Senhores Deputados à Assembleia da República
Rec. nº 81A/94
Proc. nº 1639/91
Data: 1994-04-21
Área: A3
ASSUNTO: SAÚDE – VIH – TRANSFUSÃO DE SANGUE CONTAMINADO E PRODUTOS DERIVADOS – ESTABELECIMENTOS PÚBLICOS DE SAÚDE – RESSARCIMENTO E COMPENSAÇÃO DE LESÕES
Sequência: Não Acatada
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
1. Na sequência de uma reclamação apresentada neste órgão do Estado entendi formular Recomendação a Sua Excelência o Ministro da Saúde, em 27 de Dezembro p.p., sobre o assunto em epígrafe, não obstante a publicação do Decreto-Lei nº 237/93, de 3 de Julho e do despacho conjunto A-30/93-XII (Ministérios das Finanças, da Justiça e da Saúde), de 27.08.93 (D.R. II Série, 14.09.93), diplomas estes que pretenderam alcançar uma solução, através da constituição de um Tribunal arbitral.
2. Com efeito, estes dois diplomas cedo se revelaram insuficientes no sentido da obtenção de uma solução geral, justa, célere e adequada, nos termos que enunciarei.
3. A solução não é geral, tal como sustentei, pois exclui liminar e injustificadamente, não apenas os cidadãos não hemofílicos que hajam sido contaminados por agentes causadores de SIDA em consequência de actos terapêuticos, com utilização de sangue ou produtos seus derivados, em estabelecimentos públicos de saúde, como também inclusivamente, portadores de hemofilia contaminados por produtos hemoterapêuticos de origem nacional.
4. Nada permite sustentar, de forma razoável, um tratamento diferenciado dentro do conjunto das pessoas que tenham contraído o VIH, em idênticas circunstâncias, por actos da responsabilidade da Administração Pública. Se é certo que os hemofílicos constituem um grupo de risco particularmente vulnerável aos agentes causadores de SIDA, não podem excluir-se sem mais as restantes situações clínicas em que o sangue ou produtos seus derivados fossem condição necessária à respectiva terapia.
5. A solução não é justa, conforme sustentei a fls. 27 e segs. da Recomendação citada (vd. doc. nº 1), porquanto foram impostas duas condições de duvidosa constitucionalidade aos aderentes à convenção de arbitragem vertida pelo despacho conjunto 30-A/93-XII, por força do Decreto-Lei nº 237/93, de 3 de Julho.
6. A primeira está na exigência de autorização aos árbitros para julgarem segundo a equidade (artº 3º, nº 1, alínea a]). Sob a aparência de alguma generosidade por parte do Estado legislador, com o intuito de reparar danos irremediavelmente perpetrados pelo Estado administrador, esconde-se a interdição de um eventual recurso futuro para os tribunais comuns (artº 29º, nº 2, da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto).
7. A segunda reside na imposição de uma limitação máxima às indemnizações a fixar pelo tribunal arbitral (arte 3º, nº 1, alínea d]) concretizada, inexoravelmente, pelo citado despacho conjunto no montante de Esc. 12.000.000$0 “por cada hemofílico” (cfr. arte 5º, da proposta de convenção de arbitragem definida pelo Estado).
8. Ambas as condições resvalam o domínio da inconstitucionalidade, pois partem de um considerável abuso do poder legislativo. A Lei da Arbitragem (Lei nº 31/86, de 29 de Agosto) exige, nos termos do artº 1º, nº 4, a autorização, mediante lei especial, para o Estado e outras pessoas colectivas de direito público poderem celebrar convenções de arbitragem.
Este argumento serviu, aliás, de refúgio em defesa do Decreto-Lei nº 237/93, de 3 de Julho, por parte de Sua Excelência o Ministro da Saúde (cfr. doc. nº 2, fls 3), pese embora o formalismo. Isto é, o Estado teria necessariamente de autorizar por via legislativa a constituição de um Tribunal arbitral e, como tal, ser-lhe-ia admitida a inclusão de todo o género de condições, independentemente de reconhecer uma inelutável proeminência da sua posição diante dos lesados e das suas famílias.
9. Ora, tais condições, para além de dispensáveis, exibem uma das partes no conjunto dos litígios a socorrer-se da via legislativa para limitar as indemnizações que muito provavelmente terá de suportar e , por outro lado, a vedar um eventual recurso futuro à jurisdição comum – sem limite indemnizatório – escudando-se na aplicação de fórmulas equitativas quando, por via do artº 344º, do Código Civil, a inversão do ónus da prova sobre o nexo de causalidade permite ir mais longe que uma simples flexibilização dos aspectos probatórios, oferecida pela equidade (cfr. VARELA, Antunes, RLJ, nº 3831, p. 182).
10. A solução não é célere como se pode constatar pela evidência dos factos. Com o devido respeito e a elevada consideração que merece o Tribunal arbitral, cuja composição só permite dignificá-lo, não foi até ao presente momento lograda qualquer solução desde a sua constituição, já que o apuramento das regras processuais aplicáveis não viabilizou o melhor resultado nem é previsível, num futuro próximo, que tal venha a suceder.
11. A solução não é adequada, estou em crê-lo, na medida em que não garante a reparação provisória, nem tão pouco no caso de serem os lesados sobreviventes os autores e não os seus herdeiros. Refiro, de resto, que outra inadequação reside precisamente no facto de a convenção de arbitragem ter ficado cingida aos herdeiros legais no caso de falecimento dos lesados, razão pela qual recomendei a Sua Excelência o Ministro da Saúde que fosse conferida legitimidade a todos quantos se encontrem em relação de estreita dependência económica do lesado, para além de ter sugerido um alargamento do conceito de lesado aos indivíduos que tenham sido infectados através dos primeiros lesados, quer no âmbito da prestação de cuidados de saúde, quer por factores inerentes às relações da vida familiar.
12. A doutrina civilística vem de há longa data discutindo a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais conexos com a morte e se é certo ter o Código Civil pugnado pela afirmativa (artº 496º, nº 2 e 3), não deixa de conferir-lhe a natureza de compensação, protegendo expressamente todos quantos pudessem exigir alimentos ao lesado, assim como aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural (artº 495º, nº 3).
São estes últimos, na verdade, pela sua insuficiência de meios, quem mais preocupará o lesado quanto ao seu destino, à margem do facto de serem ou não seus herdeiros legais. No caso de o lesado ter já falecido, justo seria garantir-lhes adequada tutela, por via de uma solução arbitral que irremediavelmente tardou. Nem se diga, em desfavor da Recomendação, que a sucessão testamentária poderia tornear o problema, pois o texto do Decreto-lei nº 237/93, de 3 de Julho, reporta-se, tão somente, aos herdeiros legais, ou seja, legítimos e legitimários.
13. Pelas razões enunciadas sumariamente e por outras que mantenho como válidas, remetendo os Ilustres Deputados para o confronto com os documentos anexos, sustentei junto do Governo a criação de uma Comissão representativa dos valores em presença a qual, além de estabelecer uma indemnização provisória, fixaria por consenso, posteriormente, o montante do ressarcimento, sem prejuízo do regular funcionamento do Tribunal arbitral (expurgado dos vícios apontados), ao qual sempre caberia decidir na falta de acordo.
Por outro lado, porque mais consentânea com estes pressupostos, foi objecto da Recomendação a forma de renda, nos termos do artº 567º, do Código Civil, através de um Fundo administrado pluralmente, ou seja, não exclusivamente pelo Estado, cujas receitas resultariam em boa parte do exercício do direito de regresso sobre os responsáveis pelo fornecimento de produtos contaminados aos estabelecimentos públicos de saúde.
14. Do mesmo passo, foi concluída a necessidade de outorgar alguns benefícios sociais e patrimoniais a todos os cidadãos portugueses em estado de seropositividade ou em estados consequentes. Esta conclusão surgiu sem qualquer relação imediata com o ressarcimento dos lesados por actos terapêuticos praticados nos estabelecimentos públicos de saúde.
Tais benefícios encontram fundamento na premência de assegurar uma melhor qualidade de vida aos atingidos pelo flagelo da SIDA, sem excluir, antes pelo contrário, que o mesmo se faça relativamente a outras doenças de cura desconhecida e sempre em obediência à preocupação de salvaguardar a privacidade de todos os doentes, a sua dignidade e a liberdade de aceitarem tais benefícios ou não.
15. Assim, recomendei o desenvolvimento do princípio do tratamento domiciliário, a realização de programas que garantam a não desintegração social dos doentes e seus familiares, a concessão de crédito bonificado no campo da habitação e da auto-suficiência de transportes e a aprovação de benefícios fiscais, principalmente ao nível dos impostos sobre o rendimento e o património.
16. Naturalmente, a Recomendação de 27 de Dezembro p.p. surgiu alicerçada na apreciação que este órgão do Estado teve oportunidade de efectuar sobre a utilização de produtos derivados do sangue, designadamente, de factor VIII, em hospitais públicos. Foi detectado um caso, particularmente grave, de administração, entre 18.08.86 e meados de Setembro do mesmo ano, de um lote importado da Áustria, sem que estivessem certificadas devidamente as características de inocuidade, à luz dos conhecimentos científicos da época e das especiais exigências de cautela que o risco envolvido e um certo mínimo de prudência aconselhariam.
17. Além de negligente, em face dos sinais de alarme que eclodiram sobre o Ministério da Saúde quanto à qualidade do lote nº 810536, da Plasmapharm-Sera, a administração deste lote violou um despacho de Sua Excelência a Ministra da Saúde, ao tempo a Senhora Drª Leonor Beleza – Despacho nº 12/86, de 18 de Abril -, porquanto se considerou suficiente a idoneidade emprestada ao lote pela marca aposta no rótulo.
Meses mais tarde, em Dezembro de 1986, os mesmos conhecimentos médicos que teriam possibilitado a sua retirada oportuna, vieram concluir pela não administração do mesmo, verificadas que eram as referências das bandas de Western-Blot. Ainda assim, só em 10 de Fevereiro de 1987 viria a ser ordenado que se retirasse dos hospitais o lote em causa, quando paradoxalmente estaria já consumido integralmente.
18. Admitindo por hipótese que não tenha sido violado o citado despacho, teria de concluir-se pela insuficiência deste; facto que nunca permitiria ao Estado esquivar-se à assumpção de responsabilidades perante os lesados, pois dar-se-ia o caso de uma responsabilidade por omissão em tempo útil de medidas normativas indispensáveis, no mesmo sentido em que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou a República Francesa por Acordão de 31 de Março de 1992, em circunstãncias muito semelhantes (cfr. fls. 25, de doc. nº 1).
19. Prontamente, Sua Excelência o Ministro da Saúde fez cumprir, em 21.02.94, o dever de comunicação inscrito no artº 38º, nº 2, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, embora para justificar o não acatamento da Recomendação que lhe fora endereçada em 27 de Dezembro p.p.(cfr. doc. nº 2).
20. Neste documento sustentou a Administração Pública que no decurso do ano de 1986 terão sido utilizados os meios de controlo considerados eficazes, referindo também que as suspeitas lançadas à época pela APH e veiculadas pela imprensa se confinavam a produtos da Plasmapharm-Sera que não o factor VIII. A Comissão nomeada para adjudicação ter-se-á satisfeito com a garantia do laboratório austríaco se encontrar submetido a gestão pública e não ter havido, quanto àquela marca, notícia de contaminação de factor VIII.
21. Refutando a argumentação deste órgão do Estado quanto à necessidade de ter ficado registada a ligação entre o lote administrado e o indivíduo que o haja recebido, entende o Ministério da Saúde que apenas se seguiu a prática clínica corrente, confundindo, acrescidamente, aquilo que fora defendido na Recomendação sobre a inversão do ónus da prova do nexo de causalidade com a produção de prova, hoje superabundante, da contaminação do lote nº 810536.
22. Mais afirma Sua Excelência que o Estado ao consagrar a solução arbitral assumiria a responsabilidade pelo risco e acrescenta, no mesmo texto, que a adesão dos hemofílicos à convenção de arbitragem partiu de um acto livre e consensual.
23. Por fim, escudou-se o Ministério da Saúde em argumentação sufragada pela APH sobre a Recomendação, quanto às relações entre a Comissão sugerida e o Tribunal arbitral, argumentação essa que partia de uma deficiente compreensão jurídica, mau grado persistentes esforços empregues junto daquela respeitada Associação, com vista a esclarecer o alcance, conteúdo e significado de uma solução paralela, extra-judicial, aliás, regida pelo Código do Processo Civil, nos termos gerais.
24. Verificando que a resposta de Sua Excelência o Ministro da Saúde evidenciava algumas petições de princípio, porventura resultantes de uma menor clareza do texto, decidi contraditar e reenunciar os aspectos mais basilares da Recomendação formulada. Assim, em 4 de Março p.p., remeti ao Ministério da Saúde esclarecimentos complementares (doc. nº 3), onde pude afirmar não ter encontrado razões suficientes que tornassem vencida ou sequer convencida a posição deste Órgão do Estado.
25. Renovei as considerações efectuadas quanto à insuficiência das garantias retiradas do certificado de qualidade referente ao sempre citado lote austríaco, fundando-me, em boa parte, no Relatório do Grupo de Trabalho SIDA/Hemofílicos, cuja nomeação partira do Ministério da Saúde, através de Despacho de 23 de Dezembro de 1991 (D.R. II Série, de 24.01.92).
De novo sustentei “que elementares razões de precaução, ainda quando apreciadas na posição ‘de um bom pai de família’, em face das circunstâncias do caso (v.d. artº 487ª, nº 2, do Código Civil), exigiam a sustação da administração do produto até ser obtida completa dissipação das menores dúvidas quanto à sua nocividade” (cfr. doc. nº 3, fls 3).
Acrescentei ainda, confortado por transcrição de uma intervenção do Senhor Professor Machado Caetano, ser o lote em causa indesejado, mesmo à luz de outras exigências de qualidade autónomas da despistagem do HIV, dado que apresentaria uma excessiva quantidade de fibrogénio.
26. No que diz respeito à ilegalidade da conduta praticada pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, por violação das regras contidas nos nºs 1 e 4, do Despacho nº 12/86, de 18 de Abril, entendeu Sua Excelência o Ministro da Saúde não dever inflectir a posição do Provedor de Justiça. Quanto a este aspecto, apesar de não incidir sobre a Administração Pública o ónus da impugnação especificada, não deixarão por certo Vossas Excelências, Senhores Deputados, de retirar as devidas conclusões, sendo certo que, em última instância, a decisão sobre a ilegalidade cometida caberá aos Tribunais.
27. A prática clínica da época não pode servir de causa justificativa da omissão administrativa de um registo onde fossem cruzadas as referências lote/doente. “Se era essa a prática clínica da época, configurava-se como descuidada e, como tal, insusceptível de justificar a ilicitude dos actos praticados ao seu abrigo” (cfr. doc. nº 3, fls. 5).
28. Não ficou sem reacção, também, a parte da resposta sobre as virtualidades do sistema definido a partir do Decreto-Lei nº 237/93, de 3 de Julho. Comecei por reiterar que “o processo alternativo de resolução do litígio, através da constituição de um Tribunal arbitral, não é, por si só, objecto de crítica ou reparo na Recomendação do Provedor de Justiça, excepto no que tardou” (cfr. doc. nº 3, fls 7). A censura deve-se à posição débil e iníqua em que os aderentes ficaram situados, tal como fora sustentado na Recomendação.
29. Em 22 de Fevereiro p.p., Sua Excelência o Ministro da Saúde cumpriu formalmente, uma vez mais, o dever de colaboração para com este Orgão do Estado, retorquindo às objecções que complementarmente haviam sido enunciadas. Infelizmente, uma vez mais, manteve o não acatamento da Recomendação e, embora lançando mão de uma argumentação melhor desenvolvida sob o ponto de vista sistemático, continuou sem convencer o Provedor de Justiça, nem retirar validade às asserções contidas na Recomendação de 27 de Dezembro p.p.
30. Afirma Sua Excelência: “A análise cega do produto demorou seis meses, era necessário tratar os doentes, o hospital esperou dois meses até receber o certificado de garantia do lote em causa” (cfr. doc. nº 4, fls. 3). É este o cerne da justificação pretendida pela Administração Pública, ao qual não pode deixar de acrecentar-se que o certificado de qualidade reportava-se, em abstracto, à marca e não ao lote em questão.
31. No tocante ao excessivo volume de fibrogénio, foi retorquido o que, com o devido respeito, era desnecessário, ou seja, explicar que este elemento nada tem que ver com o HIV. Com efeito, o que fora afirmado, era simplesmente que o lote nº 810536, nem sequer segundo critérios de qualidade genéricos deveria, alguma vez, ter sido adjudicado.
32. Por mais uma vez, insiste Sua Excelência em comparar o acto médico de administração de um antibiótico com a administração de sangue ou produtos seus derivados, quando o que está em causa, para o efeito, é apenas a mera operação material administrativa de registo da correspectividade entre o doente e o fármaco ou outro meio terapêutico utilizado – neste caso, sangue ou seus derivados.
33. Finalmente, considera como votada inelutavelmente ao insucesso a Comissão proposta, no entanto, socorrendo-se de uma argumentação que remetia para uma compreensão inexacta dos mecanismos processuais correntes, em relação à qual dispenso maiores considerações.
Não fica sem registo que o Ministério da Saúde venha agora louvar-se nas posições semi-publicamente assumidas pela APH para justificar o reduzido alcance da via encontrada, quando essa mesma Associação não deve nem pode representar os direitos e interesses legítimos dos não hemofílicos lesados. Por outro lado, acresce o facto de a solução conciliatória recomendada complementarmente ter sido adoptada no direito francês, sem que se conheça, antes pelo contrário, qualquer insucesso ou menor eficácia.
34. A gratificante preocupação por parte do Ministério da Saúde em não discriminar cidadãos portadores de outras doenças incuráveis, valerá tanto quanto venham a surgir, em futuro próximo, iniciativas legislativas e administrativas que beneficiem todo o conjunto destes cidadãos, sem esquecer uma preocupação devida, também aos que encontraram em actos terapêuticos de administração de sangue em estabelecimentos privados de saúde, a contaminação por agentes causadores de SIDA.
35. Sua Excelência o Ministro das Finanças dignou-se, cortêsmente, mandar responder à Recomendação de 27 de Dezembro que lhe houvera sido remetida para conhecimento. Uma primeira resposta, de 19 de Janeiro p.p., concluía pela ausência de previsão orçamental específica para suportar o Fundo a que aludia a 7ª conclusão recomendada, recolhendo apoio em informação prestada pela 12ª Delegação da Direcção-Geral da Contabilidade Pública que para o efeito fora previamente consultada (cfr. doc. nº 5).
36. Em 24 de Fevereiro p.p., Sua Excelência veio pronunciar-se sobre os benefícios propostos genericamente para todos os cidadãos portugueses portadores de HIV (cfr. doc. nº 6).
37. Neste documento, invoca a reserva legislativa parlamentar elidindo, contudo, os poderes de iniciativa legislativa do Governo junto da Assembleia da República (artº 170º, nº 1º, da CRP), os quais são, de resto, exclusivos no tocante à diminuição de receitas do Estado, no ano económico em curso. Por isso, vi-me no dever de o recordar a Sua Excelência o Ministro das Finanças por ofício de 20 de Abril p.p.(cfr. doc. nº 7).
38. De igual forma, reiterei a posição assumida relativamente aos benefícios fiscais a criar em sede de impostos sobre o rendimento e o património, que considero plenamente justificáveis atendendo à excepcionalidade das situações visadas e ao imperativo de solidariedade, com vista a garantir uma melhor qualidade de vida do lesado e seus dependentes. Daí, a referência, por certo não comprendida, ao imposto sucessório, em que os beneficiários das isenções recomendadas são as pessoas que presumidamente mantêm especiais ligações com os lesados.
CONCLUSÕES
Face ao exposto, assim como à luz das considerações desenvolvidas na documentação que se faz juntar em anexo, o Provedor de Justiça, no exercício do poder que lhe é conferido no art. 20º, nº 1, alíneas a) e b), do Estatuto, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, entende dever Recomendar à Assembleia da República a adopção de providências legislativas dirigidas à prossecução das seguintes finalidades
1º – Institucionalização de um meio conciliatório célere e eficaz que promova a atribuição de indemnizações aos lesados – hemofílicos ou não hemofílicos – por actos terapêuticos que hajam envolvido a administração de sangue ou produtos seus derivados, contaminados pelo HIV, em estabelecimentos públicos de saúde, sem prejuízo do regular funcionamento do Tribunal arbitral.
2º – Reforma das condições impostas pelo Decreto-lei nº 237/93, de 3 de Julho, no que respeita ao aparente benefício do recurso a juízos de equidade e à limitação ressarcitória, aliás significativamente parca, de Esc. 12.000.000$00, montante angariado, na melhor das hipóteses por um chefe de família com alargado agregado familiar. Do mesmo passo, alargamento desta via a cidadãos não hemofílicos, cuja contaminação pelo HIV tenha resultado de condicionalismos semelhantes.
3º – Efectivação de um princípio de indemnização provisória aos lesados ou seus dependentes (no caso dos primeiros a atribuir em sistema de renda e progressivamente, de acordo com a evolução da patologia e as incapacidades conexas).
4º – Constituição de um Fundo, cujas receitas resultem de subvenções públicas (alimentadas, em parte, pelas quantias obtidas por via do exercício de direitos subrogatórios contra o fornecimento de produtos contaminados) e contribuições particulares, a ser administrado com autonomia, por representantes dos diversos valores em presença.
5º – Reconhecimento de direitos ressarcitórios, também, às pessoas que tenham sido contaminadas através dos lesados em estabelecimentos públicos de saúde, quer por via da prestação de cuidados de saúde, quer por actos inerentes às relações familiares.
6º – Reconhecimento de legitimidade activa, não apenas aos herdeiros legais, como também, aliás preferencialmente, a todos quantos dependessem economicamente de um lesado entretanto falecido.
7º – Concessão a todos os cidadãos atingidos pelo HIV dos benefícios sociais e fiscais enunciados na conclusão 17º da Recomendação de 27 de Dezembro p.p. dirigida a Sua Excelência o Ministro da Saúde.
De resto, permito-me sublinhar a importância que confiro aos documentos juntos em anexo, pelos desenvolvimentos e considerações ali registados, bem como recordar aos Excelentíssimos Deputados, ilustres destinatários da presente Recomendação, o rigoroso cumprimento do disposto no art. 38º, nº 2, do Estatuto, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, sem embargo da comunicação a este órgão do Estado das medidas eventualmente em curso sobre o assunto versado, em prazo anterior.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel
Anexo:
doc. nº 1: Recomendação formulada a Sua Excelência o Ministro da Saúde, em 27.12.93;
doc. nº 2: Comunicação do Exmº Chefe do Gabinete de Sua Excelência o Ministro das Finanças, em 19.01.94;
doc. nº 3: Resposta de Sua Excelência o Ministro da Saúde, de 21.02.94;
doc. nº 4: Segunda comunicação do Exmº Chefe do Gabinete de Sua Excelência o Ministro das Finanças, de 24.02.94;
doc. nº 5: Esclarecimentos complementares replicados a Sua Excelência o Ministro da Saúde, de 04.03.94;
doc. nº 6: Segunda resposta de Sua Excelência o Ministro da Saúde, de 22.03.94;
doc. nº 7: Esclarecimentos complementares replicados a Sua Excelência o Ministro das Finanças, de 21.04.94;