Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão
Rec. n.º 31/A/00
Proc.: R-3640/98
Data:06-04-2000
Área: A 1
ASSUNTO: URBANISMO E HABITAÇÃO – ESTABELECIMENTO COMERCIAL – OBRAS DE AMPLIAÇÃO – LICENCIAMENTO – RESERVA AGRÍCOLA NACIONAL – ACTO ILEGAL – NULIDADE – DEMOLIÇÃO.
Sequência: Não Acatada.
I- Exposição de motivos
1.º- Da reclamação e das conclusões da instrução do processo
Em queixa que me foi apresentada contestava-se o acto de licenciamento municipal(1), titulado pelo alvará de licença de construção n.º …/98, das obras de ampliação de um estabelecimento industrial sito no lugar do Monte do Louro, freguesia do Louro, nesse concelho, por motivo de alegada ocupação de área de terreno integrada na reserva agrícola nacional (RAN), sem ter sido obtida autorização para a utilização não agrícola dos solos.
A fim de habilitar a instrução do processo e em cumprimento de quanto se preceitua no art. 34.º do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, foi questionado V. Exa. sobre os factos expostos e as medidas de reposição da legalidade urbanística adoptadas, caso se mostrasse procedente a reclamação.
Respondeu V. Exa.(2) que a obra reclamada se encontrava licenciada pelo alvará n.º 754, emitido em 29 de Maio de 1998. Trata-se de um edifício destinado a armazém, integrado no conjunto de uma unidade industrial existente, mas fisicamente separado da mesma.
No que respeita aos condicionalismos urbanísticos aplicáveis ao local, refere-se que as edificações existentes, uma pequena parte do parque de estacionamento e uma parte do novo edifício se encontram em espaço classificado como reserva agrícola nacional, localizando-se as restantes construções em espaço de aglomerado urbano de tipo 3.
Pretende a Câmara Municipal fazer valer que a classificação dos espaços operada pela carta de condicionantes anexa ao Plano Director Municipal de Vila Nova de Famalicão(3) e, no caso em apreço, pela portaria que efectua a delimitação da reserva agrícola nacional no concelho(4), não seja relevante para efeitos da apreciação dos pedidos de licenciamento de obras de ampliação das edificações existentes ou de obras de construção que se integrem em conjuntos edificados no prédio em causa e que se destinem à mesma finalidade que o conjunto edificado pré-existente.
Assim, tratando-se de ampliar um estabelecimento industrial ou agrícola, considerar-se-ia que a circunstância de o terreno onde se pretende fazer a ampliação se encontrar na RAN, destinar-se a habitação ou estar afecto a fim incompatível com o destino da nova edificação, em nada obstaria ao licenciamento, já que “os prédios onde existam unidades industriais, comerciais, agrícolas ou agro-pecuárias à data da entrada em vigor do Plano Director Municipal mantêm a afectação própria das actividades neles exercidas”(5). Sob pena de retroactividade, por violação de direitos adquiridos, o plano teria de respeitar tais afectações. E tais afectações, na posição da Câmara Municipal a que V. Exa. preside, englobam, não apenas os edifícios principais, mas ainda as construções ou terrenos que se encontrem numa relação de acessoriedade com aqueles.
No caso em presença, chega-se a afirmar(6) que “o facto do terreno onde se pretende construir se encontrar na Reserva Agrícola Nacional não impede o licenciamento, por se tratar de solo com vocação para a construção, já desafectado da agricultura”.
De forma diversa se veio a pronunciar sobre o problema a Comissão Regional de Reserva Agrícola de Entre Douro e Minho. Sustenta esta entidade que a edificabilidade em zona identificada parte da RAN, só será viável após emitido parecer favorável por parte das comissões da RAN, qualquer que seja o uso efectivo do solo em questão.
2.º – Do regime jurídico aplicável
A motivação legalmente admissível dos actos de indeferimento dos pedidos de licenciamento de obras encontra-se fixada no art. 63.º do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro (RJLMOP). Os actos de indeferimento baseiam-se nos fundamentos contidos nas alíneas a) a g), do n.º 1, do art. 63.º, daquele regime, e podem fundar-se ainda nos motivos enunciados nas alíneas a) e b), do n.º 2, do mesmo artigo.
Esta solução não diverge da que já é tradicional no direito do urbanismo português. Já no domínio do anterior regime de licenciamento municipal de obras particulares(7), o poder de indeferimento assumia natureza vinculada.
Entre os fundamentos do indeferimento dos pedidos de viabilidade de construção e de licenciamento de obras particulares, contam-se a desconformidade da pretensão edificatória com instrumento de planeamento territorial válido, nos termos da lei, e o desrespeito por servidões administrativas e restrições de utilidade pública (art. 63.º, n.º 1, alíneas a), e c) do RJLMOP), sendo nulos os actos camarários que defiram qualquer pedido de licenciamento que se mostre desconforme com disposição planificatória (art. 52.º, n.º 2, alínea a), do mesmo diploma), e anuláveis os demais actos de licenciamento ilegais, se a lei não dispuser expressamente quanto à sua nulidade (art. 135.º do Código do Procedimento Administrativo).
Entre as restrições por utilidade pública que podem obstar ao aproveitamento urbanístico dos solos, conta-se o regime da Reserva Agrícola Nacional. Pretende-se com este instituto defender e proteger as áreas de maior aptidão agrícola e garantir a sua afectação à agricultura, por forma a contribuir para o pleno desenvolvimento da agricultura portuguesa e para o correcto ordenamento do território(8). Nos termos do disposto no art. 8.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 196/89, os solos da RAN estão exclusivamente afectos à agricultura, sendo proibidas todas as acções que diminuam ou destruam as suas potencialidades agrícolas, nomeadamente, obras hidráulicas, vias de comunicação e acessos, construção de edifícios, aterros e escavações.
É certo que a mencionada proibição não possui carácter absoluto. As comissões regionais de reserva agrícola podem autorizar, nos termos do disposto no art. 9.º, n.º 1, do mencionado diploma, a utilização não agrícola de solos integrados na RAN, nos casos tipificados no n.º 2 daquele artigo. A não obtenção de parecer prévio favorável ou o desrespeito de parecer vinculativo, acarretam a nulidade de todos os actos administrativos relativos a utilizações não agrícolas de solos integrados na RAN (art. 34.º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho).
Também por aplicação da regra da nulidade dos actos camarários que defiram qualquer pedido de licenciamento que se mostre desconforme com disposição planificatória (art. 52.º, nº 2, alínea a), do RJLMOP), sempre alcançaria a mesma conclusão. Com efeito, a entrada em vigor de plano municipal de ordenamento do território faz caducar a carta da RAN relativa à área em causa (art. 32.º, n.º 6, do Decreto-Lei 196/89, de 14 de Junho), passando a delimitação da restrição a conter-se no plano regional ou municipal de ordenamento do território.
Não se pode inferir de tal disposição que os municípios sejam livres de proceder às alterações que entendam relativamente à delimitação da RAN em vigor, já que a ratificação dos planos municipais de ordenamento do território deve ser instruída com parecer da comissão regional da reserva agrícola relativo a tais alterações (art. 32.º, n.º 4, do diploma citado). Radica esta necessidade na diferente natureza dos interesses a prosseguir. As regras de uso, ocupação e transformação dos solos contidas em instrumento de planeamento territorial de carácter municipal apenas devem prevalecer sobre o aproveitamento agrícola dos solos a tanto destinados em casos justificados e mediante parecer dos órgãos competentes.
Neste sentido se pronunciou recentemente o Tribunal Constitucional(9) ao considerar que determinadas normas legais que “contêm um regime jurídico específico para certo tipo ou categoria de solos”, têm que ser observadas no momento da elaboração dos planos, funcionando, assim, como limites à discricionariedade de planeamento. Entre elas, contam-se as respeitantes ao regime jurídico da RAN, da REN, da Rede Nacional de Áreas Protegidas, da faixa costeira, das áreas florestais, das servidões administrativas e restrições por utilidade pública.
Não obstante, importa realçar, para efeitos da análise subsequente, que as câmaras municipais podem, no momento da elaboração dos instrumentos municipais de planeamento territorial, alterar a delimitação da RAN em vigor, se tal se justificar para o correcto ordenamento do território.
3.º – Da validade do acto de licenciamento municipal (Alvará de licença de construção n.º …/98)
Chegados a este ponto, cumpre questionar a possibilidade de ser deferido o pedido de licenciamento das obras de construção do armazém reclamado. A resposta tem de ser negativa: o quadro jurídico acima descrito não o permitia.
Com efeito, a zona onde se localiza a construção reclamada situa-se, em parte, na Reserva Agrícola Nacional, definida na carta de condicionantes anexa ao Plano Director Municipal de Vila Nova de Famalicão.
Deve ter-se presente que “os solos da RAN devem ser exclusivamente afectos à agricultura, sendo proibidas todas as acções que diminuam ou destruam as suas potencialidades agrícolas”(10). Isto, a menos que à data da entrada em vigor da portaria que delimita as áreas a incluir na RAN, tais acções já se encontrem habilitadas por título jurídico bastante ou venham a ser autorizadas mediante emissão de parecer prévio favorável da comissão da Reserva Agrícola territorialmente competente e as mesmas se enquadrem numa das categorias de situações em que a lei permite a utilização não agrícola de solos da RAN(11).
No caso vertente, a construção do armazém para ampliação do estabelecimento industrial é nitidamente proibida pelas disposições legais citadas, nem sequer se encontrando contemplada a possibilidade de afectação não agrícola dos solos para instalação ou ampliação de unidades industriais, ou de outra natureza.
Assim, encontrava-se a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão obrigada a indeferir o pedido de licenciamento por a pretensão se mostrar desconforme com a classificação dos espaços operada pelo Plano Director Municipal de Vila Nova de Famalicão e com restrição de utilidade pública (art. 63.º, n.º 1, alíneas a), e c) do RJLMOP), sendo nulo o acto camarário em questão, quer por via do Regime Jurídico do Licenciamento Municipal de Obras Particulares, quer com base no regime legal em matéria de RAN, pois, como se viu, a lei sanciona com a nulidade os actos camarários que defiram qualquer pedido de licenciamento que se mostre desconforme com disposição planificatória (art. 52.º, n.º 2, alínea a), do RJLMOP), bem como os actos administrativos relativos a solos da RAN praticados sem que seja obtido parecer prévio favorável (art. 34.º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho).
Como se vê, o regime de classificação na Reserva Agrícola Nacional não permite o licenciamento de construções nas áreas abrangidas, nos termos acima expostos, sob pena de nulidade do acto de licenciamento.
Aliás, o licenciamento municipal que viole culposamente o disposto em instrumentos de ordenamento do território ou de planeamento urbanístico válidos e eficazes, pode constituir ilegalidade determinante da perda de mandato ou da dissolução do órgão autárquico(12).
Não procedem, para infirmar as conclusões expostas, as razões aduzidas por essa Câmara Municipal para justificar, na presente situação, e noutras de natureza análoga, o licenciamento de construções em solos da RAN em prédios onde existam unidades industriais, comerciais, agrícolas ou agro-pecuárias, à data da entrada em vigor do Plano Director Municipal, os quais mantêm, segundo a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, a afectação própria das actividades neles exercidas, englobando tais afectações, não apenas os edifícios principais, mas ainda, as construções ou terrenos que estejam numa relação de acessoriedade com aqueles.
Nada permite que se extraiam tais conclusões. A delimitação da RAN opera uma demarcação física dos espaços, não sendo possível infringir as regras respectivas por motivo da prévia afectação, juridicamente tutelada, dos prédios que venham a ficar incluídos na delimitação. Como acima referi, para salvaguarda destas situações podem as câmaras municipais, no momento da elaboração dos instrumentos municipais de planeamento territorial, alterar a delimitação da RAN em vigor, se tal se justificar para o correcto ordenamento do território.
Poderá admitir-se, mas apenas em tese geral, que o plano tem de respeitar a afectação própria das actividades que são exercidas em solo que vem a ser integrado na RAN, sob pena de retroactividade das respectivas disposições e por violação de direitos adquiridos.
Não procede a invocação, no caso presente, do princípio da tutela dos direitos adquiridos ou da confiança legítima que fundamenta a excepção à proibição de construir em zona da Reserva Agrícola Nacional, por motivo de posse de título bastante emitido em momento anterior à delimitação da zona de reserva, porquanto não dispunha o dono da obra de habilitação válida e eficaz à data do licenciamento para a construção que pretendia levar a efeito.
A viabilidade económica dos empreendimentos ou a prévia afectação do solo a fim diverso do agrícola, em infracção às regras legais em vigor não pode constituir motivo dirimente da aplicação de regime planificatório superveniente. Não existem quaisquer direitos adquiridos em matéria de aproveitamento urbanístico de solos por motivo de meras afectações de facto do solo ou por razões atinentes à afectação principal do imóvel. Tratando-se de solos da RAN, há que aplicar o regime respectivo.
A esta situação reage o ordenamento jurídico com o poder conferido aos municípios de demolição da construção ilegal, quer por isso mesmo (art. 58.º, n.º 1, do RJLMOP), quer por violar o regime da reserva agrícola nacional (art. 34.º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho). Poder esse que se revela, vinculado, no caso presente, já por ser impossível a legalização da construção, já por não admitir a lei a utilização não agrícola de solos para armazenagem de produtos destinados à actividade industrial(13).
Impondo o princípio da legalidade que os competentes órgãos da Administração Pública exerçam todos os poderes que lhe são conferidos para repor a legalidade quando infringida, concluo que a demolição da parte da construção que se situa na Reserva Agrícola Nacional, é a única forma de reposição da legalidade urbanística.
De acordo com o exposto, RECOMENDO:
a) Que seja declarado nulo o despacho do Senhor Vereador do pelouro que licenciou, em 23/02/1998, as obras de construção do armazém, sito no lugar de Monte de Louro, freguesia de Louro, por motivo de infracção ao regime de planeamento territorial em vigor e da reserva agrícola nacional (art. 52.º, n.º 2, alínea a), do RJLMOP, e art. 34.º do Decreto-Lei nº 196/89, de 14 de Junho);
b) Que seja exercido por V. Exa. o poder que lhe é conferido pelo disposto no art. 58.º, n.º 1, do RJLMOP, e no art. 68.º, n.º 2, alínea m), da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, ordenando a demolição parcial da edificação identificada e adoptando, para o efeito, o procedimento regulado pelo art. 6.º do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL
____________________________
(1) Pedido de licenciamento deferido por despacho do vereador do pelouro, proferido em 23/02/1998.
(2) Ofício de 29 de Dezembro de 1998.
(3) Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/94, de 14/7/1994, publicado no Diário da República, I série B, n.º 215, de 16/9/1994.
(4) Portaria n.º 435-A/91, de 27 de Maio.
(5) Pareceres proferidos nos processos 4780/97 e 3901/97.
(6) Informação de 23/02/98.
(7) Decreto-Lei n.º 166/70, de 15 de Abril.
(8) Art. 1.º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho.
(9) Acórdão n.º 517/99 do Tribunal Constitucional – Processo n.º 61/95, Diário da República, 2.ª série, n.º 263, de 11/11/1999.
(10) Art. 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho.
(11) Art. 9.º, n.ºs 1 e 2, do diploma citado.
(12) Art.ºs 8.º, n.º 1, alínea d), e 9.º, n.º 1, alínea c), do regime jurídico da tutela administrativa, aprovado pela Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto.
(13) Art. 167.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de Agosto de 1951, e art. 9.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho.