Ministro do Trabalho e da Solidariedade
Número: 50/A/99
Processo: 5618/96
Data: 31.05.1999
Área: A2
Assunto: TRABALHO. SECTOR PRIVADO – LEI DAS 40 HORAS – INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI – ORGANIZAÇÃO DO TEMPO DE TRABALHO – TEMPO DE TRABALHO EFECTIVO
Sequência: Sem Resposta
Foi solicitada a minha intervenção relativamente à interpretação e aplicação da Lei n.º 73/98, de 10 de Novembro, que transpôs para a Ordem Jurídica Interna a Directiva n.º 94/104/CE, do Conselho, de 23 de Novembro, relativa a determinados aspectos da organização do trabalho.
Como é do conhecimento de Vossa Excelência, o problema fundamental na interpretação da Lei n.º 73/98, de 10 de Novembro, é o da sua articulação com a Lei n.º 21/96, de 23 de Julho – estabelece a redução dos períodos normais de trabalho superiores a quarenta horas por semana – vulgarmente conhecida como Lei das 40 horas, em particular com a norma contida no n.º 3 do seu art.º 1.º.
Este problema foi-me colocado a propósito do despacho de concordância de 25 de Setembro de 1998, de Sua Excelência o Secretário de Estado da Segurança Social e das Relações Laborais, exarado em Parecer da mesma data do Exmo. Senhor Director-Geral das Condições de Trabalho, sobre o conceito de tempo de trabalho da Proposta de Lei n.º 156/VII, anterior à promulgação e publicação da Lei n.º 73/98.
Posteriormente,com a publicação desta Lei, foi transmitido à Confederação da Indústria Portuguesa e a alguns Sindicatos o entendimento do Ministério do Trabalho e da Solidariedade quanto a esta questão, em tudo idêntico ao teor do supra identificado Parecer.
Tive então ocasião de solicitar a Vossa Excelência os esclarecimentos que entendi úteis à elucidação do problema, salientando com particular ênfase a “Exposição de Motivos” que esteve na génese da apresentação pelo Governo, à Assembleia da República, da Proposta de Lei que transpôs para o direito interno a já referida Directiva n.º 93/104/CE, do Conselho, de 23 de Novembro, relativa à organização do tempo de trabalho.
Em resposta, foi remetido à Provedoria de Justiça, através do of. identificado como ENT. N …, PROC. N.º 97/…, um Parecer que “(..) traduz a posição do Ministério do Trabalho e da Solidariedade (…)” relativamente à interpretação e aplicação das Leis n.ºs 21/96 e 76/98 e à forma de articulação dos dois diplomas.
I. Parecer do Ministério do Trabalho e da Solidariedade
De acordo com este Parecer, o Ministério do Trabalho e da Solidariedade considera que a redução dos períodos normais de trabalho determinada pela Lei n.º 21/96 não se deve basear no conceito de tempo de trabalho da Lei n.º 73/98, de acordo com os próprios diplomas.
Passo a citar:
“A Lei n.º 73/98 esclarece que o seu conceito de tempo de trabalho é definido “para os efeitos de aplicação da presente Lei” (1). A referida Lei não regula a redução da duração do trabalho para as 40 horas semanais, pelo que o seu conceito de tempo de trabalho não é relevante para essa redução.
Do ponto de vista da Lei n.º 21/96, tem-se em conta que a mesma determina a redução da duração do trabalho para as 40 horas semanais, utilizando para o efeito um conceito distinto de trabalho efectivo, que a Lei define como correspondendo ao tempo dos períodos normais de trabalho, com excepção das interrupções de actividade previstas em acordos, em regulamentação colectiva ou na Lei, de que resulte a paragem do posto de trabalho ou a substituição do trabalhador.”
Após enunciar os princípios que, na óptica da Administração do Trabalho, sustentam a redução da duração do trabalho contida na Lei n.º 21/96, afirma-se no já mencionado Parecer, com recurso às regras de interpretação constantes no art.º 9.º do Código Civil, que para a Lei n.º 73/98 fazer prevalecer o seu conceito de tempo de trabalho sobre o de trabalho efectivo seria necessário que esse pensamento normativo tivesse um mínimo de correspondência verbal na letra da Lei, o que, de acordo com as conclusões ali plasmadas, não sucederia.
Quanto ao facto de a “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 156/VII referir expressamente que: “…as definições da presente proposta de Lei esclarecem que determinadas interrupções do trabalho são consideradas tempo de trabalho, em sintonia com a Lei .º 21/96, de 23 de Julho”, afirma o Ministério do Trabalho e da Solidariedade ser reflexo de problemas que “existiam em algumas empresas, ao tempo de adopção da Proposta de Lei”, quanto à contagem de certas interrupções como tempo de trabalho (2).
Considera ainda o Ministério do Trabalho e da Solidariedade que a Lei n.º 73/98 esclareceu que determinadas interrupções de trabalho são consideradas tempo de trabalho, em sintonia com a Lei n.º 21/96, “porque os conceitos de tempo de trabalho e de trabalho efectivo têm conteúdos em grande parte coincidentes”, elencando, a par e passo, todas as alíneas constantes do n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98, excepto a alínea a).
Todas estas interrupções podem ser consideradas tempo de trabalho efectivo, segundo o Ministério do Trabalho e da Solidariedade, pela coincidência de conteúdo entre os conceitos de tempo de trabalho e de tempo de trabalho efectivo.
De acordo com este entendimento, podem ser consideradas como tempo de trabalho e como tempo de trabalho efectivo as seguintes interrupções:
1. Interrupções que não são resultantes de acordos, de instrumentos de regulamentação colectiva ou da Lei, independentemente do seu efeito sobre o funcionamento do posto de trabalho (paragem) ou da substituição do trabalhador ( alínea b) do n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98).
2. Interrupções que não são resultantes de fonte formal de direito e durante as quais os trabalhadores mantêm a sua disponibilidade para o trabalho ( alínea c) do n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98).
3. Interrupções em que os trabalhadores mantêm a sua disponibilidade para o trabalho em caso de necessidade, não sendo substituídos ( alínea d) do n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98).
4. Interrupções impostas por normas específicas de segurança, higiene e saúde no trabalho (alínea e) do n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98).
Quanto às interrupções de trabalho como tal consideradas nas convenções colectivas ou resultantes de usos e costumes reiterados das empresas (alínea a) do n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98), para o Ministério do Trabalho e da Solidariedade apenas existe coincidência de conteúdo entre os dois conceitos em presença se as mesmas não implicarem a paragem do posto de trabalho ou a substituição do trabalhador.
Ressalva o Ministério do Trabalho e da Solidariedade que estas últimas interrupções de trabalho foram incluídas na Lei n.º 73/98 por proposta do Grupo Parlamentar do PCP, não estando abrangidas pela referência da “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei apresentada, e, portanto, não as considera abrangidas pela invocada “sintonia” com a Lei n.º 21/96.
II. Análise da posição assumida pela Administração do Trabalho.
Suscitam-me as seguintes reflexões as questões enunciadas no parecer enviado à Provedoria de Justiça:
Convém, desde logo, relembrar as circunstâncias que rodearam a publicação e aplicação da Lei n.º 21/96, de 23 de Julho.
O Acordo de Concertação Social de Curto Prazo estabeleceu o objectivo de redução do período normal de trabalho para 40 horas semanais, que a referida Lei procurou normativizar, de forma proeminentemente literal.
A forma de se alcançar este objectivo e a respectiva calendarização foram estabelecidas pela Lei das 40 horas, que dispôs que a redução do período normal de trabalho semanal definiria períodos de trabalho efectivo, excluindo-se as interrupções de actividade resultantes de acordos, de normas de instrumentos de convenção colectiva ou da Lei que implicassem a paragem do posto de trabalho ou a substituição do trabalhador.
Foi assim introduzido, com esta norma, o conceito de trabalho efectivo, estranho ao ordenamento jurídico-laboral português, como é de todos sabido, e, como tal, sem paralelo no sistema legal e sem apoio em qualquer texto doutrinal ou jurisprudencial que auxiliasse a sua delimitação e aplicação ao caso concreto, o que veio a revelar-se um elemento de instabilidade nas relações laborais.
Para além disso,consubstancia o n.º 3 do art.º 1.º daquela Lei outra especificidade relativamente ao que é regra no Direito do Trabalho.
Trata-se de uma norma imperativa absoluta (ou imperativa stricto sensu), com vocação para reduzir as normas constantes de instrumentos de regulamentação colectiva vigentes e as condições de trabalho emergentes da sua aplicação, consagradoras de interrupções de actividade que contrariassem o referido conceito de trabalho efectivo – isto é, que, em suma, considerassem tempo de trabalho interrupções de actividade que implicassem paragem do posto de trabalho ou substituição do trabalhador.
A este respeito escreveu Monteiro Fernandes: “O art.º 1.º/3 da Lei 21/96 esclarece que a noção de trabalho efectivo implica a “exclusão de todas as interrupções de actividade resultantes de acordos, de normas de instrumentos de regulamentação colectiva ou da Lei e que impliquem a paragem do posto de trabalho ou a substituição do trabalhador”. (…) Em termos preliminares importa apenas sublinhar o seguinte: o modo de contagem do tempo adoptado pela Lei n.º 21/96, não é igual ao da Lei 2/91 e da actual redacção do art.º 5.º da LDT. A circunstância de, para a Lei 21/96, só interessar o trabalho efectivo leva a que não sejam contabilizados, para os efeitos dessa Lei, alguns períodos que a Lei 2/91 e a LDT contam como tempo de trabalho. Que períodos são esses? São, realmente, tempos de interrupção de trabalho, mas que, face à contratação colectiva, ou até aos usos, são tradicionalmente “considerados” tempo de trabalho” (3).
Pelo que ficou dito, é facilmente compreensível que as convenções colectivas vigentes à data não poderiam conter uma noção que lhes era desconhecida (4).
Não era exigível, nem possível, que os instrumentos de regulamentação colectiva contivessem normas integrantes daquele conceito – trabalho efectivo -, pelo que estava fora de causa obter, por exemplo, no caso concreto, a inversão da aplicação hierárquica das normas em resultado do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador.
A Lei qualificou-se, portanto, como absolutamente imperativa e redutora, afectando todos os sectores de actividade nos quais vigorasse uma jornada de trabalho semanal superior a 40 horas.
A sua aplicação, ao invés de obter a concertação das partes, teve o condão de gerar os maiores conflitos laborais da última década, pois dúvidas não existem quanto ao desequilíbrio que introduziu nas relações de trabalho e quanto às dificuldades que foram sentidas nas negociações colectivas que lhe sucederam.
Há diversas ilustrações do que ocorreu a este nível, valendo, por todas, a constatação de que as empresas em muitos casos efectuaram a redução da duração de trabalho semanal à custa das pausas que os trabalhadores genericamente já gozavam, como se reconheceu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 98/09/28, Proc. 9810399.
Por isso, permito-me reiterar a afirmação que fiz na minha Recomendação n.º 4/B/97, de 24 de Fevereiro, de que o único ponto onde existiu unanimidade, quanto ao texto da Lei n.º 21/96, foi no reconhecimento de que o mesmo apresentava uma redacção deficiente, problemática, confusa e obscura, justificando-se, como oportunamente defendi, a sua interpretação autêntica.
O Governo, não acatando a referida Recomendação, apresentou, não obstante, a Proposta de Lei n.º 156/VII, publicada no Diário da Assembleia da República, II.ª Série – A, de 98.01.17, que esteve na origem da Lei n.º 73/98, de 10 de Novembro, justificando-a, quanto à matéria ora em análise, pelos seguintes motivos:
” A aplicação da Lei n.º 21/96, de 23 de Julho, que determinou a mais significativa redução do tempo de trabalho em Portugal, tem, no entanto, deixado subsistir algumas dúvidas sobre a definição do tempo de trabalho, para efeito da redução legal dos períodos normais de trabalho.
Considerando que a Directiva n.º 93/104/CE adopta uma definição de tempo de trabalho, é oportuno promover o esclarecimento de algumas dúvidas manifestadas a propósito de certas concretizações daquela noção. Assim, as definições da presente proposta de Lei esclarecem que determinadas interrupções de trabalho são consideradas tempo de trabalho, em sintonia com a Lei n.º 21/96, de 23 de Julho.”
É inegável que a redacção, ora reproduzida, da “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei é suficientemente dúbia para dela não se poder retirar com segurança se o Governo pretendia, afinal, propor uma Lei interpretativa que clarificasse as dúvidas sentidas, em geral, com a aplicação da Lei n.º 21/96 e, em especial, com a instrumentalização do conceito de trabalho efectivo constante do n.º 3 do art.º 1º.
Facilmente se conclui, da resposta enviada à Provedoria de Justiça, que a posição assumida pelo Governo nesta matéria é a de que a Lei n.º 73/98 não é uma Lei interpretativa.
Vai o Ministério do Trabalho e da Solidariedade ainda mais longe, dizendo que o disposto nas alíneas b) a e) do n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98, que são as mesmas da Proposta de Lei inicial, estão em “sintonia” com o conceito de trabalho efectivo constante da Lei n.º 21/96, e que, portanto, as duas normas coexistem no ordenamento jurídico, articulando-se. Inversamente, o disposto na alínea a) da mesma norma – introduzida pela Assembleia da República – não estaria em sintonia com aquele conceito, podendo apenas ser conciliada com o n.º 3 do art.º 1.º da Lei n.º 21/96 desde que respeite os limites ali contidos.
Ou seja, são consideradas tempo de trabalho – efectivo – todas as interrupções constantes da nova Lei, excepto as que, sendo como tal consideradas nas convenções colectivas ou resultando de usos e costumes reiterados das empresas, implicarem paragem do posto de trabalho ou substituição do trabalhador (5).
E isto porque, para o Ministério do Trabalho e da Solidariedade, existe um conteúdo coincidente entre o conceito de tempo de trabalho e o conceito de trabalho efectivo.
Contrariamente, tenho a convicção que a única relação possível entre os conceitos de duração de trabalho e de duração de trabalho efectivo é a de género e espécie, na medida em que toda a duração de trabalho efectivo é também duração de trabalho mas nem toda a duração de trabalho se conta como trabalho efectivo, nos termos e para os efeitos da Lei n.º 21/96, que estabelece a redução dos períodos normais de trabalho superiores a quarenta horas por semana.
Afirma ainda o Ministério do Trabalho e da Solidariedade que, para que a Lei n.º 73/98 fizesse prevalecer o seu conceito de tempo de trabalho sobre o de trabalho efectivo, seria necessário que o pensamento legislativo tivesse na letra da Lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2 do art.º 9º. do Código Civil).
Contudo, a simples interpretação do elemento literal não resolve todos os problemas. A este respeito também dispõe o n.º 1 do mesmo artigo que a interpretação da Lei, para além do elemento literal, deve reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo em conta, sobretudo, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a Lei foi elaborada e a actualidade da mesma.
Afirmar-se que o conceito de tempo de trabalho estabelecido na Lei n.º 73/98 apenas tem efeitos para aplicação deste diploma significa, literalmente, que este conceito só tem operacionalidade no contexto dos aspectos de organização do trabalho ali presentes, ainda que não se perceba exactamente o alcance desta afirmação, uma vez que, entre aqueles aspectos, figuram normas relativas à duração de trabalho semanal e aos intervalos de descanso (respectivamente, artigos 3.º e 4.º ).
A entender-se a articulação entre os dois diplomas sub judice da forma pouco clara manifestada pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade, continua a permitir-se que a unidade do sistema jurídico-laboral seja posta em causa, mantendo-se uma fragmentação intolerável quanto ao regime da duração de trabalho.
Não resulta expressamente do Parecer assumido como posição do Ministério do Trabalho e da Solidariedade que a norma consubstanciada no n.º 3 do art.º 1.º da Lei n.º 21/96 é uma norma especial, nem que o conceito de trabalho efectivo estabelecido na sua previsão apenas tem operacionalidade dentro da realidade que especificamente pretendeu regular.
É, portanto, necessário que se diga claramente o que se deixa entrever sem nunca ser afirmado, e que por uma vez se assuma uma posição clara sobre o que está aqui em causa.
Apenas para efeitos da redução do período normal de trabalho superior a 40 horas semanais prevista no n.º 1 do art.º 1º da Lei n.º 21/96 é que é admissível recorrer-se ao conceito de trabalho efectivo.
Nesta ordem de ideias, “as interrupções de actividade resultantes de acordos, de normas de instrumentos de regulamentação colectiva ou da Lei ” previstas no n.º 3 do art.º 1.º da mesma Lei e que implicassem a paragem do posto de trabalho ou a substituição do trabalhador foram excluídas do conceito de duração de trabalho efectivo apenas, e tão somente, para se alcançar a redução da duração do trabalho semanal, na forma que esta Lei se propôs especialmente alcançar, sem prejuízo de:
a) A manutenção ou supressão das interrupções de actividade poderem ser definidas por acordo ou convenção colectiva (n.º 4 do art.º 1.º );
b) Aquela norma ser supletiva quanto às convenções colectivas celebradas posteriormente a 1 de Dezembro de 1996 (art.º 7.º).
Para além desta questão, urge também esclarecer que o disposto no art.º 1º da Lei n.º 21/96 tem um período de vigência definido pelas suas alíneas a) e b). A já mencionada redução do período normal de trabalho para quarenta horas semanais teria que ser obrigatoriamente efectuada até 1 de Dezembro de 1997.
Neste sentido também, o conceito de trabalho efectivo, integrado na previsão daquela norma, não deveria ter actualmente qualquer eficácia, e a que teve deveria ter sido limitada aos efeitos enunciados, o que não aconteceu, já que se permitiu o seu uso e abuso, fora do regime para o qual foi especialmente concebido, atravessando horizontalmente outros institutos do Direito do Trabalho.
Não é, assim, lícito que o intérprete possa recorrer a uma Lei especial para encontrar o sentido de uma norma contida numa outra Lei. A definição do tempo de trabalho que é dada pelo n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98 não pode ser integrada pelo n.º 3 do art. 1.º da Lei n.º 21/96, porque a isso se opõem as mais elementares regras de hermenêutica da ordem jurídica portuguesa.
E mesmo admitindo, sem nada conceder, que o n.º 3 do art.º 1.º da Lei n.º 21/96 não é uma norma especial, então forçoso seria concluir que existiria uma derrogação tácita da mesma operada pelo n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98, uma vez que se está em presença de duas normas com igual valor na hierarquia das fontes e idêntica previsão, sendo certo que a norma introduzida pela nova Lei estatui de forma «incompatível com a norma precedente (n.º 2 do art.º 7.º do Código Civil) .
Neste sentido, “a derrogação é a revogação parcial” (6). E a revogação tácita verifica-se” (…) quando, sem haver revogação expressa, as normas de Lei posterior são incompatíveis com as da anterior. Não podem subsistir as duas, sem o direito perder o seu carácter de sistema, livre de contradições internas. Então cede a mais antiga.(7)”
A definição de determinadas interrupções do trabalho como tempo de trabalho foi prosseguida por proposta legislativa do Governo, a pretexto da transposição para o direito interno da Directiva n.º 93/104/CE, do Conselho, de 23 de Novembro, a que o órgão de soberania com competência legislativa originária – Assembleia da República – correspondeu, mas não inteiramente, introduzindo-lhe a alteração consubstanciada na alínea a) do n.º 2.º do art.º 2.º da Lei n.º 73/98.
A necessidade de se proceder a esta definição foi sentida em função da conflitualidade latente entre os parceiros sociais, que ainda hoje se mantém, e apenas por isso se justifica a inclusão de definições de interrupções que tradicionalmente sempre foram entendidas como sendo tempo de trabalho, incluindo as interrupções de trabalho como tal consideradas nas convenções colectivas.
Estou assim convicto que estas definições seriam redundantes, face ao sistema jurídico-laboral vigente, não fora a justificação de se aproveitar a oportunidade da sua reafirmação perante o clima de instabilidade em que os parceiros sociais se encontram mergulhados, relativamente às questões que dizem respeito directa ou indirectamente à duração de trabalho.
Parece-me, pois, incompreensível que o Ministério do Trabalho e da Solidariedade pretenda que o conceito de tempo de trabalho da Lei n.º 73/98, definido por referência a interrupções do trabalho ali estabelecidas, só tenha efeitos para aplicação do que ali é disposto, em nome de uma suposta “sintonia” ou ” falta de sintonia” com uma exposição de motivos subscrita por uma das partes de um processo legislativo – o da Assembleia da República – que é uno e indivisível.
O conceito de tempo de trabalho adoptado na Lei n.º 73/98 não é mais do que aquele que sempre existiu no direito laboral e é desejável que, a ser alterado, o seja sem sacrifício da coerência de todo o sistema jurídico.
Inversamente, não é este conceito que esteve subjacente à aplicação da Lei das 40 horas – nem nunca se pretendeu que o fosse -, mas sim o conceito de tempo de trabalho efectivo.
O que se pretende é que, ao definir-se a forma de articulação entre as duas leis em presença, se diga claramente que está excluída a possibilidade de recurso ao conceito de trabalho efectivo para outros efeitos que não o da redução do período de trabalho efectivo em sectores de actividade ou empresas que, porventura, ainda tenham períodos normais de trabalho superiores a 40 horas por semana, tal como foram definidos no art.º 1.º da Lei n.º 21/96.
A este respeito, verificando-se que subsistem sectores de actividade ou empresas que não tenham alcançado o objectivo consignado naquela norma, é fundamental que o Ministério do Trabalho e da Solidariedade, através da Inspecção-Geral do Trabalho, intervenha de forma exemplar junto das mesmas, não hesitando em exercer, a par de uma acção educativa e orientadora, os poderes coercivos que a Lei expressamente lhe atribui, nos termos do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 327/83, de 8 de Julho, em vigor por força do art.º 57.º do Decreto-Lei n.º 219/93, de 16 de Junho.
Esta última questão, a verificar-se, parece-me essencial, não só pela profunda injustiça que representa para os trabalhadores que se encontrem a prestar a sua actividade sujeitos a uma duração de trabalho superior ao limite imposto por Lei, como pelo impacto negativo que pode ter na igualdade de concorrência entre as empresas.
Face ao exposto,
RECOMENDO
Que o Ministério do Trabalho e da Solidariedade proceda ao esclarecimento das dúvidas sentidas pelos parceiros sociais relativamente à articulação dos conceitos de tempo de trabalho e de tempo de trabalho efectivo, constantes da Lei n.º 73/98, de 10 de Novembro, e da Lei n.º 21/96, de 23 de Julho, respectivamente, assumindo claramente :
1. Que o artigo 1º da Lei n.º 21/96 é uma norma especial e, em consequência;
2. Que o conceito de tempo de trabalho efectivo apenas pode ser utilizado para efeitos de aplicação da Lei referida – redução do período normal de trabalho efectivo superior a 40 horas semanais;
3. Que todas as interrupções de trabalho expressamente referidas no n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 73/98 são consideradas tempo de trabalho para todos os efeitos, salvo o da aplicação da Lei n.º 21/96, face ao sistema jurídico-laboral vigente na ordem jurídica portuguesa.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
__________________________________________________
(1) Nº 1 do artigo 2º da Lei.
(2) Não pode deixar de constatar-sse que, nesta passagem do Parecer, vem o Ministério do Trabalho e da Solidariedade admitir como resultado possível o que anteriormente considerou como alternativa de conteúdo imposível: o recurso ao conceito de tempo de trabalho efectivo, em aplicação da Lei nº 21/96, de 23 de Julho, gerou situações conflituais que poderiam ter como resultado “aumentar os períodos normais de trabalho a pretexto de aplicação de uma lei de redução do tempo de trabalho”
(3) “Direito do Trabalho”, 10ª edição, Almedina, pág. 322 e 323.
(4) Já que esta vocação da lei redutora das condições de trabalho se não assinala em normas de instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho “anteriores à sua entrada em vigor” (cfr. artº 7º da Lei nº 21/96, de 23 de Julho).
(5) Estas interrupções só teriam operacionalidade nas matérias de regulação da duração máxima de trabalho semanal, intervalos de descanso e duração de trabalho nocturno, previstas nos artigos 3º, 4º e 7º da própria Lei nº 73/98, de 10 de Novembro.
(6) Prof. Dr. João de Castro Mendes, in Introdução ao Estudo do Direito, Lições da Faculdade de Direito de Lisboa, 1977, pág.166.
(7) Idem, págs. 164 e 165.