Ministro da Indústria e Energia
C/c: Presidente do Conselho de Administração da Transgás, S.A.
Processo:R-849/95
Rec. nº 81/A/95
Data:1995-08-17
Área: A1
Assunto:URBANISMO E OBRAS – SERVIDÃO ADMINISTRATIVA DE GÁS – PLANO DIRECTOR MUNICIPAL – PRINCÍPIO DA TUTELA DA CONFIANÇA LEGÍTIMA
Sequência: Não acatada
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
– Dos factos –
1. Foi apresentada na Provedoria de Justiça por um grupo de proprietários cujos terrenos, sitos em Ferral, concelho de Santa
Maria da Feira, são atravessados pelo gasoduto Setúbal-Braga, uma queixa fundada, essencialmente, no facto de o traçado do gasoduto que veio a ser aprovado para aquela zona diferir substancialmente do traçado constante do Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira.
2. A fim de esclarecer os factos alegados pelos Reclamantes foi solicitado à Transgás, através do ofício n° …, de 10.05.1995,
que se pronunciasse sobre eles, informando das razões determinantes da alteração do traçado. Não tendo sido recebida qualquer resposta, apesar da insistência efectuada em 04.07.1995, através do ofício n° …, foi solicitada à Transgás a realização de uma reunião destinada à prestação dos esclarecimentos em falta.
3. Tal reunião teve lugar em 28 de Julho p. p., nas instalações da Transgás, representada pelo Senhor Eng° … e pelo Senhor Dr. …, que confirmaram a alteração do traçado alegada pelos Reclamantes, e referiramúnica e exclusivamente a uma proposta pela Câmara Municipal de Santa Maria, por forma a viabilizar operações de loteamento que a implantação do gasoduto de acordo com o traçado constante do Plano Director Municipal comprometeria. Referiram ainda que, para a concessionária, o traçado inicial não comportava qualquer desvantagem, em técnicos ou outros, para a implantação do gasoduto.
B – Da violação do Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira-
4. O Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira, aprovado pela respectiva Assembleia Municipal em 14 de Maio de 1993, foi
ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n° 56/93, de 19 de Julho, data da sua entrada em vigor, e consequente aquisição de plena eficácia (art. 18°, n° 5, do Decreto-Lei n° 69/90, de 2 de Março).
5. O Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira tem, como qualquer plano municipal, a natureza de regulamento administrativo
(art. 4° do referido Decreto-Lei n° 69/90), sendo obrigatório e vinculando as entidades públicas e privadas.
6. Ora, o Despacho n° 113/93, de 15 de Dezembro, de Vossa Excelência, publicado no DR, II Série, l, de 03/01/94, que aprovou o
traçado do gasoduto Setúbal/Braga, publicado, por aviso, no DR, II Série, 64, de 17/03/94, e completado pela publicação das plantas para o concelho de Santa Maria da Feira, por aviso, no DR, II Série, 99, de 28/04/95, diverge sensivelmente, na zona em questão, do traçado contido no Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira.
7. O despacho em causa é um acto administrativo, mais precisamente um acto administrativo colectivo (cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, III [policopiado], Lisboa, 1989, pp. 89-90), pois a aprovação do projecto do gasoduto confere à
concessionária, nos termos do art. 2°, n° 4, al. b), do Decreto-Lei n° 232/90, de 16 de Julho, o direito de constituir sobre os
terrenos por aquele projecto abrangidos as servidões administrativas previstas no art. 10° do Decreto-Lei n° 374/89, de 25 de Outubro.
8. Embora o Decreto-Lei n° 69/90, de 2 de Março, ao tratar da violação dos planos municipais de ordenamento do território, nos
seus arts. 23° e 24°, se ocupe sobretudo da conduta dos órgãos municipais, tal facto não significa que os actos da Administração
Central desconformes com os planos municipais não sejam inválidos.
Conforme observa LUÍS PERESTRELO DE OLIVEIRA “como regulamentosadministrativos os planos municipais são normas de conduta pública, que devem ser observados tanto pela Administração como pelos particulares. A desconformidade da conduta de um órgão público com o plano municipal vigente constitui um desvalor do acto administrativo assim praticado, (…) sem que para o efeito
releve tratar-se de órgão da Administração Central ou da Administração Local, pois as disposições do plano são vinculativas para todos os órgãos públicos, da mesma forma que o são para os particulares” (Planos municipais de ordenamento do território, Coimbra, 1991, pp. 73 e 74). Este entendimento é reforçado pelo princípio da legalidade administrativa, previsto no art. 3°, n° 1,
do Código do Procedimento Administrativo, que comina aos órgãos da Administração Pública uma actuação conforme à lei e ao direito (incluindo aqui as normas regulamentares).
9. Assim, o Despacho n° 113/93, de 15 de Dezembro, é inválido, por vício de violação de lei (o qual inclui a violação de quaisquer
normas jurídicas com as quais o acto administrativo se deva conformar e, portanto, também as regulamentares – cfr. MARCELLO
CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I, 10° ed., Coimbra, 1973, pp. 105 e 501, e AFONSO QUEIRó, Lições de Direito
Administrativo, I [policopiado], Coimbra, 1976, pp. 483 e ss.).
10. O despacho em causa é nulo, nos termos do art. 52°, n° 1, al. b), do Decreto-Lei n° 445/91, de 20 de Novembro, norma que, antes da sua alteração pelo Decreto.-Lei n° 250/94, de 25 de Outubro, cominava a nulidade dos actos administrativos que licenciassem obras e trabalhos em violação do disposto em plano municipal de ordenamento do território.
11. As obras e trabalhos de construção do gasoduto não estão sujeitas a licenciamento municipal, o qual é substituído, nos
termos do art. 13°, n° 3, al. b), do Decreto-Lei n° 374/89, de 25 de Outubro, pela aprovação do projecto de traçado do gasoduto. Tal
facto não implica, contudo, que a sanção prevista no art. 52°, n° 1, al. b), do Decreto-Lei n° 445/91 não se possa estender àquele
acto de aprovação, pois a referida norma não exclui do seu campo de aplicação os actos administrativos praticados por órgãos da
administração directa do Estado que violem o disposto em planos municipais de ordenamento do território eficazes, antes pretende
abranger todos os actos administrativos em matéria de licenciamento ou aprovação de projectos de obras que contrariem
instrumentos de planeamento territorial (neste sentido, ANTÓNIO DUARTE DE ALMEIDA / CLÁUDIO MONTEIRO / GONÇALO CAPITÃO / JORGE GONÇALVES / LUCIANO MARCOS / MANUEL JORGE GOES / PEDRO SIZA VIEIRA, Legislação fundamental de Direito do Urbanismo – Anotada e Comentada, II, p. 803).
C – Da lesão do princípio da tutela da confiança legítima –
12. O princípio da tutela da confiança legítima dos cidadãos é um corolário do princípio do Estado de direito democrático, firmado
no art. 2° da Constituição, que tem “ínsita uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado. Por isso, haverão os cidadãos de contar com um mínimo de certeza e segurança nos seus direitos e nas expectativas que, juridicamente, lhes foram criadas” (Acórdão do Tribunal Constitucional n° 49/92, de 11/06/92, in DR, 2a, 134, 11/06/92, 5392 [391 e ss. [421).
13. Ora, o princípio da tutela da confiança legítima dos cidadãos assume um relevo especial no campo da planificação urbanística
(cfr. em geral, FAUSTO DE QUADROS, Princípios fundamentais de Direito Constitucional e de Direito Administrativo em matéria de
Direito do Urbanismo, in DIOGO FREITAS DO AMARAL (COORD.), Direito do Urbanismo, Oeiras, 1989, pp. 269 e ss. [277-279]), pois esta visa instituir estruturas jurídicas, de vigência indefinida, conformadoras da utilização do território, quer pelos particulares, quer pela Administração (cfr., quanto a este ponto FERNANDO ALVES CORREIA, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 182 e ss.), permitindo e obrigando quer uns, quer a outra, a projectar as suas actividades observando o disposto naqueles instrumentos de jurídicos de ordenamento do território. Conforme observa FERNANDO ALVES CORREIA “( …) o plano
define antecipadamente aquilo com que os proprietários poderão contar, estabelece princípios e regras que devem ser observados
pela Administração e inspira confiança nos agentes interessados na realização de operações de transformação do solo, designadamente a construção” (O plano cit., p. 332).
14. Assim, o Despacho n° 113/93, de 15 de Dezembro, ao aprovar um traçado do gasoduto que difere, na área do município de Santa
Maria da Feira, do traçado constante do Plano Director Municipal daquele concelho, viola as expectativas criadas por este
instrumento de planeamento territorial aos proprietários dos terrenos agora adstritos, e protegidas pelo princípio da tutela da
confiança legítima, corolário do princípio constitucional do Estado de direito democrático, e é, em consequência, inconstitucional.
15. Nos termos do art. 133°, n° 1, do Código do Procedimento Administrativo, são nulos os actos a que falte qualquer dos
elementos essenciais. Esta disposição é concretizada, de modo não exaustivo, nas diversas alíneas do n° 2 daquela disposição legal, prevendo a al. d) a nulidade dos actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental. Ora, idêntica sanção poderá ser assacada aos actos que ofendam o conteúdo essencial de um princípio fundamental (neste sentido MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA / PEDRO COSTA GONÇALVES / J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo comentado, II, Coimbra, 1995, p. 156).
De facto, é o mesmo fundamento que sustenta a previsão da nulidade para os actos que ofendem o conteúdo essencial de direitos
fundamentais e que permite estendê-la, nos termos da cláusula aberta contida no art. 133°, n° 2, proémio, do Código do
Procedimento Administrativo, aos casos de violação de princípios fundamentais: o interesse público da salvaguarda da legalidade, na
sua vertente subjectiva de defesa dos direitos dos cidadãos (cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, O valor jurídico do acto
inconstitucional, I, Lisboa, 1988, pp. 225-226 e 332).
16. Desta forma, a nulidade do Despacho n° 113/93, de 15 de Dezembro, fundada desde logo, nos termos do art. 52°, n° 1, al.
b), do Decreto-lei n° 445/91, de 20 de Novembro, na violação do disposto no Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira,
decorre igualmente, nos termos do art. 133° do Código do Procedimento Administrativo, da ofensa ao princípio da tutela da
confiança legítima, corolário do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2° da Constituição.
D – Da revogabilidade do despacho n° 113/93 –
17. Caso não se entenda ser o Despacho n° 113/93, de 15 de Dezembro, nulo, o que apenas se admite por hipótese, sempre será o
mesmo anulável, nos termos do art. 135° do Código do Procedimento Administrativo, pela violação dos princípios e normas jurídicas
atrás referidos.
18. De acordo com o art. 141°, n° 1, do Código do Procedimento Administrativo, aquele despacho poderá ser revogado, com
fundamento na sua invalidade, dentro do prazo do respectivo recurso contencioso.
19. Nos termos do art. 12° do Decreto-Lei n° 11/94, de 13 de Janeiro, a concessionária do gás natural dará a conhecer aos titulares dos imóveis sujeitos a servidão de gás as adstrições dessa oneração resultantes, mediante carta registada com aviso de
recepção (n° 1, proémio), ou, caso não seja possível identificar todos os titulares dos imóveis sujeitos a servidão de gás as adstrições dessa oneração resultantes, mediante carta registada com aviso de recepção (nº 1, proémio), ou, caso não seja possível
identificar todos os titulares dos imóveis em causa, a Direcção-Geral de Energia promoverá a publicação, no Diário da República, das
plantas do traçado das infra-estruturas do gás natural relativo a cada município, em escala adequada que permita a indicação legível
dos prédios servientes (n° 6).
20. Assim, e nos termos dos arts. 132°, n° 1, e 130°, n° 2, do Código do Procedimento Administrativo, a constituição das servidões de gás – um dos efeitos prototípicos do acto de aprovação do traçado – só se efectiva com a notificação, aos titulares dos imóveis em causa, das adstrições que impendem sobre os seus terrenos, ou caso esses titulares não sejam todos conhecidos, com a publicação das plantas do traçado das infra-estruturas de gás natural.
21. Tendo a publicação, em Diário da República, das plantas parcelares relativas ao concelho de Santa Maria da Feira ocorrido
em 28.04.1995 (cfr. Aviso do Director-Geral de Energia, DR, 2a, 99, 28.04.1995, 4654 [28]), apenas nessa data (ou até
posteriormente, caso se trate de titulares de imóveis conhecidos ainda não contactados pela TRANSGÁS, S.A.) começou a correr o
prazo para a interposição do recurso contencioso, o qual, para efeitos de revogação, é de um ano (art. 141°, n° 2, do Código do
Procedimento Administrativo, conjugado com o art. 28°, n° 1, al. c], do Decreto-Lei n° 267/85, de 16 de Julho).
22. Desta forma, se se considerar que o Despacho n° 113/93, de 15 de Dezembro é meramente anulável (o que, repita-se, apenas se
admite por hipótese), deverá o mesmo ser revogado, na parte em que o traçado aprovado contraria o Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira.
CONCLUSÕES
De acordo com o exposto, entendo, no uso dos poderes conferidos no art. 20°, n° 1, al. a), do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n° 9/91, de 9 de Abril RECOMENDAR a Vossa Excelência:
a) A declaração da nulidade, nos termos do art. 134°, n° 2, do Código do Procedimento Administrativo, do Despacho n° 113/
93, de 15 de Dezembro, na parte em que o traçado aprovado contraria o disposto no Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira, com a consequente reposição dos terrenos nas condições em que se encontravam antes do início das obras;
ou, caso assim não se venha a entender,
b) A revogação, nos termos dos arts. 136°, n° 1, e 141°, n° 1, do Código do Procedimento Administrativo, do Despacho n° 113/93, de 15 de Dezembro, em tudo quanto contrarie o disposto no Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira, com a consequente reposição dos terrenos nas condições em que se encontravam antes do início das obras.
Está o Provedor de Justiça ciente do relevante interesse público prosseguido pela construção da rede de transporte e distribuição de gás natural. Porém, a alteração recomendada, além de tecnicamente exequível, conforme reconhece a TRANSGÁS, S.A., não
se afigura susceptível de comprometer o prazo de conclusão da obra, tendo presente a notável eficiência e celeridade até agora
demonstradas pela concessionária na construção do gasoduto.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel