Director-Geral dos Impostos
Rec.º 66/A/99
Proc.:R-1164/93
Data:1999.07.29
Área: A2
Assunto: CONTRIBUIÇÕES E IMPOSTOS – DGCI – ACTO ILÍCITO – DANOS – RESPONSABILIDADE CIVIL – DEVER DE INDEMNIZAR – PRINCÍPIO DA JUSTIÇA MATERIAL
Sequência: Sem Resposta
1. Através do ofício nº …, que agradeço, remeteu-me V. Exa. fotocópia de uma informação da Direcção de Serviços de Justiça Tributária, respeitante ao assunto identificado em epígrafe, na qual exarou o despacho de concordância que determinou o não acatamento da minha Recomendação n.º 70/A/98, datada de 18.11.98.
2. Dois dos argumentos utilizados pela referida Direcção de Serviços de Justiça Tributária para defender que a Administração Fiscal não deve pagar qualquer indemnização à Exma. Senhora… são argumentos de ordem meramente formal, por completo insensíveis a qualquer tipo de considerações de justiça material.
3.Comecemos pelo primeiro. De acordo com a posição já há muito defendida por essa Direcção-Geral, a responsabilidade da Administração por actos de gestão pública deve ser efectivada através dos tribunais administrativos.
4. Verifica-se, no entanto, que, no que a este aspecto do problema diz respeito, não são adiantados quaisquer fundamentos concretos para defesa da tese sustentada, limitando-se a informação em causa a reafirmar a posição anteriormente assumida, considerando que, não havendo factos novos no processo, não existem razões para alterá-la.
5. Assim sendo, será necessário pouco mais do que reiterar aquilo que a este propósito já tinha sido dito na minha Recomendação n.º 70/A/98. A Administração não depende de forma alguma da intervenção dos tribunais administrativos para pagar uma indemnização ao abrigo do disposto no art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967.
6. Com efeito, e em termos estritamente legais, só os tribunais administrativos podem nestes casos obrigar a Administração a indemnizar, o que não quer dizer que a mesma Administração não possa – não deva -, por sua livre e espontânea vontade, tomar a decisão de indemnizar, baseada em imperativos de justiça e/ou de legalidade.
7. Por outro lado, são casos como o presente – em que à ausência de decisão judicial acresce a recusa da Administração no reconhecimento do seu erro e na reparação dos danos causados – que justificam, em larga medida, a existência deste órgão do Estado. De acordo com o disposto na Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), é função do Provedor de Justiça assegurar, por meios informais, a justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos (art. 1.º, n.º 1), cabendo-lhe dirigir aos órgãos competentes, na linha daquilo que se encontra igualmente definido pela Constituição da República Portuguesa (CRP), as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças (art. 3.º da Lei n.º 9/91 e art. 23.º, n.º 1, da CRP).
8. Ainda nos termos do preceituado no referido diploma legal e na CRP, a actividade do Provedor de Justiça é independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis (art. 4.º da Lei n.º 9/91 e art. 23.º, n.º 2, da CRP).
9. Assim, não tendo os tribunais administrativos sido neste caso chamados a intervir, e uma vez que a Administração Fiscal se não prontificou para, por sua iniciativa, reparar a injustiça cometida, estranho seria que o Provedor de Justiça, após haver tomado conhecimento detalhado dos factos, não exercesse as competências que a Constituição e a Lei lhe atribuem.
10. Afigura-se, aliás, conveniente, neste âmbito, relembrar que, nos termos constitucionais, os órgãos e agentes da Administração Pública cooperam com o Provedor de Justiça na realização da sua missão (art. 23.º, n.º 4, da CRP).
11. Foi, pois, na convicção de poder contar com a boa colaboração de V. Ex.ª para a resolução deste caso concreto que entendi formular a Recomendação n.º 70/A/98, de 18 de Novembro, esperando que o seu acatamento permitisse, finalmente, repor a justiça material num caso que se me apresenta de resolução fácil e linear, tão só seja bem-sucedida uma conjugação de esforços – deste órgão do Estado e dessa Direcção-Geral – que permita ultrapassar a ausência de decisão judicial.
12. Permita-me V. Ex.ª que afirme também a minha convicção de que a Administração Fiscal beneficiará de uma crescente credibilização junto dos contribuintes se se predispuser, em situações como esta, a reconhecer culpas e erros onde eles existam, com a vantagem de assim reforçar a sua posição nas situações em que, por não assistir, de todo, razão aos contribuintes, sejam de indeferir fundamentada e firmemente as respectivas pretensões.
13. Passemos agora ao segundo dos argumentos de ordem formal a que fiz referência no ponto 2. Alega a Direcção de Serviços de Justiça Tributária dessa Direcção-Geral que não impende sobre a Administração Fiscal qualquer dever de indemnizar ao abrigo do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, por ter já decorrido o prazo de prescrição do direito de indemnização previsto no art. 2.º, n.º 1, do aludido diploma legal.
14. Concordo com a afirmação relativa ao decurso do prazo de prescrição. O direito de indemnização aqui em causa encontra-se efectivamente prescrito. Tal facto não implica, contudo, por si só, que se conclua que não impende sobre a Administração Fiscal qualquer dever de indemnizar.
15. As considerações expendidas sobre a questão do recurso aos tribunais administrativos revelam-se também a este propósito plenamente válidas.
16. Com efeito, ocorrida a prescrição, não recai sobre a Administração Fiscal um dever legal de indemnizar. Contudo, poder-se-á, ou melhor, dever-se-á mesmo afirmar que continua a existir uma obrigação natural de indemnizar.
17. Quer isto dizer que embora a Administração Fiscal não esteja legalmente obrigada a pagar a indemnização, não cometerá de forma alguma qualquer ilegalidade se o fizer ( nos termos do disposto no art. 302.º do Código Civil, a prescrição é livremente renunciável após o decurso do respectivo prazo, podendo ser tácita e havendo legitimidade para a ela renunciar da parte de quem possa dispor do benefício que a mesma tenha criado), ainda para mais estando em causa uma situação de flagrante injustiça como aquela que ora se encontra em análise.
18. O Provedor de Justiça, como tive já ocasião de referir, deve também intervir naqueles casos em que a actuação dos poderes públicos, ainda que conforme à Lei, se revela materialmente injusta.
19. Ora, o não pagamento de uma indemnização à Sra… constituirá, como foi aliás já dito na minha Recomendação n.º 70/A/98, uma omissão materialmente injusta imputável à Administração Fiscal, ainda que legitimada pela Lei, consubstanciando a questão em apreço um daqueles casos em que, na minha óptica, o valor jurídico justiça deve prevalecer sobre o valor jurídico segurança.
20. Considero, pois, que também quanto a este aspecto da prescrição nada impede que a Administração Fiscal, por sua livre e espontânea vontade, ou no seguimento de uma Recomendação deste órgão do Estado, indemnize a reclamante.
21. Aliás, não se compreende que, sendo o Estado uma pessoa de bem, no seio do qual a Administração Fiscal constitui o “braço” que, através da tributação, arrecada grande parte dos recursos financeiros necessários para a satisfação das suas necessidades, exercendo em simultâneo a primordial função económica e social de redistribuição de riqueza, seja adoptada por essa Direcção-Geral a posição que me foi dada a conhecer através do vosso ofício n.º…
22. Para que a fundamental função de redistribuição acima mencionada possa ser assegurada de forma credível, torna-se necessário que a Administração Fiscal paute a sua actuação, no que concerne às relações com os contribuintes, por princípios de justiça material que, garantindo a prossecução do interesse público, se preocupem igualmente com o respeito pelo direitos e interesses legítimos dos cidadãos.
23. Por fim, resta-me fazer referência ao único dos argumentos de ordem material utilizado por essa Direcção-Geral para fundamentar o não acatamento da minha Recomendação n.º 70/A/98 – a falta de preenchimento dos requisitos de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública previstos no art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48 051.
24. No que se reporta ao prejuízo e ao nexo de causalidade, a sua verificação é de tal modo evidente que não existe sequer necessidade de introduzir qualquer tipo de explicação mais desenvolvida. Ficou já amplamente demonstrado que a reclamante teve prejuízos e que os mesmos se ficaram a dever a uma actuação concreta da Administração Fiscal (o preenchimento destes requisitos não é, aliás, posto sequer em causa por essa Direcção-Geral).
25. Centremo-nos, pois, na questão da ilicitude e da culpa. Defende essa Direcção-Geral que não se encontra demonstrado que a liquidação de Contribuição Industrial em causa tenha consubstanciado um acto ilícito culposamente praticado por um órgão da Administração Fiscal.
26. A argumentação expendida é a de que a ilegalidade não é por si só suficiente para conduzir à qualificação de um acto como ilícito e culposo, exigindo-se, como se diz na Informação n.º … da Direcção de Serviços de Justiça Tributária, “que a ilegalidade consista em violação de norma que vise directamente tutelar direitos subjectivos ou outras posições jurídicas subjectivas do lesado e que a prática do acto tenha resultado da falta de diligência e zelo a que os órgãos se achem vinculados em razão do cargo que exercem”.
27. Ora, parece-me inquestionável que a prática do acto resultou de uma evidente falta de diligência e zelo, imputável aos funcionários que neste caso concreto foram responsáveis pela liquidação ilegal.
28. Isso mesmo transparece de forma clara na fundamentação da sentença emanada do Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa em 10.11.92, onde se reconhece, como já havia referido na minha anterior Recomendação, que a venda efectuada pela Sra… jamais poderia constituir um facto tributário em sede de Contribuição Industrial, por resultar de forma clara que a sua natureza jurídica não seria nunca a de acto de comércio (ainda que isolado), à luz das regras estabelecidas pelo Código Comercial.
29. Não compreendo, por isso, o motivo pelo qual essa Direcção-Geral se limita a defender o não preenchimento deste requisito, sem adiantar fundamentos que sustentem tal posição.
30. Aliás, e ainda no âmbito da culpa (é da culpa que estamos a tratar quando falamos da falta de diligência e de zelo), convirá referir que a esmagadora maioria da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo nesta matéria defende que, provada a ilicitude, entendida em termos objectivos, deve ter-se também como provada a culpa, a não ser que o lesante alegue e prove factos que a descaracterizem.
31. Julgo que neste caso não existirão quaisquer dúvidas no que respeita à existência de uma ilicitude objectiva. Ela resulta do simples facto de se ter verificado um procedimento ilegal da Administração Fiscal, consubstanciado na violação de normas jurídicas de direito objectivo. Logo, caberia a essa mesma Administração Fiscal provar que não houve culpa da sua parte, o que manifestamente não foi feito.
32. Mas, ainda que se considerasse que a ilicitude objectiva não é suficiente para originar a obrigação de indemnizar, creio que tal não constituiria na situação em análise qualquer tipo de obstáculo, pois estou plenamente convicto que houve violação de normas destinadas a tutelar directamente direitos subjectivos ou outras posições jurídicas subjectivas da reclamante.
33. A ilicitude subjectiva resulta aqui do facto das normas violadas (art. 57.º do Código da Contribuição Industrial e artigos do Código Comercial que delimitam o âmbito daquilo que pode ser considerado acto de comércio) estabelecerem, em resultado da sua aplicação conjugada, uma delimitação daqueles actos que, sendo considerados actos isolados de natureza comercial ou industrial, estão por isso sujeitos à incidência do imposto em causa, o que necessariamente implica a protecção de posições jurídicas subjectivas de todos aqueles sujeitos que, como a reclamante, praticam ou praticaram actos isolados que não podem, no entanto, ser considerados de natureza comercial ou industrial.
Em face do que antecede, e por considerar que os fundamentos invocados por essa Direcção-Geral para o não acatamento da minha Recomendação n.º 70/A/98, de 18.11.98, não podem, pelos motivos expostos, ser considerados procedentes, venho por este meio reiterar tudo aquilo que através da mesma havia transmitido a V. Exa., pelo que, uma vez mais,
RECOMENDO
que, em obediência a elementares princípios de justiça material, seja paga à Senhora… uma indemnização destinada a compensá-la pelos prejuízos sofridos no período compreendido entre a data da liquidação e a data em que foi liberada a caução, na sequência da decisão judicial de anulação da dívida resultante da referida liquidação.
Pendente pedido de parecer ao auditor jurídico do Ministério das Finanças.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL