Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
RECOMENDAÇÃO Nº 16/A/99
Proc.R-903/97
1999.03.02
Área: A1
Sequência: Acatada
1. Pela Srª…, proprietária do prédio sito na Rua dos Ferreiros, a Stª Catarina, nº …, foi-me apresentada uma queixa na qual contestava a validade da intimação camarária nº 386, de 10 de Janeiro de 1997, proferida no âmbito do processo de intimação de obras nº 497/I/79.
2. Fundamenta-se a queixa no facto de a intimação se reportar às conclusões da vistoria efectuada ao imóvel em 8 de Junho de 1988, e que havia motivado a ordem de realização de obras de beneficiação de 2.12.1988.
3. Na sequência desta intimação foram realizadas obras de conservação e beneficiação nos anos de 1988 e 1989, inclusivamente com apoio financeiro concedido ao abrigo do Regime Especial de Comparticipação na Recuperação de Imóveis Arrendados (RECRIA)(Proc. nº 95/R/88).
4. A fim de habilitar a instrução do processo e em obediência ao estatuído pelo art. 34º do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, foram solicitados esclarecimentos ao Gabinete Local do Bairro Alto e Bica, tendo em vista conhecer da regularidade do procedimento camarário que culminou na citada intimação.
5. Foi possível apurar que em 10 de Novembro de 1996, havia sido efectuada pelos agentes de fiscalização dessa Câmara Municipal, uma deslocação ao imóvel na qual teria sido verificada a manutenção das deficiências de conservação que constituíram fundamento da intimação efectuada em Dezembro de 1988.
6. Na sequência desta verificação, é proposta a renovação da intimação. Refere-se na Informação nº 1782/BA/96: “verificou-se que a intimação não se encontra cumprida. Sendo assim, julga-se de propor nova intimação com base na anterior, dado que a última foi em 1988 e o imóvel se encontra a degradar”. Nestes termos, por despacho do Director Municipal de Reabilitação Urbana é ordenada a renovação da intimação, a qual vem a ser notificada à munícipe em 20 de Janeiro do ano findo.
7. Em síntese, as informações obtidas permitiram concluir que a vistoria realizada ao imóvel em Junho de 1988 constituiu o fundamento da notificação efectuada em Janeiro de 1997, não obstante terem sido realizadas obras de conservação em 1988 e 1989.
8. Sem prejuízo de reconhecer o mérito e conveniência da actuação do Gabinete Local do Bairro Alto e Bica tendo em vista a recuperação do prédio em causa, não posso deixar de assinalar e reprovar que a prossecução das atribuições municipais em matéria de conservação do parque habitacional e de reabilitação urbana se faça com preterição das regras procedimentais aplicáveis.
9. Nos termos do art. 10º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, pode a Câmara Municipal determinar, em qualquer altura, precedendo vistoria, a execução das obras necessárias para corrigir más condições de salubridade, solidez ou segurança contra o risco de incêndio, notificando o proprietário nos três dias seguintes à aprovação da acta que se refira à deliberação camarária em matéria de beneficiação extraordinária (§ 2º, do artigo citado).
10. Reflecte este preceito um dos poderes cometidos às câmaras municipais em matéria de conservação do parque habitacional local, aos quais, de forma genérica, faz referência o art. 51º, nº 2, alínea d), da Lei das Autarquias Locais: “à câmara municipal compete ordenar, precedendo vistoria, a demolição, total ou parcial, ou a beneficiação de construções que ameacem ruína ou constituam perigo para a saúde e segurança das pessoas”.
11. Às câmaras municipais compete, assim, no exercício de poderes de polícia das edificações garantir a segurança de pessoas e bens, bem como a preservação de adequadas condições de habitabilidade.
12. A actuação municipal, neste, como em qualquer outro domínio, encontra-se sujeita ao princípio da legalidade, fundamento e limite de toda a actividade administrativa (arts. 3º, nº 3, e 266º, nº 2, da Constituição, e art. 3º do Código do Procedimento Administrativo). No que ao caso interessa, a observância da legalidade procedimental, ou seja, do conjunto dos princípios e regras do procedimento, implica que a “Administração actue de acordo com os trâmites e regras fixados pela Lei (ou, secundariamente, por regulamento) para prossecução dos fins estabelecidos pela norma” (OLIVEIRA, Mário Esteves de, et al, Código do Procedimento Administrativo, Comentado, Vol. I, Coimbra, 1993, p. 141).
13. No exercício dos poderes atribuídos pelo art. 10º do RGEU, a Lei exige que a decisão camarária de beneficiação ou de demolição, seja precedida de vistoria realizada nos termos do art. 51º, 1º, do Código Administrativo (§ 1º, do art. 10º do RGEU). Realizada a vistoria, a câmara municipal delibera sobre a necessidade de serem realizadas obras de beneficiação necessárias à correcção das más condições de salubridade, solidez ou segurança contra o risco de incêndio, ou, sendo o imóvel irrecuperável e verificando-se perigo de ruína ou para a saúde pública, ordena a respectiva demolição.
14. Em qualquer dos casos, é a vistoria que habilita a decisão camarária. É em face dos respectivos resultados que a câmara municipal afere da existência dos pressupostos de facto que permitem a dinamização dos poderes em questão, que opta entre ordenar a beneficiação do imóvel ou a sua demolição, fixa a natureza e as condições das obras a realizar, especifica as medidas provisória e cautelares que o estado do edifício impõe, as condições de ocupação da via pública e outros aspectos relativos à execução dos trabalhos de construção civil que o caso reclame, bem como o prazo para a respectiva execução.
15. A avaliação ocular da situação do imóvel para determinação do estado em que o mesmo se encontra constitui, não só, pressuposto essencial da decisão camarária, como se integra no acto final do procedimento, porquanto os resultados respectivos constituem o conjunto das imposições dirigidas ao particular em matéria de beneficiação e reparação do imóvel.
16. No caso em apreço a intimação camarária para a realização de obras de beneficiação baseou-se nos resultados de uma vistoria realizada nove anos antes, o que não permitiu, por certo, aferir dos pressupostos do exercício da competência camarária nos termos acima descritos. As obras de reparação realizadas e a degradação que o imóvel entretanto sofreu terão alterado, de forma radical, a situação existente, pelo que só a verificação das condições actuais do edifício permitiria o correcto exercício da competência camarária.
17. A norma habilitadora do exercício dos poderes camarários elege a realização de uma vistoria como pressuposto essencial da imposição ao particular da obrigação de proceder à realização de obras. Do ponto de vista da regulação legal trata-se de um procedimento administrativo necessário, objecto de uma pré-ordenação de tipo vinculativo, no qual a observância da sequência de actos e formalidades normativamente estabelecidos condiciona a legitimidade do exercício da competência administrativa (LOUREIRO, João C. Simões Gonçalves, O procedimento administrativo entre a eficiência e a garantia dos particulares, in STUDIA IURIDICA, 13, Coimbra, 1995, p.p. 57 e 119).
18. No caso, a decisão administrativa encontra-se inquinada pela falta da verificação dos elementos de facto que legitimam o exercício da competência, podendo considerar-se que a decisão é nula por falta de um dos seus elementos essenciais (art. 133º do Código do Procedimento Administrativo). Neste sentido são elementos essenciais – cuja falta determina a nulidade do acto administrativo -, todos aqueles que se ligam a momentos ou aspectos legalmente decisivos e graves dos actos administrativos; assim, é elemento essencial de um acto que impõe encargos aos particulares em virtude da existência de uma determinada situação de facto, a verificação, com carácter constitutivo, de tais pressupostos de facto (OLIVEIRA, Mário Esteves de, et al., Código do Procedimento Administrativo, 2ª ed., Coimbra, 1997, p. 642).
19. Só a vistoria poderia reconhecer a existência do circunstancialismo fáctico – falta de condições de salubridade, solidez e segurança -, de que a lei faz derivar certas consequências: a prolação de um acto administrativo de conteúdo impositivo.
20. Como refere Sérvulo Correia, os actos de verificação inovam no ordenamento jurídico ao tornarem certa, incontestável e revestida de autoridade a situação que enunciam, e revestem natureza constitutiva já que nasce para o seu autor a vinculação de emitir um comando com um certo conteúdo, uma vez concluído o juízo de existência da situação (Noções de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1982, pp. 475 e 458).
21. Um acto de verificação constitutiva cria uma nova situação jurídico-administrativa e esgota os seus efeitos no acto consequente – no comando legal cuja prática é imposta por Lei como sua consequência -, não pode, por isso, constituir pressuposto de uma outra ordem administrativa com o mesmo conteúdo.
22. Pelo exposto, cumpre reconhecer a invalidade de que padece a intimação camarária contestada e renovar o procedimento com audiência prévia da proprietária e por forma a legitimar-se o exercício dos poderes de polícia das edificações em vistoria camarária que ateste o estado de degradação do imóvel e as obras de beneficiação que eventualmente careça.
II Conclusões
Em face do exposto e no exercício da atribuição constitucional que me é confiada para prevenção e reparação das injustiças e ilegalidades (artº 23º, nº 1, da CRP),RECOMENDO
1º Que, nos termos do disposto no art. 134º, nº 2, do Código do Procedimento Administrativo, seja declarada a nulidade da intimação camarária nº 386, de 10 de Janeiro de 1997, proferida no âmbito do processo de intimação de obras nº 497/I/79.
2º Que seja realizada vistoria ao imóvel, conforme impõe o art. 10º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas por forma a determinar as obras de beneficiação adequadas a repor as condições de habitabilidade exigíveis.