Presidente da Câmara Municipal de Estarreja
Número: 58/A/99
Processo: 299/99
Data: 16.07.1999
Área: A1
Assunto: URBANISMO E OBRAS – OBRAS PARTICULARES – ALTERAÇÃO DO TÍTULO CONSTITUTIVO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL – LICENCIAMENTO MUNICIPAL – ESTABELECIMENTOS DE BEBIDAS – REVISÃO DO PROCESSO
Sequência: Acatada
I – Exposição dos Motivos
1. A sociedade comercial A, B e C, Lda. requereu a minha intervenção na sequência do pedido dirigido à Câmara Municipal de Estarreja para o licenciamento de um estabelecimento de bebidas que explora, em Estarreja, sob a designação “X”.
2. O estabelecimento ocupava, inicialmente, a fracção designada pela letra “A” do prédio acima identificado. Contudo, a fim de cumprir o disposto no regime de licenciamento da instalação de estabelecimentos de restauração e bebidas, pretende a reclamante proceder à ampliação daquele espaço.
3. Para o efeito, a sociedade A, B e C, Lda. tomou de arrendamento uma fracção contígua àquela onde funciona o estabelecimento e submeteu à apreciação da Câmara Municipal de Estarreja o respectivo projecto de arquitectura, prevendo a ampliação da área às duas fracções. De acordo com o projecto, a ligação das fracções autónomas, com vista à exploração em conjunto, estabelece-se mediante a eliminação de uma parede entre as mesmas. A obra, segundo a reclamante, encontra-se dispensada de licenciamento municipal, nos termos do artigo 2º, nº 4, do regime estabelecido pelo Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, com redacção dada pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro (adiante o “RJLMOP”), visto não implicar a alteração da estrutura resistente do edifício.
4. Pertencendo as duas fracções autónomas a proprietários distintos, ambos prestaram autorização para a realização da obra, tal como os demais condóminos das restantes fracções autónomas que constituem o prédio.
5. Queixa-se a reclamante ter a Câmara Municipal de Estarreja, no âmbito da apreciação do processo, exigido a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio para proceder à unificação das duas fracções numa só. Mais considera que a exigência carece de fundamento legal e não se mostra exequível por pertenceram as fracções a diferentes proprietários.
6. A esse órgão autárquico foram solicitados esclarecimentos sobre a questão, tendo V. Exa., através do ofício nº …, com data de … 1999, informado que:
a) foi exigida à reclamante a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que o estabelecimento se localiza;
b) aquela exigência não foi determinada no âmbito do licenciamento do estabelecimento de bebidas mas porque se considerou tratar-se do licenciamento de obras particulares, ao abrigo do RJLMOP;
c) as fracções deixariam de constituir unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública, pelo que se impunha alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal com vista à junção das fracções;
d) esta posição encontraria fundamento no parecer do assessor jurídico, no qual se conclui pela necessidade de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio (cópia deste parecer foi enviada a coberto do ofício acima indicado).
7. Entendo, contudo, não ser procedente a posição assumida pela Câmara Municipal de Estarreja, conforme os motivos adiante elencados.
8. Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que a questão de a alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal ter sido alegadamente determinada no âmbito do procedimento de licenciamento de obras particulares não assume relevância para o presente caso.
9. Estabelece-se no artigo 3º do Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho, que os “processos respeitantes à instalação de estabelecimentos de restauração e de bebidas são organizados pelas câmaras municipais e regulam-se pelo regime jurídico de licenciamento de obras particulares, com as especificidades estabelecidas nos artigos seguintes”. De acordo com o artigo 10.º daquele diploma, a licença de utilização para serviços de restauração ou de bebidas constitui, relativamente a estes estabelecimentos, a licença prevista no artigo 26º do RJLMOP.
No artigo 50º do mesmo diploma determina-se ainda que a licença de utilização para serviços de restauração e de bebidas, emitida na sequência de obras de ampliação, respeita a todo o estabelecimento, incluindo as partes não abrangidas pelas obras.
10. Igualmente, o parecer do assessor jurídico referente à necessidade de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal foi prestado no âmbito do”licenciamento de estabelecimento – Bar”, conforme resulta da informação interna da Câmara Municipal de Estarreja, com data de … 1998.
11. Deste modo, à pretensão da reclamante é aplicável o regime jurídico do licenciamento municipal de obras particulares.
12. Assente este aspecto, a análise da situação exposta pela reclamante incidirá sobre:
i) a necessidade de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, em face da referida obra; e
ii) a legitimidade da Câmara Municipal de Estarreja para impor essa alteração, no âmbito do RJLMOP.
13. Estabelecem-se no Código Civil (artigos 1414º a 1419º) as condições em que um prédio pode ser submetido ao regime da propriedade horizontal e as características que devem possuir as respectivas fracções. Em síntese, as fracções autónomas, para assumirem essa qualidade, deverão reunir as características de independência, separação, isolamento e serem dotadas de uma saída própria para a via pública ou parte comum do prédio.
14. A lei civil permite, todavia, a junção de fracções, expressamente referida no artigo 1422º-A do Cód. Civ. (aditado pelo Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro). Através da junção, duas ou mais fracções perdem a sua individualidade, passando a constituir uma única e distinta unidade, correspondente a nova fracção, a qual respeitará, naturalmente, os requisitos estabelecidos no artigo 1415º. A junção, representando uma modificação ao título constitutivo da propriedade horizontal, deve ser efectuada através de escritura pública (artigo 1419º do Cód. Civ.).
15. Em todo o caso, o pretendido pela reclamante não é a constituição de uma nova unidade, mas tão só a utilização económica e material comum de duas fracções no exercício da exploração de um estabelecimento de bebidas, sem que isso represente ou implique qualquer alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal.
16. ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, relativamente aos requisitos impostos pelo artigo 1415º do Cód. Civ. referem ter sido “… o intuito de evitar que o fraccionamento da prédio em propriedade horizontal se convertesse numa fonte de promiscuidade das pessoas e das famílias e num instrumento de frequentes discórdias entre os utentes das várias fracções que levou o Dec.-Lei nº 40.333 a exigir no art. 4.º, como requisito de constituição da propriedade horizontal, que as fracções fossem suficientemente distintas e isoladas entre si.” (Código Civil Anotado, III, 2ª Edição, página 399, Coimbra Editora).
17. Ora, à luz deste princípio conformador do instituto da propriedade horizontal, não parecem existir obstáculos a que, através de uma intervenção material, se estabeleça ligação, ou outra forma de comunicação, entre fracções autónomas que se encontrem adstritas ao mesmo fim, não podendo, com isso, considerar-se desrespeitada a finalidade legalmente determinada.
18. E, se é evidente que a ligação de fracções pertencentes à mesma pessoa não é contrária ao escopo da Lei, também não existirá, em termos teleológicos, qualquer obstáculo ao estabelecimento de ligação entre fracções, que, embora pertencentes a diferentes condóminos, se encontrem adstritas a um fim unitário.
19. Esta conclusão parece ser confirmada pelo disposto no artigo nº 1422º-A ao não exigir como condição para a junção de fracções a pertença ao mesmo titular. A própria redacção da norma constante do nº 4 aponta neste sentido, uma vez que o poder de alterar o título constitutivo da propriedade horizontal mediante escritura pública é atribuído “aos condóminos que juntaram ou cindiram as fracções”. Deste modo, se a diferentes condóminos é permitido proceder à junção de fracções, nos termos previstos, poderão igualmente estabelecer uma comunicação entre elas, na circunstância de a utilização prosseguir destino conjunto.
20. Conclui-se que a exploração em comum de fracções não determina necessariamente a perda da sua autonomia ou das características individualizadoras, desde que o escopo da Lei, conforme descrito pelos autores supra citados, seja observado.
21. Importa agora apurar se, admitida a ligação de fracções, a mesma determina, no caso presente, a alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal.
22. Conforme decorre das informações transmitidas pela reclamante, não contestadas pela Câmara Municipal de Estarreja, a parede a eliminar não constitui elemento estrutural do prédio nem corresponde, portanto, a parte comum do mesmo (cfr. artigo 1421º, nº1, alínea a) do Cód. Civ.).
23. Por este motivo, não deverá considerar-se que o estabelecimento da ligação entre as fracções pretendida pela reclamante constitua uma modificação susceptível de implicar alteração do título constitutivo da propriedade horizontal.
24. E assim tem entendido a jurisprudência:
“De modo algum, também, se pode considerar que a interligação de fracções ou não ligue com os elementos acautelados no art.º1.421.º citado constitui alteração ou modificação do prédio de tal modo significativo que a sua autorização se tenha de ter por modificativa do título da propriedade horizontal” (Colectânea de Jurisprudência, 1992, Tomo I, Acórdãos da Relação do Porto, Secção Cível, pág. 215).
No mesmo sentido:
“Não há, pois, violação do título constitutivo da propriedade horizontal por parte da R. ao ter procedido à eliminação de paredes divisórias de fracções autónomas de que é proprietária” (Colectânea de Jurisprudência, 1990, Tomo I, Acórdãos da Relação de Lisboa, Secção Cível, pág. 156).
25. É ainda de referir que o parecer jurídico com base no qual a Câmara Municipal de Estarreja fundamenta a necessidade de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, se reporta, como exemplo, a uma situação substancialmente diferente da exposta, uma vez que se refere à abertura de “… uma porta de ligação entre prédios distintos”.
26. Estabelecido que a comunicação das fracções, nos termos pretendidos, não impõe alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal, deverá, em todo o caso, determinar-se se, no âmbito do RJLMOP, estaria esse órgão autárquico habilitado a exigir tal modificação.
27. Em sede de licenciamento de obras particulares, o interesse público prosseguido pelos municípios refere-se a finalidades de ordem urbanística, que compreendem a verificação da conformidade da obra com os requisitos legais e regulamentares em matéria de salubridade, segurança e estética, bem como ao controlo da aplicação dos instrumentos de planeamento.
28. No que respeita a obras sujeitas a licenciamento municipal, compete à câmara, uma vez apresentado o pedido respectivo, verificar a legitimidade do requerente (art. 14º, nº 1, e 16º, nº 1 do RJLMOP e nº 2, ponto 1, alínea b) da Portaria nº 1115/B/94, de 15 de Dezembro). Para este efeito, do requerimento inicial deve constar a indicação da qualidade de proprietário, usufrutuário, locatário, titular do direito de uso e habitação, superficiário ou mandatário, comprovada através de documento adequado, sob pena de rejeição liminar do pedido (art. 16º do RJLMOP).
Contudo, a exigência exposta é de índole meramente formal, pelo que, comprovada a legitimidade abstracta do requerente, a câmara não pode obstar, por esse motivo, à admissão do pedido, nem aferir da validade do título invocado no domínio das relações jurídico-privadas.
29. E se a presente posição poderia suscitar alguma objecção no que concerne a obras sujeitas a licenciamento municipal, nenhuma dúvida se levantará tratando-se de obras dispensadas deste procedimento, como são as realizadas pela reclamante.
30. Na verdade, a comunicação de obras não sujeitas a licenciamento municipal é apenas instruída com os elementos indicados no artigo 3º, nº 3, do RJLMOP, não existindo qualquer norma prevendo a invocação, ou prova, da legitimidade do requerente.
31. As câmaras municipais carecem, assim, de habilitação legal ou regulamentar para aferir da legitimidade do requerente a propósito da realização de obras dispensadas de licenciamento municipal.
32. Finalmente, mesmo que se entenda não ser a questão da alteração do título constitutivo da propriedade horizontal susceptível de se reconduzir à dimensão da legitimidade do requerente, também é difícil descortinar-se em que medida esta exigência se fundamenta na realização do interesse adstrito aos municípios em matéria de licenciamento de obras particulares, o qual, repete-se se relaciona com as exigências de segurança, salubridade, estética e planeamento urbanístico.
33. Com efeito, o título constitutivo da propriedade horizontal opera no âmbito das relações civis entre os vários condóminos e nem sequer as disposições que contenha condicionam a actividade administrativa, porquanto podem os presidentes das câmaras municipais arguir a sua nulidade (art. 1416º, nº 2 do Cód. Civ.), prevendo-se expressamente no artigo 1418º do Cód. Civ. algumas relações concretas de subordinação do título constitutivo aos actos municipais urbanísticos.
II – Conclusões
Em face do exposto e no exercício da atribuição constitucional que me é confiada para prevenção e reparação das injustiças e ilegalidades (artº 23º, nº 1, da CRP),
RECOMENDO
que esse órgão autárquico aprecie e decida a pretensão da reclamante sem fazer depender a respectiva procedência da alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que se localiza o estabelecimento de bebidas.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL