Presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras
Número: 130/A/95
Processo: 1342/92
Data: 09.11.1195
Área: A1

Assunto: URBANISMO E OBRAS – LICENÇA DE CONSTRUÇÃO – NULIDADE – DIREITO AO AMBIENTE – LUZ SOLAR – CONTEÚDO ESSENCIAL.

Sequência: Acatada

I – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

1. Através da exposição datada de 12.05.1992, os moradores do prédio nº …, da Av. … , freguesia de … , concelho de Torres Vedras, reclamaram contra o licenciamento do prédio implantado nos lotes 1 e 2 do alvará de loteamento nº …/86, cuja fachada principal encosta à daquele.

2. A construção do edifício implantado nos lotes 1 e 2 do loteamento titulado pelo alvará nº …/86, foi licenciada nos termos do Decreto-Lei nº 166/70, de 15 de Abril, tendo sido emitido o alvará de licença de construção nº …, de 25.07.1991.

3. A posição assumida pela Câmara Municipal de Torres Vedras e pela Inspecção-Geral da Administração do Território reconduziu-se, no essencial, a considerar que o licenciamento da construção nos lotes 1 e 2 violou várias disposições do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto, de 1951, como sejam as dos artºs 58º, 59º e 73º, bem como a do artº 1360º, do Código Civil, e desrespeitou as próprias prescrições do alvará de loteamento.

4. Não obstante, as ilegalidades verificadas constituiriam vícios de violação de lei, geradores de mera anulabilidade, pelo que se mostrariam convalidadas na ordem jurídica por efeito do decurso do prazo para interposição de recurso contencioso de anulação, atento o disposto no artº 89º da Lei das Autarquias Locais, e 28º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho.

5. Segundo a mesma posição, aos interessados restaria apenas recorrer aos adequados meios judiciais a fim de obter a defesa dos seus direitos, ou formular pedido de um eventual ressarcimento pelos prejuízos causados por tal licenciamento inválido.

6. É esta a posição assumida no recente inquérito realizado ao Município de Torres Vedras, pela Inspecção-Geral da Administração do Território. Com efeito, no ponto 7 das respectivas conclusões, pode ler-se: “o processo respeitante ao licenciamento da construção nos lotes 1 e 2 do loteamento titulado pelo alvará nº 14/86 não foi analisado porque o acto de aprovação está convalidado na ordem jurídica e os reclamantes procuraram fazer valer os seus direitos junto dos tribunais devendo, por isso aguardar-se a respectiva decisão”.

7. A composição jurisdicional dos conflitos em presença e a consequente prevalência da decisão que venha a ser proferida, não obsta, porém, a que no exercício da atribuição constitucional que me é conferida no sentido da prevenção e reparação de injustiças (artº 23º, nº 1, da CRP), entenda dever promover junto da Câmara Municipal de Torres Vedras, a adopção das medidas adequadas à reposição da legalidade urbanística violada e à cessação da ofensa ilícita do direito dos queixosos ao ambiente.

8. A posição assumida quanto à anulabilidade do presente acto de licenciamento, por violação das mencionadas normas do RGEU, fundamentava-se na doutrina pacificamente aceite com base no artº 363º, do Código Administrativo, e posteriormente no artº 88º, da Lei das Autarquias Locais (Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março), segundo a qual, para além das nulidades expressamente previstas na lei, a regra geral seria a de os vícios do acto administrativo gerarem a mera anulabilidade.

9. No caso em análise, o vício em presença consistiria na inobservância do disposto no artº 15º, nº 1, do Decreto-Lei nº 166/70, de 15 de Abril, preceito que enumerava taxativamente os fundamentos de indeferimento dos pedidos de licenciamento de obras.

Em face do mesmo, o poder conferido às Câmaras Municipais assumia a natureza de poder vinculado. O indeferimento de pedidos de licenciamento de obras particulares apenas se podia basear em algum dos fundamento do artº 15º, estando os órgãos autárquicos obrigados a indeferir todos aqueles que se subsumissem à previsão de alguma das alíneas da referida norma legal.

10. Nos termos da alínea c), deviam ser indeferidos os pedidos de licenciamento ou de aprovação de projectos desconformes com os condicionamentos definidos no alvará de loteamento e de acordo com a alínea d), aqueles que desrespeitassem quaisquer normas legais ou regulamentares relativas à construção.

11. Entre as normas legais relativas à construção, contam-se as que respeitam aos requisitos de salubridade, estética e segurança das edificações constantes do RGEU, cujo artº 3º, § único, subordina a concessão da licença para a execução de obras à observância das restantes prescrições do Regulamento, dos regulamentos municipais em vigor e, bem assim, de quaisquer outras disposições legais cuja aplicação incumba à administração municipal assegurar.

Não se tratando das normas de direito privado relativas à construção, (cuja aplicação não cabe à Administração assegurar), reporta-se o artº 3º, § único do RGEU, às normas legais e regulamentares que regem os aspectos técnico-funcionais da construção (artºs 6º e 10º, do Decreto-Lei nº 166/70, e, artºs 17º e 18º, do Decreto-Lei nº 445/91).

12. No caso em análise, como admitido expressamente pela Câmara Municipal de Torres Vedras e pela Inspecção-Geral da Administração do Território, foram postergadas as exigências contidas nos artºs 58º, 59º e 73º, do RGEU, preceitos que visam tutelar os interesses públicos de salubridade das edificações em termos de arejamento e iluminação natural.

Dispõe o artº 58º daquele diploma que a “construção ou reconstrução de qualquer edifício deve executar-se por forma que fiquem assegurados o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada à acção directa dos raios solares, e bem assim o seu abastecimento de água potável e a evacuação inofensiva de esgotos”.

Por seu turno, estipula o artº 59º, no que concerne à altura das edificações que a mesma “será fixada de forma que em todos os planos verticais perpendiculares à fachada nenhum dos seus elementos, com excepção de chaminés e acessórios decorativos, ultrapasse o limite definido pela linha recta a 45º, traçada em cada um desses planos a partir do alinhamento da edificação fronteira, definido pela intersecção do seu plano com o terreno exterior”.

Exige esta disposição, a fim de garantir a iluminação, o arejamento e a exposição à acção directa da luz solar, que a altura das edificações não ultrapasse a distância entre as fachadas respectivas, designadamente por forma a evitar que uma das edificações ensombre a outra.

Por seu turno, estipula o artº 73º, quanto à distância entre fachadas com janelas, que as janelas dos compartimentos das habitações deverão ficar com um afastamento de qualquer muro e fachadas fronteiros não inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do compartimento, com o mínimo de três metros.

13. O acto de licenciamento ora contestado, por desrespeitar os afastamentos mínimos prescritos pelas normas transcritas, conduziu à situação por demais conhecida dessa Câmara, qual seja, a da privação dos moradores do prédio nº … , do acesso à iluminação e arejamento das respectivas habitações, na fachada contígua ao edifício implantado nos lotes 1 e 2.

Tal acto administrativo, não só se encontra desconforme com o interesse público que dita a sujeição dos projectos de obras particulares às prescrições de ordem técnica e funcional que garantem as melhores condições de ventilação e higiene das edificações, como permitiu um atentado ilícito ao direito fundamental que visa salvaguardar tais valores.

14. Acresce que a desconformidade na implantação do edifício nos lotes 1 e 2 com o disposto no alvará de loteamento, violando a área neste prevista, em maior grau contribuiu para o agravamento das condições de iluminação e arejamento do lote … .

Com efeito e de acordo com a informação elaborada pelo Gabinete de Apoio Técnico da Câmara Municipal de Torres Vedras em 15 de Abril de 1992, o alvará de loteamento previa uma profundidade de 12,5 metros para o edifício reclamado, apresentando-se os pisos construídos naquela data com uma profundidade de 15 metros.

15. Não contendo o Decreto-Lei nº 166/70, norma idêntica à contida no artº 52º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro, que comina com a nulidade os actos administrativos que violem o disposto em alvará de loteamento em vigor, e por aplicação da doutrina de que a nulidade só ocorria nos casos expressamente previstos na lei, seriam meramente anuláveis, por vício de violação de lei, na vigência do regime de licenciamento de obras particulares constante do Decreto-Lei nº 166/70, os actos administrativos de licenciamento de obras que dispusessem contra as prescrições de alvará de loteamento.

16. Sendo o regime de nulidades constante do Decreto-Lei nº 445/91 exclusivamente aplicável aos actos de licenciamento praticados em data posterior à entrada em vigor deste diploma, não prejudicando, por tal motivo, a sanação dos correspondentes vícios de actos anteriores ao início da respectiva vigência, certo é que na vigência do Decreto-Lei nº 166/70, constituía entendimento pacífico do Supremo Tribunal Administrativo e da Procuradoria Geral da República, que o licenciamento de obras desconformes com as prescrições do alvará de loteamento implicitamente procedia a uma alteração daquelas prescrições, pelo que lhes seria aplicável a norma que determinava a nulidade dos actos respeitantes a operações de loteamento urbano que não fossem precedidos de parecer da entidade competente da administração central (artº 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, e artº 65º, do Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro).

Não procede tal entendimento, no caso em análise, uma vez que o mencionado loteamento seguiu a forma de processo simples não havendo lugar a consulta obrigatória de entidades estranhas ao Município.

Independentemente da crítica que parece merecer tal entendimento, uma vez que do ponto de vista estrutural, um acto de licenciamento de obras particulares não visa produzir o efeito de alterar as prescrições constantes de um alvará de loteamento, mas apenas permitir a execução da obra nos termos do projecto aprovado, (apenas poderá acarretar a respectiva violação e nunca a sua alteração), certo é que da doutrina exposta se poderá extrair um argumento de carácter interpretativo quanto ao desvalor jurídico que deve merecer o desrespeito do alvará de loteamento pelo acto de licenciamento.

Atento o critério do interesse predominantemente protegido ou tutelado no que concerne à determinação do grau de invalidade do acto administrativo (v., SOUSA, Marcelo Rebelo de, O valor jurídico do acto inconstitucional, Lisboa, 1988, p. 222), e considerado como primordial, na ponderação dos interesses públicos eventualmente conflituantes, “o interesse público do respeito da legalidade vigente”, em simultâneo “na sua vertente subjectiva de garantia dos direitos dos particulares e na sua vertente objectiva, que só reflexamente se projecta em interesses legalmente protegidos dos administrados”, o acto será nulo.

Constituem as operações de loteamento e as obras de urbanização uma das formas mais relevantes de ocupação do solo, quer pelas incidências que possuem ao nível do ordenamento do território, do ambiente e dos recursos naturais, quer pelas repercussões que delas resultam para a qualidade de vida dos cidadãos (Preâmbulo do Decreto-Lei nº 448/91, de 29 de Novembro).

Assim, deverá ser entendido como primordial o interesse público de respeito pela legalidade vigente, na sua vertente subjectiva e objectiva, (designadamente em matéria de urbanismo e de protecção do ambiente), quanto aos actos administrativos respeitantes a operações de loteamento, a obras de urbanização e a quaisquer obras de construção.

Pelo exposto, um acto de licenciamento de obras particulares que viole as prescrições de um alvará de loteamento não deverá ser passível de sanação pelo decurso do tempo de modo a não comprometer gravemente o correcto ordenamento do território, no tocante aos termos da divisão da propriedade, ocupação e uso do solo por aquele definidos.

17. Tendo sido a construção reclamada licenciada em 21.07.1991, não possuia o quadro jurídico à data vigente em matéria de loteamentos e de licenciamento de obras particulares, norma específica que permitisse considerar nulo tal licenciamento.

Pese embora tal facto, urge reconhecer e declarar a nulidade do presente acto de licenciamento por via das consequências que o desrespeito das normas técnicas e das prescrições do alvará de loteamento acima invocadas, produziram no tocante à ofensa dos valores jurídicos constitucionalmente tutelados em matéria de direito ao ambiente e, reflexamente, no que concerne aos direitos à saúde e integridade física dos queixosos.

18. Desde a versão originária que se mantém inalterado o artº 66º, nº 1, da Constituição: “todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado”. O artº 66º da Constituição está integrado no Capítulo II – “Direitos e deveres sociais”-, do título III – “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”, – da parte I – “Direitos e deveres fundamentais”-. Não obstante tal inserção sistemática, o direito ao ambiente é entendido, em parte da sua estrutura, como um direito fundamental de natureza análoga na acepção do artº 17º da Constituição, pelo que beneficia, pelo menos, da aplicação do regime material dos direitos liberdades e garantias.

Em termos de estrutura, a natureza análoga do direito ao ambiente, como de outros direitos sociais, resulta da sua compreensão como um direito negativo ou de defesa. Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed, 1993, p. 348), “o direito ao ambiente é, desde logo, um direito negativo, ou seja, um direito à abstenção, por parte do Estado e de terceiros, de acções ambientalmente nocivas”, que confere aos cidadãos, individual ou colectivamente, o direito de exigir a cessação de tais violações e obter o ressarcimento dos prejuízos pelas mesmas causados (artº 66º, nº 3, na redacção da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, e, artº 52º, nº 3, na redacção conferida pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho).

Na esteira dos autores citados, da natureza do direito ao ambiente como direito negativo, directamente vinculante das entidades públicas e privadas (artº 18º, nº 1, da CRP), resulta imediatamente para estas o dever de não atentar contra o ambiente (dever de abstenção) e o dever de impedir os atentados de outrem ao ambiente (dever de polícia).

Não obstante a tutela autónoma, constitucionalmente atribuída ao ambiente, este direito fundamental, simultaneamente de natureza social e de prestação negativa, há-de ser encarado como garante da tutela do direito à vida.

Ainda segundo os mencionados autores, a analogia com os direitos, liberdades e garantias fundamenta-se, também, numa certa relação de meio e fim, entre o direito ao ambiente e o direito à vida, revelando-se este como matriz ordinária dos principais direitos sociais. “Nesta perspectiva defender o ambiente tem sentido como meio de garantir o direito à vida” (Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, nº 36/89, in DR, 2ª série, nº 120, de 25.05.1990).

Não obstante se entender que a protecção do ambiente não reside apenas em razões antropocêntricas, certo é que muitas das ofensas aos valores tutelados neste âmbito, redundarão, em simultâneo, na ofensa de outros valores constitucionalmente protegidos, como seja a saúde, a integridade física ou a vida. Refere Fernando Alves Correia (O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, p. 77), que “o nosso texto constitucional consagra, deste modo, o princípio da centralidade do homem no ambiente e reconhece o direito ao ambiente como um direito de personalidade humana” (v. também, Capelo de Sousa, Rabindranath V. A., O direito geral de personalidade, Coimbra, 1995, pp. 214, 295, 296 e 400).

Neste sentido, se entenderá a orientação da jurisprudência nacional que consiste em dirimir os conflitos sujeitos a apreciação jurisdicional com base no princípio geral da tutela da personalidade constante do artº 70º, do Código Civil, com fundamento, designadamente, em ofensas à saúde, à tranquilidade e ao repouso, numa equiparação, porventura restrita em face do texto constitucional, entre ambiente e qualidade de vida.

19. Cabendo ao Estado e às demais entidades públicas abster-se de praticar actos atentatórios do direito ao ambiente, cabe-lhes igualmente, impedir a prática de tais actos por terceiros, pelo que se deve entender que desrespeitam o preceito fundamental em análise os actos administrativos que não respeitem o conteúdo essencial do direito em causa, segundo as circunstâncias do caso concreto.

Como é referido pelo Conselho Consultivo da PGR, no parecer atrás citado, “viola o preceito fundamental em causa o acto administrativo do Estado que não respeite o direito aí consagrado, como seja aprovando obras ou construções que contribuam para a poluição e degradação do ambiente”.

No que concerne ao desvalor jurídico de tal acto, o mesmo deverá ser entendido como ferido de nulidade. Com efeito, é um dos casos “em que, por razões de lógica jurídica, o acto não pode deixar de ser nulo, por isso que seria totalmente inadequado o regime da simples anulabilidade” (AMARAL, Diogo Freitas do, Direito Administrativo, Vol. III, Lisboa, 1985, p. 310).

20. Antes da entrada em vigor do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Abril, e da expressa cominação com a nulidade dos actos administrativos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental (artº, 133º nº 2, alínea d)), constituía entendimento da generalidade da doutrina (MIRANDA, Jorge, O Regime dos direitos, liberdades, e garantias, in Estudos sobre a Constituição, 1978, pp. 87 e segs, AMARAL, Diogo Freitas do, ob cit, p. 311, SOUSA, Marcelo Rebelo de, ob. cit., p. 332) que, mesmo sem lei expressa, a violação do conteúdo essencial de um direito fundamental, ou seja, daquele mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir, constitui nulidade.

Neste mesmo sentido, se desenvolve a doutrina do supra citado Parecer do Conselho Consultivo da PGR, bem como a expendida no Parecer nº 82/92 (DR, 2ª Série, Nº 79, de 05.04.1994), o qual expressamente analisou a questão do desvalor jurídico do acto de licenciamento de obras violador de um plano municipal, concluindo que, mesmo na falta de lei expressa seria considerado nulo, por natureza, se atingisse o núcleo essencial do direito ao ambiente.

21. Cuidar-se-á, neste momento, de apreciar se o acto reclamado comunga dos pressupostos que levam a teoria das nulidades por natureza a tomar como nula a licença de construção que atinja o conteúdo essencial do direito ao ambiente, havendo para o efeito de verificar que faculdades de gozo são comprimidas (na melhor das hipóteses) ou mesmo amputadas, pelos efeitos da construção licenciada, e ponderar se esse resultado invade ou não a essencialidade do conteúdo do direito fundamental em causa.

22. Assim, começaremos por determinar qual a esfera de protecção das normas infringidas; se apenas salvaguardam interesses públicos urbanísticos na segurança, estética e salubridade das construções, ou se, concomitantemente, visam garantir situações jurídicas activas de terceiros, designadamente, permissões jurídicas de aproveitamento de bens ambientais.

23. As disposições violadas, como se viu supra (pontos 12 e 13), pretendem ver protegidos níveis mínimos de “arejamento, iluminação natural, exposição prolongada à acção directa dos raios solares” e, bem assim, a reserva de intimidade da vida privada e familiar dos moradores.

No caso dos primeiros valores referidos, tudo aconselha a considerá-los bens jurídicos ambientais. Senão, vejamos.

24. No desenvolvimento e concretização das disposições que contenham direitos fundamentais, cumpre ao legislador a delimitação positiva do seu conteúdo (“a operação de definir o conteúdo e alcance de um direito realiza-a o ordenamento jurídico”, CUÉTARA, J.M. de la – La Actividad de la Administración, Madrid, 1983).

Como mais desenvolvidamente sugere VIEIRA DE ANDRADE, fora do âmbito das restrições confinadas ao teor do art. 18º da CRP, “a lei pode intervir na matéria dos direitos fundamentais apenas para concretizar os preceitos constitucionais. Não lhes acrescenta ou tira então nada, limitando-se a explicar os conceitos, interpretando-os e repetindo mais claramente o seu conteúdo” (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 226).

25. Ora, é precisamente esta operação que o legislador pretendeu levar a cabo, na Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril), em muitas das suas disposições, particularmente, no artº 9º, no que mais releva para a presente análise, porquanto consagra um direito à luz: “Todos têm direito a um nível de luminosidade conveniente à sua saúde, bem estar e conforto na habitação, no local de trabalho e nos espaços livres públicos de recreio, lazer e circulação” (nº 1).

Com o propósito de garantir este direito – ou em bom rigor, com esta faculdade compreendida no direito a disfrutar de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado – a Lei de Bases citada manda condicionar o volume dos edifícios a construir que prejudiquem a qualidade de vida dos cidadãos e a vegetação, pelo ensombramento, dos espaços livres públicos e privados (artº 9º, nº 4, al. a]), assim como sujeita o regulamento e as normas específicas respeitantes à construção de fogos para habitação.

26. Seria pois, impróprio interpretar as normas do RGEU citadas sem o contributo hermenêutico destas disposições da Lei de Bases do Ambiente. Ao fim e ao cabo, as normas infringidas mais não são que o resultado da delimitação negativa do conteúdo do direito a um ambiente sadio – individualizadas no RGEU e tomadas como conjunto na al. b) do nº 4, do art. 9º, da Lei nº 11/87, de 7 de Abril.

27. O conteúdo do direito fundamental ao ambiente foi pois, atingido por infracção das normas urbanísticas citadas – como também, de resto, por colisão com o disposto no alvará de loteamento (supra, ponto 14), sendo certo que estas normas, embora na sua forma e inserção sistemática recebam a natureza de normas urbanísticas, são materialmente normas ambientais (v. sobre este aspecto da natureza de algumas normas, AMARAL, Diogo Freitas do – Ordenamento do território, urbanismo e ambiente: objecto, autonomia e distinções, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, 1, Junho, 1994, p. 21).

28. Não deixa dúvidas que as citadas normas do RGEU visam tutelar níveis mínimos de arejamento, iluminação e exposição prolongada à acção directa da luz solar e que um mínimo de luz há-de ser garantido na essencialidade do ambiente objecto de direito fundamental, razão pela qual sempre que se demonstre manifestamente comprometida a fasquia mínima legalmente estabelecida, demonstrado fica também o atentado ao conteúdo essencial do direito ao ambiente. Não parece de admitir que a privação de luz possa compaginar-se com um padrão razoável de qualidade de vida.

29. Dir-se-á, porém, que exigiriam o direito de propriedade sobre o prédio vizinho e o direito a edificar sobre o mesmo um aproveitamento das respectivas utilidades em termos que são igualmente protegidos pela Constituição. E assim é, na verdade. A ordem jurídica, contudo, está na posse de meios que permitem evitar o conflito entre os direitos em presença. Entre esses meios ressaltam as consequências do abuso de direito e o princípio da função social da propriedade privada, este último consagrado expressamente no artº 61º, nº 1, da Constituição.

Não se argumente que a função social fica cingida ao conteúdo não essencial, pois que “não se trata de existir um direito ao qual logo haverá que precisar os limites, mas de que este direito existe levando incorporado desde o primeiro momento a sua função social”, ou seja, a função social integra o núcleo da propriedade (CUÉTARA, J. M., ob. cit., p. 460).

II – CONCLUSÕES

Em face do exposto e no exercício da atribuição constitucional que me é confiada para prevenção e reparação das injustiças e ilegalidades (artº 23º, nº 1, da CRP),

RECOMENDO

1º A declaração de nulidade com os efeitos que a lei lhe reconhece do acto de licenciamento da construção do edifício identificado.

2º A demolição parcial da mesma construção, enquanto e na medida em que afecte as condições de boa habitabilidade das fracções que integram o lote … , ou seja, desde que subsistam vãos de compartimentos de habitação afectados, pois não é de excluir a possibilidade de um acordo entre os interesses privados opostos que deixe respeitado o interesse público presente.

3º A notificação dos proprietários do edifício reclamado para apresentarem pedido de legalização, nos termos e para os efeitos do artº 167º, do RGEU.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL