Ministro das Finanças
Rec. nº 117/A/95
Proc.:R-3021/93
Data:1995-10-18
Área : A 2
Assunto:CONTRIBUIÇÕES E IMPOSTOS – PAGAMENTO DE DÍVIDA – JUROS
Sequência:
I – DOS FACTOS
A reclamante … dirigiu, em 15.11.93, queixa a este órgão do Estado alegando que na sequência do assalto perpetrado em 11 de Março de 1975 pelas então denominadas “massas populares” às instalações do Centro Democrático Social, sitas no n° 219 da Rua de Camões, Porto, foi a sua habitação igualmente arrombada, sendo o seu interior destruido e descaminhados os bens que ali se encontravam.
Pretendendo a requerente ver-se ressarcida dos danos sofridos em consequência do que entendia ter sido a inércia dos poderes públicos, maxime das autoridades militares, propôs contra o Estado a respectiva acção de indemnização, tendo o Supremo Tribunal Administrativo vindo a concluir, por Acordão de 4 de Julho de 1985, pela condenação do mesmo no pagamento da quantia de 1.296.299$20.
Todavia, essa quantia só veio a ser efectivamente paga à ora requerente (através da Secretaria Geral das Finanças e do Plano) em 30 de Outubro de 1986.
Segundo a reclamante, seria “razoável, e justo” que a indemnização fixada fosse acrescida, aquando do seu pagamento, de juros, à taxa legal, atendendo, mais não seja, ao facto ineludível que é o prazo decorrido entre o momento do trânsito em julgado da decisão do S.T.A e o momento, de QUINZE MESES posteriores, em que o Estado procedeu à regularização do seu débito” sendo que “tudo traduz o efectivo prejuízo
da requerente, emergente do facto de o Estado não cumprir pontualmente, como o exige aos cidadãos, as suas obrigações”.
II – DOS FUNDAMENTOS
A
Dispõem os art. 804° e 806° do Código Civil que:
Art. 804°
1. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
Art. 806°
1. Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.
2. Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal.
3. Pode, no entanto, o credor provar que a mora lhe causou dano superior aos juros referidos no número anterior e exigir a indemnização suplementar correspondente, quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.
Como se vê, a mora pressupõe a existência de um simples retardamento na prestação (cujo cumprimento mantém-se, no entanto, possível), por culpa do devedor.
Mas para que haja mora, é ainda necessário que a prestação seja certa – determinada – líquida – por já estar perfeitamente apurado/fixado o seu montante – e exigível (e.g. por já ter sido o devedor interpelado para o cumprimento).
A responsabilidade do devedor pelos danos causados pela mora só fica excluída se este provar que a mesma não lhe é imputável – emergente de causa estranha à sua vontade (caso de força maior), culpa do terceiro ou do próprio credor.
O credor terá assim direito à prestação devida, acrescida da indemnização moratória que, regra geral, coincidirá com o montante de juros, à taxa legal, contados do momento da constituição em mora e até efectivo e integral pagamento.
B
Para determinar o momento da constituição em mora, há que atentar, antes do mais, que quer a prática dos factos danosos quer a propositura da acção indemnizatória tiveram lugar quando o n° 3 do art. 805° ainda possuía a redacção anterior àquela que lhe viria a ser introduzida pelo Decreto-Lei n° 262/83, de 16 de Junho.
Efectivamente, e à data, dispunha-se:
Art. 805°
l. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor independentemente de interpelação:
a) (…)
b) se a obrigação provier de facto ilícito;
c) (…)
3. Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor.
Acerca do problema do momento da constituição em mora, formaram-se, então, duas correntes jurisprudênciais e doutrinais.
a) uma, que procurando a conciliação dos n° 2 e 3 deste artigo 805°, considerava que o devedor de juros, por indemnização ilíquida, só incorria em mora depois de aquela se tornar líquida, mediante convenção das partes ou decisão definitiva do tribunal, a não ser que a iliquidez lhe fosse imputável.
b) outra, afirmando que a obrigação de indemnização por facto ilícito nascia com o mesmo, sendo devidos juros de mora a partir desse momento.
Com o Decreto-Lei n° 262/83, de 16 de Junho, foi introduzido um acrescento ao n° 3 do supra citado art. 805°, sendo que a sua redacção actual é:
Art. 805°:
1. (…)
2. (…)
a) (…)
b) (…)
c) (…)
3. Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.
No que concerne à aplicação da alteração ora introduzida aos factos ilícitos ocorridos antes do momento em que a mesma aconteceu, a doutrina e a jurisprudência continuaram a divergir já que, e enquanto uns entendiam que a norma tinha um carácter inovador – só se aplicando, por conseguinte, apenas para o futuro (vide e entre outros Ac.S.T.J. de 21.02.1985, in B.M.J., n° 344, p. 427, Ac. S.T.J. de 5.02.1987, in B.M.J., n° 304, p. 819, Ac. S.T.J. de 19.02.1987,
B.M.J., n° 364, p. 845, Ac. Rel. Lisboa de 9.01.1986, in B.M.J., n° 360, p. 650) – outros entendiam que de uma norma meramente interpretativa se tratava, com as consequências daí inerentes (vide e entre outros Ac. Rel. Lisboa de 10.01.1984, in B.M.J., n° 340, p. 436, Ac. Rel. Lisboa de 20.05.1986, in B.M.J., n° 363, p. 593, Ac. Rel. Évora de 13.03.1986, in B.M.J., n° 369, p. 619).
A tal polémica, veio pôr fim o Supremo Tribunal de Justiça que através do Assento n° 13/94, de 15 de Junho (D.R. 19.08.1994), acordou:
“A norma do n° 3 do art. 805° do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 262/83, de 16 de Junho, é de aplicação imediata a obrigações de indemnização derivadas de factos ilícitos ocorridos anteriormente, mas subsistentes à data da sua entrada em vigor”.
É que, entendeu aquele Tribunal Superior que a norma alterada tem carácter interpretativo já que, não tendo havido revogação das outras disposições atinentes à responsabilidade civil por factos ilícitos (e.g. art. 562° e seguintes do Código Civil), necessário será conjugar o preceito ora alterado com aquelas. Salientando-se, a propósito, o disposto no n° 2 do art. 566° daquele código, quando manda tomar em linha de consideração, aquando do computo do montante indemnizatório,
todos os factos que recaiam sobre o património do lesado até à data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal.
Ou seja, entende-se que, o que a nova redacção dada ao n° 3 do art. 805° do Código Civil veio possibilitar foi a escolha, por parte do lesado, entre o cálculo do quantum indemnizatório segundo a fórmula consagrada no n° 2 do art. 566° do C. Civil (tendo para tanto de provar o montante dos danos danos sofridos entre a prática do facto o momento da propositura da acção, não tendo de fazer prova de qualquer facto para ser indemnizado por danos posteriores à data da citação, já que a própria lei se encarregou de fixar, indirectamente, o montante dos mesmos – havendo como que uma avaliação abstracta do dano).
Ou seja, a nova redacção introduzida ao art. 805° do C.Civil limitou-se a fornecer ao lesado um novo modus operandi, processual, para uma mais fácil obtenção da indemnização danos consequentes à demora do processo. E nada mais!
A este propósito, não poderei deixar de citar Pires de Lima e Antunes Varela quando em anotação ao art. 805° do Código Civil defendem que:
“Dado que a situação patrimonial hipotética a que o n° 2 do artigo 566° se refere, como aditivo na diferença patrimonial que há-de ser reparada ao lesado, envolve a eliminação de todos os danos causados pelo facto lesivo a partir da verificação desse facto, é evidente que o critério geral estabelecido naquela disposição legal é, em princípio, mais favorável para o lesado e mais severo para o lesante do que a nova regra inserida pelo Decreto-Lei n° 262/83, na parte final do n° 3 do art. 805°, que apenas põe a cargo do devedor (responsável pelo facto ilícito ou pelo risco) os danos (moratórios) verificados após a citação, na acção de condenação.
Como não há, porém, o menor indício de que a modificação legislativa introduzida pelo Decreto-Lei n° 262/83, tenha pretendido beneficiar o autor do facto ilícito ou o responsável pelo risco, o intérprete avisado há-de acrescentar à ressalva expressamente formulada na parte final do n° 3 (nova redacção) a dos casos em que o lesado prefira a aplicação do critério geral estabelecido no n° 2 do artigo 566º” (Código Civil Anotado, Vol. II, 3a ed.).
Pela leitura dos documentos juntos ao processo necessário é inferir que aquando da propositura da acção, a então autora pediu a condenação do Estado na quantia de 1 296 299$20, tendo o STA vindo a fixar a indemnização no exacto montante pedido ” tendo em vista reconstituir a situação que existiria caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” ( atente-se que o Tribunal havia condenado o Estado a pagar à autora a quantia de 510 000$00 ).
Ora, a partir do momento em que existe sentença condenatória, já não passível de recurso, e que notifica o devedor do montante fixado a título de indemnização ao credor, parece-me que dúvidas não restam que os requisitos constitutivos da mora estarão todos preenchidos – obrigação certa, exigível e líquida, sendo o retardamento da prestação imputável ao devedor.
É que, e se por um lado não vislumbro motivo passível de justificar cerca de quinze meses após a data em que o Acordão condenatório foi proferido – sendo certo que lhe é exigível o uso de toda a diligência e de todos os recursos ao seu alcance por forma a apressar o pagamento das quantias de que é devedor – por outro lado, e ainda a este propósito, não poderei deixar de invocar, novamente, Pires de Lima e Antunes Varela quando em anotação ao art. 806° do Código Civil (3a ed., Vol. II) defendem que:
“Visto que a sentença de condenação envolve uma verdadeira ordem ou injunção de pagamento, (sem embargo da eficácia suspensiva eventualmente atribuída ao recurso contra ela interposto), o lesante tem de ser tratado como um devedor em mora da obrigação pecuniária fixada na sentença, desde a data em que esta é proferida.
(…) Só a partir do momento em que a sentença é proferida o lesante conhece o quantum preciso (em dinheiro) da indemnização e é notificado para efectuar o respectivo pagamento.”
C
E não se diga que por efeito do disposto no n° 1 do art. 2° do Decreto-Lei n° 49 168, de 5 de Agosto de 1969, estão o Estado, seus serviços, estabelecimentos e organismos sempre isentos do pagamento de juros de mora.
Efectivamente, urge interpretar tal norma juntamente com a do n° 1 do art. 1° do mesmo diploma legal, tendo em conta os propósitos que o legislador visou alcançar com a sua publicação.
E, feito tal exercício, necessário será concluir que o que se pretendeu com o diploma ora em apreço foi substituir o regime do art. 139° do Decreto-Lei n° 16 731, de 13 de Abril de 1929, que se reportava apenas aos juros nas dívidas ao Estado e aos corpos administrativos.
Nesta conformidade, e surgindo o preceito legal ora em apreço logo após aquele que respeita à incidência, e sem especificar a que dívidas se reporta tal isenção, impõe-se concluir que as isenções ali previstas têm como por único destinatário os juros de mora relativos às dívidas previstas no artigo precedente e quando sejam credoras as entidades ali enunciadas (Estado, seus serviços ou organismos autarquias locais) – neste sentido vide Parecer da Procuradoria-Geral da República n° 27/84, de 10 de Maio de 1984.
CONCLUSÕES
São estas motivações, Senhor Ministro das Finanças, que me aconselham dever RECOMENDAR a Vossa Excelência (ao abrigo do disposto no art. 20°, n° 1 al. a) da Lei n° 9/91, de 9 de Abril)
que:
– seja efectuado o pagamento à reclamante, de juros à taxa legal, calculados sobre a quantia a que o Estado foi condenado a pagar, e contados desde a data do trânsito em julgado do Acordão condenatório proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo e até efectivo e integral pagamento.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
JOSÉ MENÉRES PIMENTEL