Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz
Número: 39/A/99
Processo: 1038/99
Data: 24.05.1999
Área: A6

Assunto: DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS – PASSAGEM DE CERTIDÃO – DIREITOS DO CIDADÃO – DIREITO DE PETIÇÃO – MUNICÍPIO

Sequência: Acatada

1. Como é do conhecimento de V. Exa., foi solicitada a intervenção do Provedor de Justiça a propósito do acto de indeferimento do pedido de passagem de certidões dirigido a esse órgão autárquico pelo Sr… no âmbito do processo registado pelos serviços da Câmara como o processo …, o qual deu origem à queixa apresentada a este Órgão do Estado e à abertura do processo acima identificado.

Os motivos do indeferimento resumem-se à situação de o reclamante não demonstrar um “interesse directo no pedido enquanto particular interessado num procedimento”, resultando ainda da fundamentação do despacho de V. Exa. que a solicitação em causa não se enquadrará no âmbito do exercício do direito de petição.

2. Entendo que não procede a argumentação expendida naquele despacho, pelas razões que a seguir se expõem e que fundamentam a presente recomendação.

3. Assim, e com referência aos direitos e garantias dos administrados estabelecidos no art.º 268º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, aos “direitos fundamentais do cidadão enquanto administrado”, para adoptar a expressão utilizada por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, esclarecem estes autores que se trata em geral “de direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias enunciados no Título II da Parte I (da Constituição), partilhando, portanto, do mesmo regime, designadamente a aplicabilidade directa e a limitação da possibilidade de restrição apenas nos casos expressamente previstos na Constituição e mediante Lei geral e abstracta (…)”.

Acrescentam que “pelo seu número, importância e significado sob o ponto de vista do princípio do Estado de direito democrático, este conjunto de direitos e garantias dos administrados (…) constitui uma espécie de capítulo suplementar do catálogo constitucional de direitos, liberdades e garantias, ao lado dos de carácter pessoal,dos de participação política e dos dos trabalhadores (…)” (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição revista, 1993, pgs. 933 e 934).

Designadamente refere o n.º 2 do citado preceito constitucional que “os cidadãos têm (…) o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na Lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas”, postulando, deste modo, o denominado princípio do arquivo aberto ou da administração aberta.

Reportando-se ao princípio em causa, adiantam os mencionados autores que “a fórmula arquivos e registos administrativos deve entender-se em sentido amplo”, aduzindo, ainda, que a garantia do direito em apreço, “independentemente de estar em curso qualquer procedimento administrativo, é um elemento dinamizador da democracia administrativa e um instrumento fundamental contra o segredo administrativo”, sendo que, ressalvadas as matérias de segurança interna e externa, investigação criminal e intimidade das pessoas, “a Constituição torna claro que a liberdade de acesso é a regra, sendo os registos e arquivos um património aberto da colectividade” (ob. cit., pg. 934 e sublinhado nosso).

4. A regulação do acesso aos documentos da administração é assegurada pela Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, entretanto alterada pela Lei n.º 8/95, de 29 de Março, que esclarece, no n.º 2 do art.º 2º, que “o regime de exercício do direito dos cidadãos a serem informados pela Administração sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados e a conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas consta de legislação própria”.

Após enquadrar no respectivo âmbito de aplicação os documentos “que têm origem ou são detidos por órgãos do Estado e das Regiões Autónomas que exerçam funções administrativas” (art.º 3º), o diploma assegura, no art.º 7º, n.º 1, o direito de acesso generalizado aos documentos administrativos de carácter não nominativo, que define como “quaisquer suportes de informação gráficos, sonoros, visuais, informáticos ou registos de outra natureza, elaborados ou detidos pela Administração Pública, designadamente processos, relatórios, estudos, pareceres, actas, autos, circulares, ofícios-circulares, ordens de serviço, despachos normativos internos, instruções e orientações de interpretação legal ou de enquadramento da actividade ou outros elementos de informação” [art. 4º, n.º 1, alínea a)].

Categoria na qual se incluirão os documentos a que o reclamante pretende aceder no caso concreto.

De resto, a Lei n.º 65/93 aponta ainda as modalidades de acesso aos documentos, incluindo na alínea c) do n.º 1 do art.º 12º a “passagem de certidão pelos serviços da Administração”, e considerando que “o direito de acesso aos documentos administrativos compreende não só o direito de obter a sua reprodução, bem como o direito de ser informado sobre a sua existência e conteúdo” (art.º 7º, n.º 3), não valendo a argumentação expendida no despacho de indeferimento no sentido de o teor dos documentos em causa estar já incluído noutros documentos públicos da Câmara Municipal.

5. A Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho prescreve, por seu turno, no respectivo art.º 82º, n.º 1, que “a fim de permitir o uso de meios administrativos ou contenciosos, devem as autoridades públicas facultar a consulta de documentos ou processos e passar certidões, a requerimento do interessado (…), no prazo de 10 dias, salvo em matérias secretas ou confidenciais”, definindo ainda os termos do processo específico de recurso ao tribunal para intimação da administração tendo em vista a satisfação do pedido do particular.

6. Da conjugação das disposições atrás citadas, sem que aliás se mostre necessário qualquer esforço de interpretação tendo em conta que os normativos em causa são claros na previsão que fazem dos direitos e valores que consagram, resulta inequívoco o dever que impende sobre a administração pública de permitir aos cidadãos o acesso aos documentos administrativos nos termos legais, isto é, desde que não se trate de documentos nominativos, ou seja, de suportes de informação que contenham dados pessoais, e devidamente salvaguardadas as limitações constitucionais reportadas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas.

Não se vislumbra, no caso concreto, qualquer razão atendível para que o órgão autárquico a que V. Exa. preside actue de forma diversa. Ou melhor, a decisão de indeferimento que originou a presente reclamação não tem suporte legal, revelando-se em última análise violadora de um direito constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.

7. Outras disposições constitucionais, designadamente consubstanciadoras dos denominados direitos de participação política, corroboram a orientação acima definida.
É o caso do princípio consignado no art.º 48º, n.º 2 da Lei Fundamental, onde se pode ler que “todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos”, relativamente ao qual Gomes Canotilho e Vital Moreira adiantam não dizer respeito “ao cidadão como particular, interessado num certo procedimento da administração (…), mas ao cidadão como membro da comunidade interessado na res publica” (ob. cit., pg. 267).

Ou ainda o caso do direito de petição, ao contrário da posição defendida na fundamentação do acto de indeferimento dessa autarquia, com tradução no art.º 52º do texto constitucional. Em anotação a este preceito, esclarecem os mesmos autores que “a caracterização do direito de petição como um direito de participação política e não como um direito pessoal justifica que ele possa ser exercido independentemente da existência de qualquer gravame pessoal ou lesão de interesses próprios, ou seja, em defesa da legalidade constitucional ou do interesse geral” (ob. cit., pg. 279).

O acto de indeferimento em apreço mostra-se assim susceptível de inviabilizar o exercício do direito de petição conferido pela Lei Fundamental ao cidadão dele destinatário, tendo designadamente em atenção que, com base nos elementos facultados pela administração pública, aquele poderá, por exemplo, apresentar um pedido ou uma proposta a um órgão de soberania ou a qualquer autoridade pública – até mesmo à própria Câmara Municipal – para que tome, adopte ou proponha determinadas medidas, ou efectivar uma queixa ou denúncia de qualquer ilegalidade verificada (cfr. art.º 2º da Lei n.º 43/90, de 10 de Agosto que regula o exercício do direito de petição).

Na esteira de uma progressiva concretização da orientação acima definida, veio ainda o recente Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de Abril, que estabelece medidas de modernização administrativa, eleger como princípios de acção dos serviços e organismos da administração pública, os da “qualidade, da protecção da confiança, da comunicação eficaz e transparente, da simplicidade, da responsabilidade e da gestão participativa” (art.º 2º).

8. Da análise da situação concreta apresentada a este Órgão do Estado não se reconhecem razões que à luz da Constituição e da Lei possam justificar o acto de indeferimento objecto da presente queixa. A decisão em apreço revela-se, desta forma, violadora dos direitos fundamentais que assistem ao cidadão enquanto administrado e contrária aos princípios da publicidade e da transparência (cfr. Lei n.º 65/93, art.º 1º) que norteiam ou devem nortear a actuação da administração pública num Estado de direito democrático.

Com referência precisamente ao princípio do arquivo aberto ou da administração aberta, pode ler-se, a título ilustrativo, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 176/92, de 07 de Maio (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º Volume, 1992), que a consagração do mesmo na Lei Fundamental “constitui um valioso contributo para a superação, entre nós, do sistema clássico da Administração, essencialmente burocrático, autoritário, centralizado, fechado sobre si e eivado de secretismo, e significou um decisivo passo na direcção da plena democratização da nossa vida administrativa” (pg. 387).

9. Tendo em atenção tudo o que acima fica exposto e ao abrigo do art. 20º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 9/91, de 09 de Abril,

RECOMENDO

a V. Exa. a revogação do acto de indeferimento do pedido do Sr… , dirigido a esse órgão autárquico no âmbito do processo referenciado pelos serviços da Câmara como processo … e, designadamente com base no disposto nos arts.º 7º, n.º 1 e 12º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, a passagem das certidões aí solicitadas, nos termos definidos da Lei.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL