Presidente da Câmara Municipal de Grândola

Rec. n.º 10/A/2010
Proc.:R-2143/09
Data: 2010-08-12
Área: A 1

ASSUNTO: ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO – DOMÍNIO PÚBLICO – ESTRADA MUNICIPAL – CONDICIONAMENTO – URBANIZAÇÃO – LIVRE CIRCULAÇÃO.

Sequência: Aguarda resposta

1. Dirijo-me a V. Ex.ª, Senhor Presidente, na sequência de queixa que me foi apresentada visando o órgão autárquico superiormente presidido por V. Ex.ª, por tolerar a indevida fixação de obstáculos à circulação na via pública da denominada urbanização da Soltróia, em violação das disposições do Regulamento de Trânsito da Urbanização Soltróia – Núcleo C1, aprovado pela Assembleia Municipal de Grândola, em 17.08.2005, e publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 135, de 12.10.2005.

2. Foi cumprida a prévia audição municipal, por depoimento presencial do Senhor Vereador Paulo do Carmo, e foram ouvidos os representantes da associação de proprietários denominada APROSOL.

3. Na verdade, a fixação, pelos proprietários de lotes, de meios de controlo encontra-se prevista no citado diploma regulamentar estritamente para a utilização de zonas de estacionamento de duração limitada, devidamente demarcadas através de pintura no pavimento e sinalização vertical, nos termos do disposto no artigo do 21.º do regulamento, e que, por sua vez, encontra fundamento no artigo 70.º, n.º 2 e n.º 3, do Código da Estrada.

4. Contudo, todo o tráfego automóvel nas vias públicas da urbanização em causa encontra-se hoje sujeito a condicionamento, sem que as restrições se conformem nem com o Código da Estrada, nem com o Regulamento de Trânsito da Urbanização Soltróia – Núcleo C1.

5. Isto, porque o que se prevê no artigo 21.º do regulamento em análise é tão-só a definição de zonas reservadas e de zonas de estacionamento de duração limitada (n.º 1), condicionando-se a utilização destas últimas ao pagamento de uma tarifa, para o que o n.º 3 do preceito regulamentar prevê a necessidade de controlo, por meio de mecanismo mecânico e ou electrónico, do acesso de veículos às zonas de estacionamento de duração limitada (demarcadas por pintura no pavimento e assinaladas por sinalização vertical). E nem poderia ser de outra forma, pois apenas esta interpretação da norma se mostra compatível com o artigo 70.º do Código da Estrada, que em todo o caso prevaleceria sobre qualquer disposição regulamentar que pretendesse contrariar o citado código.

6. Enquadrar o dispositivo presentemente instalado no entroncamento da estrada nacional N-253-1 com a estrada municipal que serve de acesso à denominada urbanização Soltróia – invocando o artigo 70.º do Código da Estrada – significaria tomar toda a urbanização como um parque ou uma zona de estacionamento, o que não é o caso – nem poderia ser, em face das diversas normas regulamentares que consagram proibições de estacionamento no local. Não posso deixar de tomar por evidente que a “entrada” referida no artigo 21.º, n.º 3, do Regulamento de Trânsito da Urbanização Soltróia – Núcleo C1 não é senão a entrada nas zonas de estacionamento de duração limitada, de cuja utilização a norma trata.

7. Assim sendo – e por se tratar de um impedimento à livre circulação que não encontra fundamento em norma habilitante – haverá de citar-se o artigo 84.º, n.º 1, alínea e), da Constituição, que claramente atribui ao domínio público as estradas, sem prejuízo do regime, das condições de utilização e dos limites legalmente admissíveis, nos termos do n.º 2 do citado preceito constitucional. Por conseguinte, pertencem ao domínio público – e especificamente ao domínio público do Município de Grândola – as infra-estruturas rodoviárias que servem a denominada urbanização de Soltróia. E é o acesso a essas vias (que integraram o domínio público por efeito da recepção das obras de urbanização) que se encontra condicionado por um mecanismo de controlo (vulgo, cancela) accionado pelos condutores de veículos a motor, que assim se vêem obrigados a pagar as tarifas reguladas no regulamento em causa.

8. Acresce que o pagamento presentemente exigido pela concessionária não apresenta correlação com o estacionamento tarifado em zonas demarcadas para o efeito, dependendo exclusivamente do acesso à referida urbanização.

9. Encontrando-se o mecanismo localizado no entroncamento de uma via municipal com a estrada nacional N-253-1, que constitui o único acesso à urbanização de Soltróia, constitui-se de facto uma situação de condicionamento da circulação na via pública: o condutor de qualquer veículo terá de deter a marcha e accionar o dispositivo, repetindo o procedimento quando pretender regressar à estrada nacional. Antes, todavia, deverá proceder ao pagamento da tarifa, fixada em regulamento, devida pela utilização de zona de estacionamento de duração limitada.

10. Se já a configuração da urbanização a assemelha a um condomínio privado, apesar de o não ser, a colocação de uma cancela na única via de acesso àquela área da freguesia do Carvalhal, designadamente à praia contígua à urbanização, reforça de sobremaneira essa percepção, o que mal se compreende.

11. Não desconheço, Senhor Presidente, que a urbanização de Soltróia possa ter sido conjecturada pelos seus promotores com o propósito de se constituir em condomínio privado, o que não se veio a concretizar, nem se vê como pudesse vir a suceder, perante as características das operações de loteamento urbano na nossa ordem jurídica. A circunstância de existir apenas um acesso à estrada nacional próxima é disso prova, a par da existência de uma portaria ocupada por um vigilante. De resto, a única razão para que o dispositivo reclamado tenha por efeito a disciplina do estacionamento é o sucesso da simulação alcançada pela colocação da cancela, perante a qual os condutores de veículos a motor supõem tratar-se de propriedade inteiramente privada.

12. Privados são apenas os lotes edificados ou destinados à edificação e os espaços de utilização colectiva não cedidos ao domínio público.

13. Tudo leva a crer que uma barreira física, que impede a livre circulação de pessoas, constitui usurpação do domínio público, posto que a instalação dessa barreira condiciona, limita ou mesmo restringe o acesso a bens do domínio público – neste caso, uma estrada e o acesso à praia.

14. Opõem os proprietários e moradores da urbanização que o dispositivo instalado apenas constitui um meio de dissuasão à permanência indevida de automóveis no interior do perímetro. Afirmam que a simples circulação no interior da urbanização, sem estacionamento, jamais dá lugar à liquidação de tarifa. Por conseguinte, os vigilantes, seus comissários, dispensam aos automobilistas a livre abertura do dispositivo sempre que a permanência haja sido abreviada sem exigirem comprovativo de pagamento. Alegam que, de outro modo, o afluxo de banhistas haveria de comportar um volume de tráfego incompatível com o número de lugares disponíveis para paragem e estacionamento.

15. Contudo, a instalação de dispositivos que condicionem o trânsito não pode fazer-se no domínio público. Quando até o atravessamento das nossas fronteiras terrestres nacionais é hoje, por regra, incondicionado, mal se compreende que possa a circulação em estradas e caminhos municipais ser condicionada por outra autoridade que não o próprio município, através dos seus órgãos.

16. O que os proprietários e moradores da urbanização têm a fazer é administrar convenientemente as zonas de estacionamento tarifado e participar às autoridades policiais as situações de estacionamento abusivo que justifiquem remover os automóveis em infracção e aplicar as coimas previstas.

17. Parece-me adequado adiantar a possibilidade de poder a Câmara Municipal de Grândola contar com a colaboração das forças policiais; não porque possa o Provedor de Justiça determinar a adopção das medidas coactivas pertinentes, mas porque, a julgar-se procedentes os argumentos que acabo de enunciar, cumprirá restituir a liberdade de circulação, sem prejuízo de restrições admissíveis (no caso concreto, as que se encontram previstas no Código da Estrada e no Decreto-Lei n.º 81/2006, de 20 de Abril).

Assim, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, e em face das motivações precedentemente expostas, RECOMENDO

ao órgão autárquico presidido por V. Ex.ª se digne intimar a associação de proprietários para remover o dispositivo de acesso, executando coercivamente, se necessário for, as providências tidas por convenientes para assegurar o cumprimento da legalidade, solicitando a colaboração da Guarda Nacional Republicana.

Dignar-se-á V.Ex.ª. comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.

Queira aceitar, Senhor Presidente, os meus melhores cumprimentos.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

ALFREDO JOSÉ DE SOUSA