Presidente da Câmara Municipal da Maia
R-718/92
N.º 81/A/99
1999.11.15
Área: A1
Assunto:URBANISMO E OBRAS – ÁGUA – ABASTECIMENTO DOMICILIARIO – SALUBRIDADE – IRRENUNCIABILIDADE DA COMPETÊNCIA DA CÂMARA – REVISÃO DA POSIÇÃO DA CÂMARA.
Sequência: Sem Resposta
I-Exposição de Motivos
1. Foi o processo em epígrafe organizado para apreciação de queixa apresentada, em 1992, sobre situação de insalubridade associada à ausência de abastecimento de água potável a uma edificação destinada a habitação, sita na Rua … em Moreira da Maia.
2. No âmbito da respectiva instrução foram coligidas as seguintes informações:
2.1. Na sequência de vistoria levada a cabo pelos serviços camarários e pelo Centro de Saúde da Maia, em 13 de Março de 1992, foi o proprietário intimado, por mandado de 8 de Abril, a efectuar os trabalhos de instalação da rede domiciliária de água para abastecimento da cozinha, a partir da rede pública existente, tendo-lhe sido concedido um prazo de 30 dias.
Tal ordem não foi acatada.
2.2. Indagado sobre a execução administrativa das obras em causa, ao abrigo do disposto nos artigos 15º e 17º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, pronunciou-se V. Exª pela improcedência da pretensão reclamada.
Em síntese foi contraposto que:
a) V.Exa entende que o assunto se reveste de alguma gravidade;
b) mas, contudo, se trata de uma questão eminentemente privada, dado o litígio que opõe o reclamante ao senhorio;
c) pelo que deverão ser os Tribunais a dirimi-lo;
d) por seu turno, a norma do art.15º, nº1, do Regime do Arrendamento Urbano, não impõe qualquer obrigação ao município de proceder às obras necessárias, apenas lhe concedendo uma faculdade;
e) tem sido orientação municipal não acudir se não aos casos de perigo iminente para a saúde pública, relegando o mais para os meios de resolução judicial de conflitos;
f) orientação essa que justificará, ainda, que não seja instaurado procedimento contra-ordenacional ao senhorio;
g) até porque dado o escasso valor das rendas em prédios de construção antiga seria “claramente violento obrigar o senhorio a fazer obras” (cfr. of.º3134, de 29.2.1996).
II-Apreciação
1. Sem prejuízo de reconhecer que a questão controvertida apresenta aspectos de natureza particular, próprios da relação de arrendamento urbano, não menos certo é existir um relevante interesse público de ordem higio-sanitária no abastecimento domiciliário de água potável.
Em nome deste interesse público não é desejável que a Câmara Municipal se abstenha pura e simplesmente de intervir, aguardando que o senhorio e o inquilino acordem entre si a composição do litígio, do mesmo passo que os interesses de ordem pública na salubridade das edificações perduram lesados.
2. É do conhecimento geral o desajustamento do valor das rendas em face das despesas que, por conta da conservação e beneficiação das edificações, os senhorios têm de suportar, o que, em certas situações, pode levar a concluir pelo abuso de direito em muitas pretensões dos arrendatários1. Contudo, merece reservas a ponderação de tal pressuposto no exercício dos poderes discricionários das câmaras municipais, por implicar desvio do fim com vista ao qual lhes conferiu a Lei certo poder.
Não pode a Câmara Municipal, fundando-se naquela ordem de razões, abster-se de exercer os meios que legalmente lhe assistem para assegurar o regular cumprimento da disposição contida no art. 101º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951.
3. Dir-se-á que é possível ao queixoso proceder, ele mesmo, à ligação, prevalecendo-se de meio que lhe confere o Regime do Arrendamento Urbano, caso o senhorio deixe de o fazer injustificadamente.
Este ponto não pode, todavia, afastar a Câmara Municipal da prossecução das suas atribuições, principalmente em domínio tão sensível como o do abastecimento de água potável – tanto mais que o local se encontra já servido de rede pública.
4. Nem a circunstância de não ter o reclamante requerido a ocupação do arrendado pode fundar, ao invés do que pretende essa Câmara, a inacção municipal.
Isto, porquanto a faculdade de a Câmara Municipal tomar posse administrativa para execução das obras em nada depende da iniciativa do arrendatário, sendo certo poder a Câmara Municipal desencadear oficiosamente tal procedimento. Diferente interpretação não colhe, por não encontrar apoio no elemento literal do preceito compreendido no art. 15º do R.A.U., aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
5. Nada obsta a que as câmaras municipais procedam a uma auto-vinculação, ainda que meramente indicativa, definindo critérios e prioridades de intervenção. Parece razoável, a meu ver, que as câmaras municipais intervenham prioritariamente em edificações que ameaçam a segurança dos moradores e de terceiros.
6. De todo o modo, no quadro das atribuições municipais em matéria de salubridade e segurança das edificações, o que já me parece não poder ser deliberado é, pura e simplesmente, a recusa do exercício de uma competência, como decorre dos esclarecimentos prestados, pelo que não podia deixar de comunicar a V.Exa. o entendimento que me parece mais avisado a este respeito.
7. Ainda neste domínio, incumbe-me chamar a atenção para o exercício da competência de instauração de procedimento contra-ordenacional, sempre que for caso disso; isto é, reunidos os devidos pressupostos, o que deverá ser ponderado na situação analisada.
7.1. A incumbência de fiscalização do cumprimento das disposições do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, conferida às câmaras municipais (sem prejuízo da competência das autoridades policiais), vem acompanhada da competência para o processamento das contra-ordenações respectivas (cfr. art. 161º do citado diploma, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 463/85, de 4 de Novembro). O legislador confiou aos serviços de fiscalização da câmara municipal uma competência genérica quanto à instrução de processo contra-ordenacional por violação às normas contidas no corpo do regulamento.
7.2. MANUEL LOPES ROCHA (et.al.) sustenta serem aplicáveis ao procedimento por contra-ordenação, em caso de lacunas e omissões do regime estabelecido no Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, o regime de processamento das contravenções e transgressões fixado no Decreto-Lei nº 17/91, de 10 de Janeiro, com expressa invocação do seu artigo 3º.2
A afirmação da aplicabilidade, a título subsidiário, da disciplina processual do ilícito contravencional fundamenta-se na ponderação da natureza do processo contravencional.
Ora, nos termos do art. 3º do Decreto-Lei nº 17/91, a autoridade, agente de autoridade, ou funcionário público que, no exercício das suas funções, presencie ou verifique ou, por qualquer meio, tome conhecimento de contravenção ou transgressão de que lhe cumpra conhecer, deverá levantar ou mandar levantar auto de notícia.
Constatada a prática de uma infracção, a competência para processar a contra-ordenação que lhe corresponda, constituirá um poder de exercício vinculado.
Por outras palavras, não creio que possa reconhecer-se um princípio de oportunidade neste domínio, principalmente, sem base constitucional.
7.3. Iniciado o processo, deve a autoridade administrativa proceder à investigação e instrução, e concluída esta, decidir pelo arquivamento do processo ou pela aplicação de coima (art. 54º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro).Ali se ponderam eventuais causas que possam justificar o ilícito de mera ordenação social.
De outro modo, ficará frustrado o interesse público que determinou a fixação de normas de contra-ordenação e que subjaz à consagração das prescrições relativas ao abastecimento de água potável.
III-Conclusões
A competência dos órgãos da Administração tem natureza de ordem pública pelo que é irrenunciável. Assim o revela expressamente o disposto no art. 29º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro.
Não pode o órgão administrativo abdicar do uso dos poderes que legalmente lhe são conferidos para a prossecução das atribuições da pessoa colectiva em que se integra. Na verdade, a irrenunciabilidade, seja por forma expressa, seja por forma tácita, à titularidade ou ao exercício da competência constitui um corolário do princípio da legalidade da competência.
Concluo, pois, pela indevida abstenção da Câmara Municipal da Maia, como ilegal omissão do exercício dos poderes que lhe assistem, seja no plano da reposição da legalidade, ao não encetar qualquer procedimento por forma a assegurar a estrita observância do preceito compreendido no art. 101º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, seja no domínio sancionatório, ao não instaurar procedimento por contra-ordenação, quando verificados indícios da prática de infracção ao citado preceito.
Para mais, tendo sido o senhorio notificado da intimação administrativa de 8.4.1992 com vista a realizar as obras de ligação à rede domiciliária de abastecimento de água, não vejo como possa a autoridade municipal ver-se confrontada com o incumprimento que se arrasta há mais de sete anos.
Em consonância com esta ordem de razões,
RECOMENDO
a V.Exa., no uso da faculdade que me é atribuída pelo art.20, nº 1, alínea a) da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, que se digne rever a posição assumida pela Câmara Municipal da Maia.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel
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(1) cfr.Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.02.1986 (C.J, ano XI, tomo 1,p.104), Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1.6.1993, (C.J., ano de 1995, tomo 3, p. 220), Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.5.1995 (C.J., ano de 1995, tomo 3, p.100).
(2) (Contra-ordenações, Legislação e Doutrina, 1994, p.p. 166).