (neste sentido vd. Cunha Rodrigues, A Posição Institucional e as Atribuições do Ministério Público e das Polícias na Investigação Criminal, BMJ, 984, n.0 337, p.38).
11. De facto, os órgãos de policia criminal actuam, no processo, sob a orientação das autoridades judiciárias e na sua dependência, coadjuvando-as com vista à realização das finalidades do processo (v. artigos 55º e 56º do CPP). Ora, assim sendo, mal se compreenderia que tal estatuto permitisse a uma Policia à qual não estão delegadas competências genéricas em matéria de investigação criminal – como é a PSP, a realização de actos típicos de investigação, por iniciativa própria e à revelia das autoridades judiciárias. Tal configuraria um autêntico “inquérito policial” ou “preliminar” que, como é sabido, há muito foi banido do ordenamento jurídico português.
12. Na verdade, é precisamente por se entender que a investigação criminal é susceptível de colocar em causa os direitos dos cidadãos que a Lei exige “garantia judicial” para a investigação. o que se vem a traduzir na função tutelar que cabe ao Ministério Público, juiz de instrução e juiz, consoante a fase do processo: inquérito, instrução ou julgamento, respectivamente. Numa palavra, e conforme refere José Souto de Moura: “o Código quis seguramente uma polícia “judicial”, e rejeitou sem dúvida uma “justiça” policial.” (vd. Inquérito e Instrução em O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, p. 107) . Lamentavelmente, foi de “justiça policial” que se tratou, no caso em apreço, sendo de resto inglório o esforço desenvolvido pela PSP, na medida em que grande parte dos actos descritos no número 5 supra, senão mesmo a sua totalidade, são susceptíveis de ser declarados inválidos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 123º do CPP.
13. O …, após ter sido ouvido no TIC de Lisboa, regressou ao Instituto Navarro de Paiva, de onde seguiu para o Colégio da Guarda, conforme estava inicialmente previsto, não tendo sido confirmada a detenção, nem realizada qualquer medida cautelar com vista a garantir os meios de prova. O que demonstra que, na perspectiva da investigação, eram dispensáveis quaisquer “actos de policia” a praticar naquele exacto momento. Ou seja, a simples comunicação ao Ministério Público, no âmbito do inquérito que já deveria existir sobre os factos (considerando que a queixa havia sido apresentada dias antes), revelar-se-ia certamente suficiente para garantir o bom curso da investigação. Infelizmente, não foi assim que os supra identificados agentes da PSP interpretaram a situação, com consequente violação do dever de zelo a que estão obrigados. O que se revela particularmente grave e preocupante na perspectiva, genérica, da salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, dado revelar uma deficiente compreensão das atribuições que estão legalmente cometidas à PSP.
III-Termos em que,RECOMENDO
a V. Exa., ao abrigo dos poderes que me são conferidos pelos artigos 23º, n.0 1, da Constituição da República e 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.0 9/91, de 9 de Abril, que seja determinada, de imediato, a reabertura do Processo de Averiguações nº…, com vista à reapreciação da conduta dos agentes nele identificados à luz das considerações antecedentes.
Aguardo resposta de V. Exa. a presente Recomendação, nos termos do disposto no artigo 38º, nº 2, da Lei n.0 9/91, de 9 de Abril, e esclareço, por último, que só agora tomo posição .sobre o assunto por ter entendido que seria útil e adequado aguardar o desfecho do inquérito n.º…, em curso no DIAP de Lisboa. Isto porque, sendo nele os arguidos agentes da PSP implicados nos factos, a decisão que ali vier a ser proferida reveste-se de assinalável interesse para a apreciação da actuação policial contestada, como é evidente. A demora na conclusão do processo judicial obriga-me, porém, a pronunciar-me sobre o assunto, sob pena de se tornar inviável o apuramento, em tempo útil, de eventuais responsabilidades disciplinares.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel