Ministro das Finanças
Rec.:19/B/99
Proc:R-1283/99
Data:1999.06.11
Área: A6
Assunto:AMBIENTE – RUÍDO – REGULAMENTO GERAL SOBRE O RUÍDO – ALTERAÇÃO LEGISLATIVA – PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR – CAUÇÃO
Sequência: Não Acatada
1. O Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (ISP) está actualmente estruturado com base numa fixação da respectiva taxa em valor absoluto, de acordo com as obrigações decorrentes da Directiva 92/82/CEE do Conselho, de 19 de Outubro, que fixa assim as taxas mínimas do imposto em causa a aplicar pelos Estados-membros.
Para lá dos normativos internos que procedem a uma adaptação do regime fiscal dos produtos petrolíferos às orientações comunitárias tendo em vista a harmonização do imposto especial sobre aqueles produtos e a aproximação das respectivas taxas, com tradução designadamente nos decretos-lei n.ºs 123/94 e 124/94, ambos de 18 de Maio, a verdade é que alguns aspectos daquele regime, enquadrados apenas pelo direito nacional, revelam fragilidades do ponto de vista jurídico-constitucional, motivando, pelas razões que a seguir se expõem, a presente recomendação.
2. Assim, prevê o art.º 1º, n.º 1 do já citado Decreto-Lei n.º 124/94, que “os valores das taxas unitárias do imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP) (…) são fixados, para o continente, por Portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Indústria e Energia” (sublinhado nosso).
A fixação pelo Governo da taxa do imposto é por sua vez concretizada mediante a sujeição aos limites mínimos e máximos previstos pelo n.º 2 do mesmo normativo, expressos em escudos e alterados anualmente pelo Orçamento Geral do Estado.
Normas de idêntico teor aparecem nos arts.º 2º, n.º 1, 3º e 1º, n.º 8, alínea g) do mesmo Decreto-Lei.
Atente-se agora nos limites mínimos e máximos que vinculam o Governo na fixação da taxa do ISP. Se os limites mínimos corresponderão aos definidos pela directiva comunitária já atrás identificada, os limites máximos são estabelecidos, segundo informação prestada a este Órgão do Estado por Sua Excelência o Ministro da Economia, “de acordo com objectivos, não só de política económica e energética, mas também de política ambiental (diferenciação entre as taxas das gasolinas com e sem chumbo e as dos fuelóleos com mais de 1% e com menos de 1% de enxofre, com vista a beneficiar os combustíveis menos poluentes) e fiscal, tendo em vista, neste particular, atingir as receitas o mais próximas possível dos valores orçamentados”.
Se se considerar, por exemplo, a última fixação dos valores em análise operada por via do disposto no art.º 37º, n.º 2 da Lei n.º 87-B/98, que aprova o Orçamento do Estado para 1999, verifica-se que a amplitude do intervalo de variação possível da taxa do imposto para a gasolina sem chumbo se situa entre os 70.000$00 e os 104.000$00 por 1000 litros, a que corresponde uma variação entre o índice 100 e 148,6 (48,6%), justificando o Ministério da Economia tal intervalo com o “objectivo de obviar ao impacto de flutuações dos preços do mercado internacional que possam pôr em causa a política de estabilidade dos preços internos”.
3. Não entrando na discussão sobre o mérito dos objectivos adiantados pelo Governo e assumindo a opção do Executivo pela manutenção de uma estabilidade dos preços internos tendo em linha de conta as variações dos preços internacionais, importa no entanto atender ao enquadramento jurídico que permite ao Estado desenvolver os objectivos definidos, o que nos remete para o apuramento da conformidade constitucional do mecanismo de fixação da taxa do imposto sobre os produtos petrolíferos nos moldes em que se encontra previsto na legislação acima mencionada.
4. Conforme refere José Casalta Nabais, in “Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Editorial Notícias, 1993, pgs. 265 e 266, “o princípio da legalidade fiscal (…) exprime-se (…) numa reserva material de Lei formal que se analisa em dois aspectos ou (sub) princípios: 1) no princípio da reserva da Lei formal (…) que implica a reserva à Lei ou ao Decreto-Lei (parlamentarmente) autorizado da matéria fiscal referenciada; 2) no princípio da reserva material ou conteudística, em geral referido com base na dogmática alemã, por princípio da tipicidade (…), que impõe que a Lei ou o Decreto-Lei autorizado contenha a disciplina completa da matéria reservada”.
Os princípios da legalidade e da tipicidade em matéria fiscal encontram-se hoje consagrados respectivamente nos arts.º 165º, n.º 1, alínea i) e 103º, n.º 2 da Constituição, sendo que a última revisão do texto constitucional veio acrescentar à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República “o regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas” (art.º 165º, n.º 1, alínea i), 2ª parte).
A propósito do princípio da tipicidade, consagrado no art.º 103º, n.º 2 do texto constitucional, onde se pode ler que “os impostos são criados por Lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”, explicita o mencionado autor, ob. cit., pgs. 269 e 270, que “quanto aos elementos dos impostos a reservar à Lei, estão aí incluídas as normas que definem o an e o quantum dos impostos, ou seja, as normas que criam ou definem a incidência dos impostos entendida esta no sentido amplo que abarca todos os pressupostos de cuja articulação resulta o nascimento ou não da obrigação de imposto e, bem assim, os elementos da mesma obrigação, o que se reconduz à definição normativa: 1) do facto ou situação que dá origem ao imposto (…); 2) dos sujeitos activos e passivos (…); 3) do montante do imposto (…); 4) dos benefícios fiscais” (sublinhado nosso).
Acrescenta ainda, no âmbito da questão da intensidade da reserva de Lei fiscal, que “esta não se fica pelos princípios ou bases gerais da incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, compreendendo antes toda a disciplina normativa destes elementos, a qual não pode ser assim deixada para regulamentos ou para a acção discricionária da Administração” (ob. cit., pg. 273).
Com referência à mesma imposição constitucional adiantam Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição revista e actualizada, 1993, pgs. 458 e 459, que sendo certo que quanto à reserva de Lei da Assembleia da República o art. 165º, n.º 1, alínea i) apenas fala em criação de impostos, “deve entender-se, contudo, que naquela expressão estão abrangidos todos os elementos referidos no n.º 2 (do art.º 106º, actual art.º 103º), desde logo porque se trata de elementos essenciais à própria definição do imposto e, depois, porque é esta interpretação que está de acordo com o sentido histórico da reserva parlamentar da Lei fiscal, que arranca originariamente da ideia de autotributação, isto é, de a imposição fiscal só poder ser determinada pelos próprios cidadãos através dos seus representantes no parlamento”. E que deve “o imposto ser desenhado na Lei de forma suficientemente determinada, sem margem para desenvolvimento regulamentar nem para discricionaridade administrativa quanto aos seus elementos essenciais. Sendo essa a indiscutível densificação dogmática do princípio da tipicidade legal dos impostos, não pode deixar de considerar-se como constitucionalmente excluída a possibilidade de a Lei conferir às autoridades administrativas (estaduais, regionais ou locais) a faculdade de fixar dentro de limites legais mais ou menos abertos, por exemplo, as taxas de determinados impostos” (pg. 458).
A título ilustrativo, refira-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 205/87, publicado no Diário da República, I Série, de 03.07.87, que diz que os arts.º 165º, n.º 1, alínea i) e 103º, n.º 2 da Constituição devem ser lidos conjugadamente, e que constitui matéria da competência legislativa da Assembleia da República “não só a criação de cada imposto, mas também a determinação dos respectivos elementos essenciais enunciados no n.º 2 do artigo 106º” (pg. 2610).
5. Da análise da orientação doutrinária e jurisprudencial acima exposta resulta que a fixação da taxa do imposto sobre os produtos petrolíferos por Portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Indústria e Energia, nos moldes definidos no Decreto-Lei n.º 124/94, efectuada dentro de um intervalo balizado entre valores mínimos e máximos muito amplo, potenciador por exemplo quanto à gasolina sem chumbo e relativamente ao ano de 1999 de uma variação de quase 50% da quantia tributária a pagar, e envolvendo, por isso, uma grande incerteza quanto ao montante devido a título de imposto, mostra-se contrária aos princípios da legalidade e da tipicidade fiscais, consagrados respectivamente nos arts.º 165º, n.º 1, alínea i) e 103º, n.º 2 da Lei Fundamental.
De resto, as disposições em apreço põem ainda em crise o disposto no art.º 112º, n.º 6 do texto constitucional, onde se pode ler que “nenhuma Lei pode (…) conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”. Em anotação ao referido preceito, referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pg. 512, que “a deslegalização está sempre excluída nas matérias sujeitas ao princípio da reserva de Lei, sendo inconstitucionais quaisquer fenómenos de deslegalização incidentes sobre matérias que constitucionalmente não podem ser reguladas senão por via de Lei. A deslegalização – ou seja a retracção da disciplina legislativa a favor da disciplina por via regulamentar – só é possível fora do domínio necessário da Lei”.
6. Os critérios eleitos pelo Executivo para a fixação da taxa do ISP em concreto poderão até revelar-se os mais correctos. A verdade, no entanto, é que a legislação aplicável a essa determinação permite que o Governo actue com uma margem de discricionaridade que não é de todo admitida pela Constituição.
De acordo com o que refere Nuno de Sá Gomes, “em princípio a taxa deve ser directamente fixada na Lei, ao contrário do que sucedia na Constituição de 1933 (…), que apenas exigia a fixação legal dos limites da taxa, podendo o Governo, sem autorização legislativa, fixar a taxa efectiva. Ora, pelo que se refere aos impostos estaduais, na Constituição actual, esta solução não é consentida pois exige-se que a Lei determine, isto é, especifique, a taxa, o que implica a fixação legal directa da taxa efectiva (in “Manual de Direito Fiscal”, Volume II, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, DGCI, 1996, pg. 77).
O objecto de crítica da presente recomendação não são os critérios que estão na base daquela fixação, antes o facto de esses mesmos critérios não se encontrarem traduzidos na Lei de modo a permitir – o que, de resto, é uma exigência constitucional – que o contribuinte possa prever com uma segurança razoável o montante a pagar em cada momento a título de imposto sobre os produtos petrolíferos.
A presente recomendação vai no sentido de serem introduzidas na Lei tributária as orientações a que o Governo terá de obedecer para poder movimentar-se dentro do intervalo de variação possível para a fixação da taxa em concreto.
Sem prejuízo das soluções que esse Ministério considere como mais adequadas, sempre se sugere, tendo designadamente em vista a estabilidade dos preços internos, que tais critérios se possam traduzir na previsão legal da indexação da taxa do ISP, limitada pelos valores mínimos impostos pela União Europeia e pelos valores máximos estabelecidos pela legislação nacional, ao preço internacional dos produtos, tendo por base, por exemplo, o preço da Europa sem taxas tal como definido pela Portaria n.º 224-A/96, de 24 de Junho (cfr. arts.º 1º e 2º), numa variação inversamente proporcional, como de resto é já prática declarada do Governo, embora os dados colhidos permitam verificar alguma inconsistência.
7. A iniciativa representará assim uma espécie de legitimação constitucional da actuação do Executivo, já que a actual solução legislativa se revela manifestamente potenciadora de profunda indefinição, incerteza e insegurança, sublinhando o carácter discricionário da actuação do Governo e preterindo o valor da segurança jurídica e inerente protecção da confiança dos cidadãos, essenciais num verdadeiro Estado de direito.
Conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 57/95, de 16 de Fevereiro, “o princípio da legalidade tributária desempenha, no Estado constitucional, duas funções específicas: uma ligada à ideia de autotributação, segundo a qual, representando os impostos uma grave ingerência na esfera patrimonial dos cidadãos, devem aqueles ser determinados e aceites por estes, através dos seus representantes no Parlamento, que respondem politicamente perante os eleitores pela criação e definição dos impostos (…); outra de garantia de que os cidadãos saibam antecipadamente e com exactidão o que vão ser chamados a pagar, dada a anterioridade da Lei parlamentar relativamente à actividade administrativa fiscal” (in Boletim do Ministério da Justiça n.º 446 (suplemento), 1995, pg. 282).
8. Por tudo o que fica exposto e ao abrigo do art.º 20º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 09 de Abril,RECOMENDO: :
a Vossa Excelência a introdução na Lei tributária, a par dos valores mínimos e máximos das taxas unitárias do imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP) nos termos designadamente previstos nos arts.º 1º, n.ºs 2 e 8, alínea g), 2º, n.º 1 e 3º do Decreto-Lei n.º 124/94, de 18 de Maio, dos critérios quantitativos e qualitativos a que o Governo terá de obedecer para poder declarar, dentro do intervalo de variação possível, a fixação da taxa em concreto.
Designadamente sugere-se, no âmbito da presente recomendação e tendo em vista a salvaguarda da estabilidade dos preços internos adiantada pelo Governo, que tais critérios se possam traduzir na previsão legal da indexação da taxa do ISP, limitada pelos valores mínimos impostos pela União Europeia e pelos valores máximos estabelecidos pela legislação nacional, ao preço internacional dos produtos, tendo por base, por exemplo, o preço da Europa sem taxas tal como definido pela Portaria n.º 224-A/96, de 24 de Junho (cfr. arts.º 1º e 2º), numa variação inversamente proporcional, como de resto representa já uma prática do Executivo, isto, é claro, sem prejuízo de tratamento diferenciado que se justifique por outras razões, v. g. as ambientais e de fomento económico.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel