Presidente da Federação Portuguesa de Andebol

Rec. n.º 34/A/00
Proc.: R-3366-97
Data:2000.04.07
Área: A 3

Assunto: DESPORTO. FEDERAÇÕES DESPORTIVAS. COMPETÊNCIA DISCIPLINAR.

Sequência: Não acatada

1. O presente processo foi aberto na sequência de uma reclamação apresentada por um antigo dirigente da Associação de Andebol de Lisboa, na qual se contestava, entre outros aspectos, o procedimento subjacente à decisão de aplicação da sanção disciplinar objecto da deliberação em epígrafe.
Solicitados esclarecimentos a essa Federação, comunicou-se que a deliberação em causa limitou-se a aderir a uma proposta apresentada pela Direcção da Federação, no sentido de o reclamante ser impedido de aceder ao exercício de qualquer cargo na modalidade. Não era, no entanto, visada a aplicação de qualquer sanção ao reclamante, por essa competência caber ao Conselho Disciplinar da Federação, que veio a punir o reclamante no âmbito do processo n.º 11/95/96.

2. Esta posição suscita sérias reservas, atendendo ao seguinte:
A proposta aprovada, constante de anexo à acta da reunião, apresenta o seguinte texto:
Efectuado o balanço e avaliação da situação deixada na A.A. de Lisboa pela anterior Direcção e verificada a existência de inúmeras irregularidades que configuram uma gestão gravosa, reveladora de elevados prejuízos para a modalidade, delibera a A.G. da F.P.A.:
que seja responsabilizado pela situação encontrada o anterior Presidente da Associação de Lx – Sr. …;
que seja apurada a responsabilidade civil ou criminal da Direcção da A.A.L.;
inibir, com efeitos imediatos, o anterior Presidente da A.A.L. de se candidatar ou assumir qualquer cargo na modalidade, em clubes, Associações ou Federação;
que o Conselho Superior de Justiça se pronuncie sobre o apuramento de responsabilidades que sejam detectadas, incluindo as de âmbito criminal.

3. Importa esclarecer preliminarmente que a deliberação, enquanto modo de expressão do órgão colectivo, vincula plenamente a Assembleia, independentemente da autoria ou teor da proposta considerada, cuja relevância se esgota uma vez aprovada.
De resto, a adesão, por meio de votação, da Assembleia constitui o modo como o órgão faz seu o sentido da proposta, que passa a valer como posição assumida pela Assembleia enquanto tal.

4. Posto isto, importa interpretar o sentido da deliberação, face à redacção apresentada pela mesma.
A esse respeito, ressalta antes de mais o facto de o texto da deliberação não conter qualquer indício de que a decisão revestisse carácter preparatório ou não definitivo.
Pelo contrário, o ponto 3 refere explicitamente que a sanção seria aplicada imediatamente, apenas se remetendo para o Conselho Superior de Justiça a apreciação das responsabilidades que viessem a ser detectadas.
De resto, apesar dos repetidos contactos mantidos com essa Federação a este respeito, não há notícia de a proposta ter sido posteriormente encaminhada para o órgão decisório, como seria normal num procedimento em curso.
Refira-se, a propósito, que o processo disciplinar n.º 11/95/96, que o ofício em referência parece sugerir como tendo dado sequência à deliberação da Assembleia, reporta-se a factos perfeitamente distintos dos aqui considerados, não tendo o Conselho Disciplinar, no âmbito do referido processo, emitido qualquer apreciação sobre os motivos que justificaram a aplicação da inibição.
Impõe-se, assim, a conclusão que a Assembleia pretendeu aplicar imediatamente ao reclamante a sanção de inibição, revestindo a deliberação em causa, na prática, carácter executório.

5. Nesse contexto, não poderão deixar de ser apontados à deliberação alguns vícios, que passo a enunciar.
É pacífico que os actos e deliberações relativos a prerrogativas de natureza pública conferidas às associações em função da utilidade pública que lhes é reconhecida pela Administração, revestem a natureza de actos administrativos, sendo-lhes aplicável o respectivo regime jurídico.
De entre as prerrogativas de carácter público atribuídas às federações desportivas, avulta a que se reporta ao poder disciplinar, que pode ser exercido sobre os elementos pertencentes a qualquer estrutura da modalidade, nos termos e com a amplitude que a lei prevê.
Daqui resulta que a actuação da Federação neste domínio, da aplicação de sanções disciplinares no âmbito do serviço público por si prosseguido, haverá de observar não apenas as normas jurídicas aplicáveis em concreto, mas também os princípios fundamentais por que se rege a actividade e o procedimento administrativo em geral.
E, nesse contexto, dois vícios poderão, desde logo, ser apontados: por um lado, a falta de competência quer da Federação quer da Assembleia para deliberar sobre matéria disciplinar; por outro lado, a ausência de qualquer processo disciplinar que assegurasse ao visado os meios de defesa relativamente às acusações que sobre si impendiam.

6. Assim, quanto ao primeiro aspecto, o regime jurídico das federações desportivas, contido no Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril, atribui às federações competência disciplinar, restringida ao âmbito desportivo, a exercer-se nos termos do respectivo regime disciplinar.
Desse modo, às federações desportivas apenas é atribuída competência disciplinar externa, isto é, exercida enquanto entidades reguladoras da modalidade, quando em causa estejam infracções de carácter disciplinar, maxime, as que estejam previstas nos respectivos regulamentos disciplinares.
Os factos de que o reclamante vinha acusado, e a propósito dos quais se originou a deliberação em apreço, prendiam-se, como se viu, com a gestão danosa que o reclamante adoptou enquanto dirigente da Associação de Andebol de Lisboa.
A infracção em causa não reveste carácter desportivo, não sendo naturalmente objecto de qualquer previsão no Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Andebol vigente à data.
Assim sendo, a sua apreciação por um órgão da Federação carece de norma legal habilitante.
Sendo uma das vertentes do princípio da legalidade, previsto no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo, que a actuação administrativa apenas se pode exercer dentro dos limites dos poderes que lhe estejam atribuídos por lei, a ausência de norma habilitante redunda naturalmente, no caso em apreço, em falta de competência da assembleia para se pronunciar sobre a matéria em causa.
A tal vício faz a lei corresponder a nulidade do acto, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 133.º, n.º 2, alínea b) e 2.º, n.º 3 do Código do Procedimento Administrativo.
Acresce que, ainda que a matéria em causa fosse do âmbito disciplinar, nunca seria a Assembleia o órgão indicado para exercer o poder disciplinar, mas sim o Conselho Disciplinar.

7. Mas a deliberação é ainda inválida por, determinando a aplicação de sanção a um particular, não ter permitido a sua defesa, designadamente por meio de processo disciplinar prévio.
Assim, decorre dos princípios inerentes ao Estado de Direito Democrático um conjunto de garantias de defesa atribuídas aos sujeitos que sejam acusados da prática de qualquer acto ilícito.
Basicamente, reconhece-se ao interessado o direito de, antecedendo qualquer decisão ou punição, ser previamente informado do teor exacto da acusação que sobre si recaia, conferindo-se-lhe a possibilidade de ser ouvido e de apresentar os elementos que considere pertinentes para sua defesa.
Ainda que a questão se coloque com maior pertinência no âmbito dos processos de natureza penal, o princípio vigorará para todos os outros de natureza sancionatória, qualquer que seja o seu âmbito.
Estes princípios tiveram pleno acolhimento no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa que, sob a epígrafe Garantias do processo criminal, enumera os diversos direitos atribuídos aos arguidos em processo criminal, alargando a sua abrangência a todos os outros aos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios.
Refira-se que o próprio regime jurídico das federações desportivas, contido no Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril, consagra este princípio quando, a propósito dos processos disciplinares instaurados no âmbito da actividade desportiva, estabelece um conjunto de garantias em favor dos arguidos em processos disciplinares. Nesse sentido, aliás, o artigo 77.º, n.º 2 dos Estatutos da Federação de Andebol vigentes à data da deliberação previam também a audição dos arguidos antecedendo as deliberações em processo disciplinar.
Ora, nenhuma destas garantias foi facultada ao reclamante no processo em apreço, tendo-se assistido a uma acusação sumária, em termos que não podem deixar de se considerar contrários à lei.
O texto da deliberação não é claro sobre os factos de que o reclamante é acusado, referindo apenas a existência, de modo vago e genérico, de irregularidades várias no funcionamento da Associação, posteriormente imputadas ao reclamante.
O reclamante não foi ouvido em nenhuma fase do processo, nem lhe foi dada possibilidade de recorrer da decisão adoptada.
De resto, o reclamante apenas teve conhecimento da apreciação da questão por parte da Assembleia após a adopção da deliberação.
Nessa medida, e ainda que tivesse sido aplicada pela entidade e pelo órgão competente, a sanção estaria sempre viciada por falta de um elemento essencial, o processo disciplinar.
Tal vício, pela gravidade que apresenta, afecta irremediavelmente a validade do acto, que assim será assim nulo, nos termos do artigo 133.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo.

8. A inibição foi decretada em 1996, supondo-se ter tido diminuta relevância prática, uma vez que idêntica sanção foi aplicada ao reclamante em Julho de 1996 no âmbito do já acima referido processo disciplinar n.º 11/95/96, embora, como atrás referi, por factos diversos dos aqui em apreço.
Importa, no entanto, rectificar as irregularidades detectadas, repondo-se, na medida do possível, a legalidade no procedimento aqui em apreço.
Afigura-se, nesse contexto, que deverá ser declarada a nulidade da deliberação, dando-se sem efeito a sanção aplicada e deixando de se imputar ao reclamante quaisquer responsabilidades por factos que consubstanciem a prática de determinado ilícito, sem que antes não seja realizado o competente inquérito, por parte do órgão para tanto competente, no qual sejam concedidos ao reclamante os direitos que dispõe enquanto arguido.

Atento o exposto, RECOMENDO:

a V.Ex.ª que promova a declaração de nulidade da deliberação em causa, bem como que, em casos idênticos que se possam vir a suscitar, não tornem a ser cometidas irregularidades com a natureza das que foram apuradas neste caso.
Do seguimento dado à presente recomendação, agradeço que me seja dado conhecimento.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL