Presidente do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados das Caldas da Rainha
Rec. n.º 71/A/00
Proc.: R-1868/99
Data: 27-12-2000
Área: A 6
Assunto: CONSUMO. ÁGUA. FACTURAÇÃO POR ESTIMATIVA. COMPENSAÇÃO DO CRÉDITO.
Sequência: Acatada
1. Do conjunto de questões colocado a V. Ex.ª no âmbito do processo identificado em epígrafe, a propósito do serviço prestado ao público por essa entidade, e tendo-se revelado satisfatórias as respostas oportunamente dadas por esses Serviços seja quanto à menção, na factura/recibo da água, da expressão “outros valores”, seja no que respeita por sua vez à referência, no tarifário em vigor, ao alegado consumo mínimo, ficou no entanto em aberto a matéria relativa à aplicação, determinada pela deliberação desses Serviços datada de 06 de Janeiro de 1998 e homologada pela Câmara Municipal das Caldas da Rainha em 09 de Fevereiro seguinte, às leituras feitas a partir de 01 de Janeiro de 1998, das novas tarifas de venda de água, aluguer mensal de contadores e tratamento de águas residuais aí consignadas, ou seja, a aplicação daquelas normas regulamentares a factos anteriores não só à publicação da deliberação que as estabeleceu, mas à própria deliberação. É precisamente a propósito desta questão que agora me dirijo a V. Ex.ª.
2. Dispõe o art.º 12.º do Código Civil, no seu n.º 1, que “a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”, acrescentando, no n.º 2, que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
O mencionado preceito legal, consagrador do princípio da não retroactividade da lei, consubstancia um verdadeiro comando legislativo para o intérprete do ordenamento jurídico nacional, incluindo, apesar de colocado na lei civil, a legislação administrativa e as denominadas normas regulamentares. Defendendo a aplicação do disposto no art.º 12.º do Código Civil à lei administrativa, a qual, segundo Marcello Caetano, engloba, na sua designação genérica, “não só as leis em sentido formal [(leis constitucionais e ordinárias, decretos-leis (…)] como os regulamentos, qualquer que seja a forma que revistam – decreto, portaria, despacho normativo, deliberação de órgão colegial (…)”, explicita aquele mesmo autor que “é um princípio geral de Direito – válido, por conseguinte, no Direito público e no privado – que a lei não tem efeito retroactivo salvo quando seja de natureza interpretativa” (in “Manual de Direito Administrativo”, Vol. I, Almedina, 10.ª edição, 1984, respectivamente pp. 83 e 139). E acrescenta: “Se a norma jurídica tem por conteúdo uma regra de conduta social, é evidente que os indivíduos não podem ser obrigados a conduzir-se de acordo com ela senão depois de definida e publicada. Seria contra a natureza e a lógica procurar submeter o passado à disciplina de normas decretadas já depois de decorridos os factos a que se pretendesse aplicá-las. Só posteriormente à publicação da lei em termos de se poder presumir que todos conhecem o que nela se ordena, é lícito considerá-la obrigatória e pedir contas aos desobedientes” (ob. cit., p. 138). O mencionado autor esclarece ainda haver “uma razão jurídica e uma razão social a impedir a retroactividade: a razão jurídica é a de não ser justo desrespeitar as consequências regulares de uma conduta que se passou de acordo com as normas vigentes à data em que decorreu – e portanto em obediência aos únicos imperativos então conhecidos e obrigatórios; a razão social está na necessidade de segurança das relações travadas de acordo com a lei vigente, pois se os cidadãos não podem confiar em que o Poder respeite as situações adquiridas e os actos perfeitos no domínio de uma lei, a falta de estabilidade da Ordem jurídica abalará a própria Ordem social” (ob. cit., p. 139).
Hoje, é a própria Constituição que estabelece no seu art.º 119.º as regras a que se devem sujeitar os actos normativos, designadamente do poder local, em termos de conhecimento pelos seus destinatários. A sanção para a falta dessa publicidade é a ineficácia, sendo manifesto que, sob pena de retroactividade, não é o momento da aprovação ou da homologação que releva para a perfeição do acto, mas sim o momento em que o mesmo pode chegar ao conhecimento de quem por ele é afectado.
Estabelecida a questão temporal nestes termos, não se crê que seja possível a aplicação retroactiva neste caso concreto, muito menos a data anterior à da própria aprovação.
3. A perspectiva constitucional da questão aqui em foco está clara e inequivocamente expressa no vasto leque de jurisprudência do Tribunal Constitucional existente sobre a matéria. Apesar de a Constituição, com excepção da matéria penal e das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, não consagrar expressamente o princípio da não retroactividade da lei, podendo afinal o legislador estabelecê-la (não já o aplicador da lei, o qual, se esta nada disser, deve sempre interpretar no sentido apontado pelo art.º 12.º do Código Civil), a verdade é que haverá que “proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a licitude (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam “tocadas” relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte” (in Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 156/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995, p. 6809).
E acrescenta o mesmo aresto: “Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será alcançado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o subprincípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, para que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos têm de respeitar” (p. cit.).
Num outro Acórdão do Tribunal Constitucional (n.º 70/92, de 24 de Fevereiro de 1992, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 414) pode ler-se: “É consabido que a retroactividade apenas comporta imediata inconstitucionalidade em determinadas áreas reservadas e nomeadamente na área penal incriminadora. Todavia, as leis retroactivas poderão ser desconformes à Constituição, não por acção desse específico sentido, mas por oposição com outros preceitos ou princípios constitucionais. (…) Com efeito, desde logo, o princípio da protecção da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, especificamente acolhido no artigo 2.º da Constituição, além de fundamentar o princípio da não retroactividade das leis penais e em geral das leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias (artigos 29.º e 18.º, n.º 3, do texto constitucional) justificará a inconstitucionalidade de quaisquer leis retroactivas lesivas dos direitos e expectativas dos cidadãos, ao menos quando a retroactividade se revelar ostensivamente irrazoável (…). (…) Por força deste princípio, resulta constitucionalmente garantido um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, garantida também a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica. (…) Sempre que as normas retroactivas violam de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que os cidadãos e a comunidade hão-de depositar na ordem normativa que os rege, confiança materialmente justificada no reconhecimento da situação jurídica ou das suas consequências, poderá então falar-se de retroactividade constitucionalmente ilegítima” (pp. 145 e 146).
Por seu turno, no Acórdão n.º 287/90 (publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Fevereiro de 1991) o Tribunal Constitucional explicitou quando se deverá ter por inadmissível, arbitrária ou demasiado onerosa a afectação de expectativas legitimamente fundadas das pessoas por uma lei nova, de eficácia retroactiva ou de aplicação imediata a situações jurídicas pré-existentes, nos seguintes termos: ” A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios: (…) a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível quando constitua uma mutação jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda (…) b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes [(deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade (…)]”.
4. Os exemplos da doutrina e da jurisprudência citados, que traduzem uma orientação unânime no sentido apontado, são elucidativos da ideia que se pretende aqui transmitir. Até à publicação no Diário da República, em 05 de Março de 1998, do Aviso acima identificado, os utentes desses Serviços Municipalizados estariam certos e seguros do preço que iriam pagar pelo consumo de água que efectivamente realizaram, consumindo mesmo em função das tarifas conhecidas. Apesar de ao legislador não estar vedada a possibilidade de estabelecer a aplicação retroactiva da lei, logo ao órgão colegial a aplicação retroactiva das normas regulamentares, a verdade é que, no caso concreto, a aplicação retroactiva das normas regulamentares que aqui nos ocupam colocou obviamente em crise os princípios da certeza e segurança jurídicas que nortearam este ou aquele consumo de água, até à data em que a deliberação foi publicitada.
Mais importante do que os constrangimentos, maiores ou menores, que um aumento do preço deste tipo de serviço inevitavelmente provoca na economia dos seus destinatários, a salvaguarda dos mencionados valores da certeza e da segurança no direito, e a defesa das expectativas dos cidadãos na manutenção de situações de facto já conseguidas no âmbito do direito anterior, serão inevitavelmente uma referência, que poderá apenas sucumbir perante situações devidamente fundamentadas. O que decididamente não acontecerá no caso concreto objecto da presente análise, pelo que há que concluir, na esteira do que acima fica exposto, que a aplicação do tarifário em apreço às leituras já efectivadas antes da sua publicitação, revelar-se-á afinal constitucionalmente inadmissível.
Repare-se que no dever de informação previsto no art.º 4.º, n.º 1, da lei 23/96, de 26 de Julho, não pode deixar de estar compreendido o conhecimento do tarifário, em regra previamente à sua entrada em vigor. Um dever de informação meramente ex post não seria consentâneo com os interesses dos consumidores, constitucionalmente protegidos.
5. Assim sendo, e ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 09 de Abril, RECOMENDO
a) Que sejam devolvidos aos utentes as quantias correspondentes à aplicação do novo tarifário a consumos efectuados antes da data da sua publicação, em aviso no Diário da República, III Série, de 05 de Março de 1998;
b) Que idêntica atitude seja tomada para casos ulteriores que eventualmente tenham ocorrido, designadamente em 1999 e em 2000;
c) Que de futuro qualquer novo tarifário seja aplicado apenas a consumos verificados após a sua publicitação.
6. Na expectativa de que o teor do presente ofício merecerá da parte de V. Ex.ª a necessária ponderação, e aguardando a comunicação sobre a posição que esses Serviços assumirão perante o acima recomendado, apresento os melhores cumprimentos.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
H. NASCIMENTO RODRIGUES