Governo Regional da Região Autónoma dos Açores
Rec. nº 121/A/95
Proc.: R-3237/94
Data:1995-10-26
Área: A2
Assunto: Consumidores – Farmácia – Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada – Exclusão – Turnos – Associação Nacional de Farmácias.
I
Com base numa queixa apresentada pela ACRA – Associação dos Consumidores da Região Açores – foi aberto na Provedoria de Justiça um processo relativo ao diferendo que opõe a Delegação da Associação Nacional de Farmácias à A.S.M.P.D. – Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada – que se apresenta como contendo duas vertentes. Assim:
1° – A retirada da Farmácia da Associação de Socorros Mútuos da lista de farmácias a funcionar fora do horário normal, em regime de escala, por despacho do Exm° Senhor Director Regional de Saúde, sobre uma proposta do Delegado da A.N.F. em Ponta Delgada e que foi contestada pela A.S.M.P.D.;
2° – A comparticipação de 10% que a A.S.M.P.D. confere aos seus associados na aquisição de medicamentos, conforme o previsto nos Estatutos da Associação, é considerada ilegal, por violadora das regras da concorrência, pelos proprietários das restantes farmácias de Ponta Delgada, assim como pela Ordem dos Farmacêuticos e Associação Nacional de Farmácias.
Queixa-se a ACRA, em defesa dos consumidores dos Açores, da exclusão da Farmácia da ASMPD do regime de turnos por considerar que tal facto ocorreu como retaliação da atribuição da referida comparticipação de 10% que a Farmácia da Associação confere aos seus associados na aquisição de medicamentos.
Importa analisar se podia ou não aquela farmácia ser excluída da escala de turnos de serviço nocturno e se é ou não lícita a comparticipação de 10% na aquisição de medicamentos pelos associados.
II
Solicitados esclarecimentos sobre estas questões às várias entidades envolvidas e com competência nas respectivas áreas, foram obtidas as seguintes informações:
1. A Direcção-Geral de Concorrência e Preços, através do ofício de 17.3.1995, informou que os preços de venda público das especialidades farmacêuticas incluem as margens de comercialização do armazenista (8%) e da farmácia (20%), margens estas que têm um carácter de máximas, pelo que nada obsta a que aqueles agentes económicos não usufruam por inteiro daquelas margens.
Entende, assim, que a prática de um desconto de 10% sobre o preço de venda público na venda de medicamentos aos seus associados não colide com qualquer preceito legal, ressalvando apenas a questão de saber se tal prática está conforme aos estatutos da associação e se o alvará foi licenciado nos termos do n° 4 da base II da Lei n° 2125, de 20 de Março de 1965 e é limitada aos seus associados.
2. Do Gabinete de Sua Excelência o Secretário Regional da Saúde e Segurança Social foi recebido o ofício de 31 de Março de 1995, do qual se retiram, por mais relevantes, os seguintes elementos:
a) “A farmácia da Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada é titular do alvará n° 2665, de 5 de Março de 1971, passado pela Direcção Geral de Saúde O alvará concedido não apresenta qualquer condicionalismo.”
b) “De referir, quanto a este aspecto (a exclusão da farmácia das escalas para o ano de 1994) Que a Direcção Regional de Saúde solicitou parecer ao Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento o qual perfilha em conclusão que “o alvará da farmácia concedido à Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada se confina ao preceituado no art. 4° ,1ª parte, da Base II da Lei 2125, conferindo, assim à farmácia natureza de “farmácia privativa” e que os condicionalismos inerentes à atribuição de farmácia privativa decorrem da própria lei, pelo que a falta de indicação expressa dos mesmos no alvará, conforme o art° 44° do Decreto-Lei 48547, não resulta a permissão tácita para funcionamento da farmácia dirigida à população em geral”.
3. Da Ordem dos Farmacêuticos foi recebido o ofício de 31 de Março de 1995, que informa terem sido recebidos naquela Ordem vários protestos relativos ao assunto em análise e que o Consultor Jurídico da Ordem havia já elaborado duas informações sobre o mesmo, no seguimento das queixas.
Dessas informações conclui-se que a Ordem dos Farmacêuticos considera, por um lado, que não pode a farmácia da ASMPD ter como objecto social a comercialização de produtos farmacêuticos e praticar preços inferiores às restantes farmácias e, por outro, conclui que, ao desenvolver tal prática, está a violar as regras da concorrência, consagradas nos artigos 34° a 38° do Decreto-Lei n° 48547. Também ali é inclusivamente proposto que a Ordem oficie à Secretaria Regional respectiva no sentido de ser declarada a caducidade do alvará.
4. A Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada, por seu turno, apresentou documentos dos quais se podem retirar com toda a segurança um conjunto de elementos essenciais. Assim:
a) Estatutos da Associação;
b) Regulamento de Benefícios respectivo;
c) Alvará n° 2665, de 5 de Março de 1971;
d) Carta de 29 de Abril de 1943 do Grémio Nacional de Farmácias, reafirmando a venda ao público.
III
Quanto à primeira questão apresentada torna-se primordial saber qual a natureza da farmácia da ASMPD e tal conclusão alcançar-se-á através da Base II, n° 4, da Lei n° 2125, de 20 de Março de 1965.
Consta do preceito “4. Para cumprimento dos seus fins estatutários, as Misericórdias e outras instituições de assistência e previdência social poderão ser proprietárias de farmácias desde que estas se destinem aos seus serviços privativos. As farmácias que estas instituições actualmente possuam abertas ao público podem continuar no mesmo regime.”
A Associação Mutualista em causa foi fundada em 6 de Janeiro de 1867 e a farmácia da ASMPD iniciou a sua actividade, enquanto tal, em 1913, mais concretamente, em 3 de Outubro desse ano, após a compra da farmácia ter sido feita por escritura pública datada de 29 de Setembro de 1913 ao anterior proprietário, o Senhor …, farmacêutico.
Posteriormente (30 anos depois), através da carta referida na alínea d) do n° 3 da divisão II, dirigida ao Exm° Senhor …, Director-Técnico da Farmácia da Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada, o Grémio Nacional das Farmácias solicita a inscrição e o pagamento de quotas naquele Grémio, das quais estava até então isenta, pelo facto de ter “…deixado de ser privativa e passado a fazer venda ao público,…”.
Assim, aquando da publicação e entrada em vigor da Lei n° 2125, de 20 de Março de 1965, já a farmácia se encontrava em actividade junto do público em geral.
Consagrando uma norma de respeito pelos direitos adquiridos, a parte final do n° 4 da Base II do referido diploma admite a subsistência e continuidade de farmácias de instituições que já estejam em funcionamento, abertas ao público, com a manutenção do mesmo regime, isto é, nos moldes pré-existentes.
No mesmo sentido defende Abel Mesquita in “Regime Jurídico do exercício farmacêutico da farmácia e do medicamento”, 1ª edição: “O n° 4 desta base tem natureza excepcional em relação aos princípios fundamentais sobre exercício farmacêutico, propriedade, abertura e direcção técnica de farmácia, consagrados na legislação farmacêutica portuguesa. Excepção que está limitada em termos precisos às instituições de assistência e previdência social, definidas na Base III da Lei 2115, de 18 de Junho de 1962. Só estas instituições é que podem candidatar-se à concessão de um alvará, ao abrigo do referido n° 4.
As farmácias privativas não podem estar abertas ao público, uma vez que se destinam apenas aos serviços privativos, salvo se já estivessem nessa situação à data da entrada em vigor da Lei n° 2125 (cfr. n° 4 in fine,)”.
Daqui se pode concluir não assistir razão aos defensores da tese da natureza privativa da farmácia da ASMPD, já que o alvará emitido em 5 de Março de 1971 pelo Sr. Director-Geral de Saúde não ressalva qualquer natureza de farmácia privativa e não devia sequer fazê-lo pois o funcionamento era anterior à vigência da Lei n° 2125 e, por outro lado, decorre da própria Lei n° 2125, Base II, n° 4 in fine a possibilidade de funcionamento da farmácia dirigida à população em geral.
Não se mostra também aceitável o argumento fundado no artigo 44° do Decreto-Lei n° 48 547, de 27 de Agosto de 1968, que determina que nos alvarás das farmácias licenciadas ao abrigo do n° 4 da Base II da Lei n° 2125 se indicará expressamente que estas farmácias apenas podem fornecer medicamentos em condições especiais às pessoas que tenham tal prerrogativa nos termos estatutários e nas condições ali expressamente estabelecidas e que, pelo facto de no alvará emitido à Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada nada constar, não resulta a permissão tácita para funcionamento da farmácia dirigida à população em geral. É que, de facto, nada devia constar nesse alvará n° 2665 pois a farmácia em questão já existia regularmente antes de 1965 e o artigo 44° do referido Decreto-Lei se aplica às farmácias que as Misericórdias ou outras instituições de assistência e previdência social pretendam abrir, nos termos da parte inicial do n° 4 da base II da Lei n° 2125.
Com base na conclusão anterior, cabe agora analisar a correcção da exclusão da farmácia da Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada da escala de serviço fora do horário normal.
A Portaria n° 82/85, de 14 de Outubro, adapta à Região Autónoma dos Açores o regime consagrado na Portaria n° 256/81, de 10 de Março, que regulamenta o serviço de turnos de funcionamento das farmácias fora do horário normal.
No n° 1 da Portaria n° 82/85, de 16 de Outubro, estabelece-se uma obrigação de cumprimento do turno de serviço.
Através de uma análise dos princípios enformadores do regime especial desta actividade das farmácias de venda ao público, dos quais se destacam a saúde pública e a garantia de fornecimento de medicamentos em casos de urgência, pode dizer-se, desde já, que nenhuma farmácia se pode excluir de tais escalas. Poderá então ser excluída ?
A resposta é negativa, pois conforme decorre da conclusão anteriormente alcançada, nada há que distinga a farmácia da Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada das restantes farmácias existentes naquela cidade, no que respeita à necessidade de cumprimento dos normativos legais inscritos na Portaria n° 82/85, de 16 de Outubro.
A portaria atribui competência para elaboração das escalas de serviço aos delegados regionais da Associação Nacional de Farmácias, sendo que tais escalas deverão ser enviadas à Direcção Regional de Saúde, até ao dia 30 de Novembro de cada ano, a fim de entrarem em vigor no dia 1 de Janeiro do ano seguinte, após a homologação por esta.
Dando cumprimento aos preceitos legais, o Exm° Sr. Delegado Regional da Associação Nacional de Farmácias apresentou, em anexo ao ofício datado de 24 de Novembro de 1993, uma escala de serviço permanente para o ano de 1994. Nessa escala apenas não constava a farmácia da ASMPD e, no ofício, o Exm° Sr. Delegado Regional da ANF fundamenta a exclusão no argumento de tal farmácia se tratar de uma “farmácia privada, logo só para sócios”.
Porque tal proposta foi homologada, em 30 de Dezembro de 1993, pelo Exm° Senhor Director Regional de Saúde, tal acto absorveu e tornou seus os fundamentos da proposta, tendo havido incorporação do conteúdo integral, quer do referenciado ofício, quer da referida escala.
Ao Exm° Senhor Director Regional não cabia outro poder que não fosse o de aceitar ou o de rejeitar, na íntegra, a proposta.
Ao aceitar, homologando, apropriou-se do acto homologado, praticando assim um acto ilegal, porque violador da norma constante do n° 1 da Portaria n° 82/85, de 16 de Outubro.
A segunda vertente da queixa apresentada prende-se com a comparticipação de 10% (sobre o preço marcado nas especialidades farmacêuticas) que a Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada atribui aos seus associados, a título de assistência medicamentosa.
Conforme enunciado supra, há que analisar se é ou não lícita tal comparticipação.
Para tanto, analisemos, desde já, a resposta obtida da Direcção-Geral de Concorrência e Preços.
Entende aquela Direcção-Geral que a prática de um desconto de 10% sobre o preço de venda público na venda de medicamentos aos seus associados não colide com qualquer preceito legal e que nada obsta a que aqueles agentes económicos abdiquem de 10% daquelas margens.
Tal entendimento apresenta-se como totalmente conforme à lei, não representando qualquer ofensa à Secção II, do Capítulo III do Decreto-Lei n° 48 547, de 27 de Agosto de 1968, nomeadamente à alínea a) do n° 2, do artigo 36° e ao art. 38°.
Até porque há que fazer uma interpretação hábil e alínea a) do n° 2 do art. 36° do Decreto-Lei n° 48 547, já que, actualmente, os preços de venda ao público (PVP) das especialidades farmacêuticas incluem as margens máximas de comercialização que, no caso das farmácias, é de 20%. Assim, se à Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada é lícito, nos termos do art. 11°, n° 1 do Regulamento de Benefícios da ASMPD, fazer um desconto de 10% sobre o preço marcado nas especialidades farmacêuticas, às restantes farmácias é permitido a não beneficiação da margem máxima de lucro, isto é, os 20%, pois tal é permitido “pelos regulamentos em vigor sobre o respectivo comércio”, conforme é expressado na lei.
Podem as farmácias utilizar todos os meios que o actual regime de preços e de defesa da concorrência lhes oferecem, não podem é impedir que outros o façam, mormente em casos como o que se está a analisar.
Remeto esta questão, para além do que fica dito, para o Parecer 6/84, do Conselho da Concorrência, cuja conclusão renovo: é de recusar a exclusão da actividade farmacêutica do âmbito de aplicação do Decreto-Lei n° 371/93, de 29 de Outubro.
Nessa medida, conclui-se também não ter cabimento a ideia da ilegalidade da prática do desconto de 10%, feito aos associados pela Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada.
IV
Por tudo o que fica exposto, RECOMENDO a Vossa Excelência que para o futuro, não seja excluída a farmácia da Associação de Socorros Mútuos de Ponta Delgada da escala de serviço fora dos períodos normais.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL