Presidente do Conselho da Caixa Geral de Aposentações
Número: 8/A/95
Processo: R.1625/89
Data: 16.01.1995
Área: A1
Assunto: SEGURANÇA SOCIAL – PENSÃO DE APOSENTAÇÃO – CONTAGEM DE TEMPO – ASSALARIADO EVENTUAL – DIREITO A INSCRIÇÃO – MATERIALIDADE SUBJACENTE ÀS FUNÇÕES EXERCIDAS
Sequência: Não acatada
I – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
– Da reclamação exposta –
1. O Sr. … , apresentou queixa ao Provedor de Justiça contra alegado prejuízo por lhe não ser contado, para efeitos de cálculo da aposentação, o tempo de serviço que prestou entre 01.09.1965 e 06.10.1970, como assalariado eventual, por conta do município do Funchal.
2. De acordo com o Reclamante, tal pedido fora indeferido pela Caixa Geral de Aposentações, porquanto no aludido período teria sido remunerado por verbas não destinadas a pessoal; circunstância em relação à qual foi alheio, tendo, de resto, trabalhado em completa igualdade de circunstâncias com os demais que vieram a beneficiar da contagem.
– Dos factos e sua interpretação –
3. Instruído o processo à margem epigrafado, conclui-se que o R. trabalhou como servente de obras, a tempo inteiro, por conta do município do Funchal, entre 01.09.1965 e 06.10.1970, altura em que foi chamado a cumprir o serviço militar obrigatório, em território ultramarino.
4. Durante tal período, esteve submetido aos poderes de direcção e disciplina dos serviços camarários, como reconhece o município do Funchal.
5. Retira-se da análise do tempo de serviço prestado (105 dias, em 1965; 312 dias, em 1966; 315 dias, em 1967; 312 dias, em 1968; 309 dias, em 1969; 230 dias, em 1970) que a ocupação do R. não foi puramente ocasional ou simplesmente intercalada, antes resultando uma continuidade que em tudo se assemelha aos indícios da relação individual de trabalho.
6. Não logrou contudo, possuir vinculação ao quadro de pessoal do município, em termos que o habilitassem a merecer qualificação como funcionário ou agente administrativo.
7. Sempre foi retribuído ao abrigo de rubrica orçamental não destinada “expressis verbis” à cobertura de despesas de pessoal, mas refira-se que dentro da rubrica pela qual venceu (“Obras – Despesas com o Material – Conservação e Aproveitamento do Material”), tão pouco cabia artigo ou alínea específica e nominalmente adstritos a essa finalidade.
8. De acordo com os esclarecimentos prestados pela C.M. do Funchal (Ofº 3960, de 21.06.1990), “os trabalhadores além-quadro eram pagos por verbas orçamentadas em Artigos relacionados com ‘Despesas com o Material – Conservação e Aproveitamento do Material’ “ou em artigos relacionados com o “pagamento de outros serviços e encargos; despesas com serviços prestados por pessoal estranho ao quadro do serviço”, sendo certo que esta subdistinção permite revelar, na sua subtileza, uma diferença substancial.
9. E isto ocorria sem que qualquer critério fosse tomado por base, pois segundo os esclarecimentos prestados pela C.M. do Funchal era aleatório o vencimento de um trabalhador além-quadro por força de “despesas de conservação” ou por conta de “pagamento de serviços prestados por pessoal estranho ao quadro”.
10. Regressado do cumprimento das suas obrigações militares, ingressou o R. em instituição bancária, jamais reavendo título que lhe permitisse ver reconhecido o direito a inscrição na Caixa Geral de Aposentações.
11. Em 1988, ao pretender que lhe fosse contado, para efeitos de cálculo de aposentação, o tempo de serviço prestado por conta do município do Funchal, bem como o tempo do serviço militar, a C.G.A., por certidão de 10.05.1988, considerou-lhe sete anos, dez meses e cinco dias de serviço efectivo e um ano, nove meses e cinco dias de acréscimo, no total de nove anos, sete meses e dez dias, sujeitando a sua relevância porém, ao pagamento das quotas devidas e à condição de o R. vir a adquirir a qualidade de subscritor.
12. Através de ofício de 12.08.1988, a C.G.A. procurou inteirar-se da situação orçamental a que se reportavam os salários pagos ao R. pelo referido município.
13. Ao que respondeu a Autarquia, em 06.09.1988, ter o R. sido abonado por verbas não destinadas a pessoal.
14. Em 06.11.1989 – após nova diligência promovida pelo R. – insistiu a C.G.A. junto da C.M. do Funchal, com vista a determinar se, por hipótese, existiria dentro da rubrica principal por conta da qual fora o R. abonado, algum descritor relativo ao pagamento de salários:
“poderia acontecer (…) que um determinado servidor, sendo embora abonado por uma rubrica genericamente destinada a despesas com o material, esta incluisse uma sub-rubrica que previsse despesas, por exemplo, com pessoal assalariado”.
15. Nestas circunstâncias, não seria de excluir o direito à inscrição do R. e, após pagamento das quotas respectivas, dar satisfação à sua pretensão.
16. Compulsadas as folhas orçamentais referentes ao período em questão, veio a ser infirmada pela C.G.A. a eventualidade admitida e, consequentemente, confirmado o despacho de indeferimento da pretensão do R., informado por ofício de 31.01.1990.
17. A mesma posição é naturalmente vertida nos esclarecimentos prestados à Provedoria de Justiça, no decurso da instrução, visto não terem sofrido alteração os pressupostos de facto e de direito que fundaram a primitiva decisão.
– Da interpretação do direito aplicável –
18. A pretensão do Senhor … , com o alcance de ver contado o tempo de serviço aludido, para efeitos de cálculo de pensão a que terá direito, sob simples condição de pagamento de quotas retrospectivas, foi indeferida pela C.G.A. em virtude de não ter o R. adquirido qualidade de subscritor, de acordo com a legislação que vigorava no período ao qual se reporta a situação.
19. Com efeito, o art. 1º, do Decreto-Lei nº 36610, de 24 de Novembro de 1947 – predecessor na ordem jurídica do actual Estatuto da Aposentação – exigia, independentemente da forma do provimento e da natureza da prestação dos seus serviços que o vencimento ou salário auferido peio funcionário ou servidor civil partisse de “verbas inscritas expressamente para pessoal no Orçamento Geral do Estado ou nos dos corpos administrativos ou serviços e organismos autónomos”.
20. Podem e devem, no entanto, ser retirados outros elementos da descrição e avaliação dos factos, cuja contribuição para a correcta interpretação do direito é, a meu ver, indispensável, na medida em que tangem valores centrais do sistema, assentando em que a hermenêutica jurídica não fica cingida a uma operação subsuntiva imediata.
21. Ora, durante o tempo em que prestou trabalho no município do Funchal – e depois disso – jamais o R., por conduta sua ou por omissão do cumprimento de um elementar dever de cuidado, deu lugar à situação pela qual se viu arredado dos pressupostos cuja verificação entende necessária a C.G.A., por força do art. 1º, do Decreto-Lei nº 36610, de 24 de Novembro de 1947, para satisfação da pretensão do R., qual seja a de ver contado o tempo de serviço prestado ao município, no cálculo da pensão.
22. O R. manteve com o município do Funchal uma relação jurídica de trabalho, sufragada na continuidade da prestação de meios (e não de um serviço ou outro resultado), na plena ocupação (indiciadora de subordinação económica) e na submissão à direcção e disciplina dos serviços da Câmara Municipal (art. 1152º, do Código Civil).
23. A precariedade do título desta mesma relação, em nada afecta aquela qualidade, o que permite reconhecer o R. como servidor dos corpos administrativos, para efeitos da citada disposição do Decreto-Lei nº 36610, de 24.11.1947.
24. Trata-se de expressão que de há muito vem sendo utilizada pelo legislador “por forma a abranger os funcionários (em sentido rigoroso) e os agentes não funcionários, mas com exclusão dos chamados agentes políticos” (SIMÕES DE OLIVEIRA, Estatuto da Aposentação – anotado e comentado, Ed. Atlândida, Coimbra, 1973, p. 14).
25. A remuneração dos trabalhadores em idênticas circunstâncias (assalariados) era paga ora por verbas expressa e nominalmente destinadas ao pessoal, ora por outras, à margem de um qualquer critério, cuja razoabilidade se possa sequer apreciar.
26. O art. 1º, do sempre citado decreto-lei, por forma a que o direito a inscrição fosse reconhecido a um servidor civil, bastava-se com o preenchimento do requisito enunciado – o de receber “salário pago por força de verbas inscritas expressamente para pessoal no Orçamento Geral do Estado ou nos dos corpos administrativos ou serviços e organismos autónomos”, irrelevando quer a forma do seu provimento, quer a natureza da prestação dos seus serviços.
27. Tal como é hoje admitido, para efeitos do disposto no art. 1º, do Estatuto da Aposentação (Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro), também relativamente ao art. 1º, do Decreto-Lei nº 36610 se pode dizer que “o artigo não distingue entre quaisquer modos de vinculação do servidor à função que exerce, para abranger a generalidade das situações” (SIMÕES DE OLIVEIRA, ob. cit., p.15).
28. E adianta o mesmo autor, em anotação àquele preceito: “Não importa assim, que o servidor tenha provimento no cargo, por meio de nomeação vitalícia ou temporária ou de comissão ou requisição, ou por contrato de provimento, ou tenha assalariamento (permanente ou eventual) ou contrato de prestação de serviços (sem prejuízo do disposto no nº 2); que tenha designação interina, provisória ou definitiva, que esteja nos quadros permanentes, nos quadros eventuais ou fora dos quadros, que trabalhe em tempo completo ou em tempo parcial, que sirva em regime de contrato administrativo (v. Código Administrativo, art. 815º § 2º) ou de contrato de direito privado (ibidem, p.15).
29. A aplicação do disposto no art. 1º, do Decreto-Lei nº 36610, de 24.11.1947, à situação do R. sucumbiria apenas por razão puramente formal. O preceito pretendia, isso sim, acautelar situações de mera prestação de um resultado, à margem da direcção e disciplina das entidades públicas – situações essas que se admitia serem contempladas por verbas não destinadas expressamente a despesas com pessoal, ao invés dos assalariados, relativamente aos quais não terá o legislador representado circunstância de, mais ou menos aleatoriamente, virem a ser pagos por variadas rubricas orçamentais.
30. Todavia, o certo é que o R., durante o período aludido, foi sempre abonado por determinada especificação contida na rubrica “Obras – Despesas com o Material – Conservação e Ampliação do Material”, cujo título é o de “Serviços eventuais de reparação de edifícios propriedade desta Câmara e também dos arrendados por este município”.
31. Não obstante faltar a esta especificação uma utilização da expressão “pessoal”, fica claro que, conquanto seja implícita, é-o tão suficientemente quanto resultaria se traduzida no rigor inexorável da mencionada expressão, a partir da observação da relação género/espécie entre o domínio da rubrica (Obras/Material) e o da especificação (Serviços).
32. Por outras palavras, há-de reconhecer-se que, se no interior do conjunto das verbas destinadas a certas obras, há uma fracção afecta ao pagamento de serviços, podem encontrar-se sujeitos titulares de direitos emergentes da prestação de trabalho subordinado que em tudo vejam preenchidas as restantes exigências para inscrição na C.G.A. de acordo com o Decreto-Lei nº 36610, auferindo salários por sua conta, porquanto se trata de inscrição orçamental de forma tão suficiente, como se de inscrição expressa e nominal de verbas para despesas com pessoal se tratasse.
33. Isto porque o legislador terá, como se fez notar, presumido que “verbas inscritas expressamente para pessoal” constituissem o fundamento orçamental para remuneração de todos quantos prestassem uma actividade intelectual ou manual com subordinação hierárquica.
34. A relação que se produz entre os factos conhecidos (designadamente, a especificação da rubrica por conta da qual foi remunerado o servidor ora R.) e a norma aplicável deve induzir a um reconhecimento do direito à qualidade de subscritor por parte do Senhor … , sob pena de ficar tocado o princípio da justiça (art. 6º, do Código do Procedimento Administrativo), do qual surge, como corolário, o primado da materialidade subjacente.
35. A este respeito, não poderiam ser mais adequadas as palavras de MENEZES CORDEIRO:
“…partindo de uma laboração sobre palavras e não sobre as realidades que elas visam comunicar, pode atingir-se uma decisão que traduza não a realização do modelo pretendido pelo Direito, mas, tão só, uma qualquer conexão vocabular em que tal modelo se atinja, em termos verbais.” (Da Boa-Fé no Direito Civil, Vol. II, p. 1252)
36. A solução propugnada não pode ficar alheia à modificação que sobre esta matéria introduziu o novo Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, quando no art. 1º eliminou o requisito do pagamento por força de verbas expressamente inscritas para despesas de pessoal.
Reconheça-se, porém, que esta diferença nas duas disposições não obsta a uma criteriosa interpretação da norma revogada, em ordem a serem contempladas as virtualidades hermenêuticas dos citados princípios gerais, pois em nada fica infirmada a diversidade das duas regras, na sua generalidade e abstracção.
III – CONCLUSÕES
São estes os factos e as razões que me levam, por fim, no uso das competências resultantes do disposto no art. 20º, nº 1, alínea a),
do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, a
RECOMENDAR
Que seja deferida a … a inscrição na Caixa Geral de Aposentações, por este ter adquirido qualidade de subscritor, de acordo com o disposto no art. 1º, do Decreto-Lei nº 36610, de 24 de Novembro de 1947, pelo período em que manteve relação jurídica laboral com o município do Funchal, sob condição do pagamento das quotas retrospectivas.
Permito-me recordar a V.Exa. o dever de comunicação da posição que a Caixa Geral de Aposentações venha a assumir em face da presente Recomendação, de acordo com o que prevê o art. 38º, nº 2, do citado Estatuto do Provedor de Justiça.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL