Ministro da Cultura
Número: 26/A/99
Processo: 3865/96
Data: 23.04.1999
Área: A2
Assunto: CULTURA E COMUNICAÇÃO SOCIAL – INSTITUTO DO CINEMA, DO AUDIOVISUAL E DO MULTIMEDIA – PROGRAMA COMUNITÁRIO – ASSOCIAÇÃO SCALE – PAGAMENTO DE CUSTOS DE FUNCIONAMENTO
Sequência: Não acatada
Na sequência de queixa apresentada na Provedoria de Justiça acerca do assunto em epígrafe, entendi formular ao ex-IPACA (actualmente Instituto do Cinema, do Audiovisual e do Multimédia) a Recomendação n.º 50/A/97, de 19 de Junho, cuja cópia tomo a liberdade de anexar (doc. n.º 1).
Após pedido daquele Instituto para prorrogação do prazo legal de resposta à referida Recomendação, com fundamento na dificuldade da sua formulação devido “ao período de férias e a inerente desmobilização de pessoal”, foi-me enviado um Parecer do Senhor Professor Doutor Almeida Costa, que o ex-IPACA afirmou consubstanciar a sua resposta (doc. n.º2).
Atento o não acatamento da Recomendação n.º 50/A/97, que aquele Parecer visa sustentar, e nos termos do disposto no art. 38º, n.º4, do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, entendi trazer o assunto junto de Vossa Excelência, nos termos e pelos fundamentos que passo a expor.
I – A Questão de Facto
1. Em síntese, e para definitiva clareza da presente questão, cumpre referir que esta decorre de pedido de pagamento de parte das despesas administrativas ou custos de funcionamento(instalações, pessoal, material de apoio) de uma entidade nacional (Associação…) criada para gerir um Programa Comunitário de co-financiamento de projectos transcomunitários, no âmbito do audiovisual (PROGRAMA MEDIA).
O pagamento solicitado seria devido a título de comparticipação administrativa no funcionamento daquela Associação, condição imposta pela Comissão Europeia como condição da instalação do Programa MEDIA num Estado-membro de acolhimento durante cinco anos, instalação querida e aceite por Portugal através do ex-IPC, conforme resulta da prova testemunhal produzida no presente processo, dos documentos avulsos e da prática comunitária (o ex-IPC era a entidade reconhecida como competente para a assunção de obrigações decorrentes de protocolos e acordos celebrados no âmbito das suas atribuições – vd art. 3º do Decreto-Lei n.º 391/82, de 17 de Setembro).
No seguimento dos argumentos expendidos pelo IPACA, o Parecer visa sustentar a inexistência de qualquer disposição na legislação comunitária que criou o Programa em causa da qual decorresse a obrigação de pagamento pelo ex-IPC dos custos de funcionamento da Associação S., bem como de qualquer contrato onde a mesma obrigação se fundasse. Ademais, afirma-se, a existir, tal contrato sempre seria nulo por falta de forma legal ou pela inobservância de formalidades prévias exigidas pela Lei.
II – O Direito Aplicável
2. Não pretendendo repetir os argumentos já expendidos na minha Recomendação supra referida, nem tão pouco expor vastas teorias jurídicas sobre a pretensão da reclamante – que, aliás, julgo de verdadeira Justiça -, cumpre-me dizer apenas o seguinte: mesmo a aceitar os argumentos avançados no Parecer enviado a este órgão do Estado (a saber: inexistência de disposição comunitária, inexistência de contrato, ou invalidade deste, a existir), sempre será de deferir aquela pretensão.
3. Se decorre das declarações daqueles que representaram o Estado português nas negociações havidas com representantes da Comissão que era intenção expressa assumir um compromisso de custear parte das despesas da instalação do Programa em Portugal (vd n.ºs 15, e 7 a 12 da minha Recomendação e n.º 9 do Parecer), não devemos esquecer que “toda a conduta, todo o agir ou interagir comunicativo, além de carrear uma pretensão de verdade ou de autenticidade (…), desperta nos outros expectativas quanto à futura conduta do agente. (…) (O) princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem” (BAPTISTA MACHADO, “Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, Obra Dispersa, Braga, 1991, p. 352).
Conforme quis deixar claro na minha Recomendação (vd n.ºs 21 e 22), os princípios vinculantes da boa-fé e lealdade na negociação e celebração de negócios jurídicos acompanham toda a relação contratual, desde os preliminares até ao seu cumprimento (arts. 217º e 762º do Código Civil). É também isso que decorre do Parecer em causa (n.º 8).
E convém não esquecer que o princípio da boa-fé norteia o Estado na sua actividade, como é actualmente explicitado no Código de Procedimento Administrativo, nos termos do qual deve a Administração respeitar, nomeadamente, “a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa” (al. a) do º2 do art. 6º-A, em cujo n.º1 se determina genericamente a sujeição da Administração ao princípio da boa-fé).
Citando o Professor Almeida e Costa, no “iter negotii” os negociadores têm deveres de lealdade e probidade, “(…) como, por exemplo, o de comunicar à outra parte a causa de invalidade do negócio, (…) o de contratar ou prosseguir as negociações iniciadas com vista à celebração de um acto jurídico” (Direito das Obrigações, Almedina, 6ª ed., pp. 247 e ss.).
Atentas as declarações proferidas durante as negociações entre o Estado e a Comissão, mesmo que se pretenda não ter chegado a existir, afinal, a celebração de um contrato, certo é que se geraram expectativas legítimas de que o mesmo viria a ser realidade. Quem negoceia com outrem deve proceder de boa-fé, sob pena de responder pelos danos que venha a causar, culposamente, à outra parte (art. 227º do Código Civil), pelo que mesmo a alegação de inexistência de contrato válido não afasta a responsabilidade civil pré-contratual e consequente ressarcimento dos danos produzidos pela violação do princípio da confiança e da boa-fé, bem pelo contrário. Como se reconhece no Parecer (n.º 8 das Conclusões), é precisamente este o âmbito por excelência de aplicação do princípio da boa-fé.
Em suma: quer por acatamento da minha Recomendação n.º 50/A/97, quer tendo em conta os argumentos acima expendidos, sempre seria de deferir a pretensão da Associação… no sentido de lhe serem pagas as despesas em causa.
III – Conclusão
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 20º, n.º1, alínea a), e 38º, n.º4, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,
RECOMENDO
que, nos termos da minha Recomendação n.º 50/A/97 ou a título de ressarcimento dos danos resultantes para a Associação… da violação das expectativas legitimamente criadas quanto à celebração, validade e eficácia de actos e negócios jurídicos que sustentassem parte das despesas administrativas da Associação nos anos de 1992 a 1995, se proceda ao pagamento à mesma dessas despesas.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL