Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais
Rec. nº 83A/94
Proc. R-2552/93
Data: 1994-05-02
Área: A2
ASSUNTO: CONTRIBUIÇÕES E IMPOSTOS – IRS – CORRECÇÃO DA LIQUIDAÇÃO
Sequência: Acatada
O Senhor D…, contribuinte fiscal nº …, solicitou a intervenção do Provedor de Justiça, por considerar injusta a decisão da Administração Fiscal que indeferiu o seu pedido de revisão da liquidação de IRS referente ao ano de 1991.
Após ter detectado um lapso no preenchimento da declaração de rendimentos referente àquele ano – o que aconteceu apenas quando procedia ao preenchimento da declaração referente ao ano seguinte -, dirigiu o Reclamante exposições a diferentes entidades e departamentos do Ministério das Finanças, solicitando a revisão da respectiva liquidação, todas elas indeferidas com base num único argumento: a apresentação das referidas exposições ocorreu quando se encontrava já ultrapassado o prazo de reclamação graciosa previsto nos artigos 123º, nº 1 e 97º, nº 1, ambos do Código de Processo Tributário.
Foram nesse sentido, efectivamente, quer a informação nº …/93, da Direcção Distrital de Finanças do Porto, sobre a qual foram exarados despachos de concordância datados de 19/08/93 e de 07/09/93, quer a informação nº …/93, proc. nº …/93, com despachos de 09/07/93 e 19/07/93.
O argumento da extemporaneidade é incontestável: o prazo de reclamação graciosa encontrava-se, efectivamente, ultrapassado quando o contribuinte deu conta do lapso que cometera no preenchimento da declaração de IRS do ano de 1991 e que consistiu em declarar os rendimentos do trabalho independente auferidos por ambos os sujeitos passivos não só nos campos respectivos dos anexos B da declaração modelo 2, como deveria acontecer, mas também, erradamente, nos campos do anexo A destinados exclusivamente aos rendimentos do trabalho dependente.
Numa perspectiva formalista de aplicação do direito, aquele argumento apresenta-se irrefutável: o decurso do prazo para apresentação de reclamação ou impugnação, sendo este um prazo peremptório, extingue o direito de praticar o acto ( cfr. artigo 145º, nº 3, do Código de Processo Civil e entendimento pacífico e unânime da doutrina ).
A constatação da extemporaneidade da prática do acto parece, pois, ter como única e indiscutível consequência, nomeadamente neste caso concreto, o indeferimento liminar da pretensão do reclamante – é assim que acontece no ãmbito do direito civil, por exemplo.
Não pode, porém, ignorar-se a grande diferença entre o direito civil e o direito fiscal: enquanto aquele rege as relações entre particulares, detentores de interesses de idêntica natureza, este abrange as relações entre o Estado (através da Administração Fiscal) e os particulares, pelo que deve obediência a um outro conjunto de princípios e normas de entre os quais não pode deixar de salientar-se o princípio consagrado no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa, expressamente transposto para o âmbito de actividade da Administração Fiscal pelo artigo 16º do Código de Processo Tributário que me permito transcrever:
«A actividade da administração fiscal está exclusivamente subordinada ao interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos».
O artigo 17º do mesmo diploma enumera, a título exemplificativo, os vários princípios da actividade tributária em que este princípio geral se concretiza.
Da interpretação destas duas disposições legais retiram F.Pinto Fernandes e J. Cardoso dos Santos, no seu C.P.T. anotado e comentado, ed. Rei dos Livros, págs. 79, a conclusão – que partilho inteiramente – de que:
«… a actividade da administração fiscal está subordinada a vários princípios, de que cumpre frisar aqui o da legalidade, pois tratando-se de direitos indisponíveis, há-de conter-se dentro dos estreitos limites da lei, com inteira salvaguarda dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos – que são, afinal, a razão de ser da própria administração. O Estado apenas deve cobrar aquilo a que legalmente tem direito, nem mais nem menos, a fim de ser respeitada a legalidade da tributação. Assim se respeitam os direitos e interesses dos cidadãos».
Aliás, já previamente à entrada em vigor do Código de Processo Tributário, a jurisprudência vinha consagrando uma vasta aplicação do princípio da legalidade no âmbito da Administração Fiscal, retirando daí a necessidade de uma actuação justa e imparcial dos seus orgãos e agentes, pautada por regras de equidade e boa fé (v., por todos, o Acórdão do Tribunal Tributário de 2ª Instância, de 03/11/88, in CTF nº 353, págs 250 a 259).
Embora entregues fora do prazo de reclamação, as exposições dirigidas pelo contribuinte à administração fiscal levaram ao conhecimento desta uma situação de desconformidade entre o rendimento efectivamente auferido pelos sujeitos passivos e o rendimento sobre o qual incidiu a tributação.
Ora, perante a doutrina e jurisprudência citadas, não pode deixar de concluir-se que, independentemente do modo – e do prazo – da tomada de conhecimento daquele facto, pela Administração Fiscal, compete a esta, logo que tal aconteça, tomar as medidas necessárias à reposição da verdadeira situação tributária do contribuinte, revogando o respectivo acto de liquidação que, embora válido, se veio a verificar, comprovadamente, ter recaído sobre um montante erradamente declarado, e substituindo-o por outro que faça incidir a tributação apenas sobre o rendimento efectiva e comprovadamente auferido.
Esta a conclusão necessária face aos supra citados princípios constitucionais e tributários amplamente aceites e desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência.
Mas não é só.
Esta é, também, a única forma de o Estado dar cumprimento ao disposto no nº 1, do artigo 35º, do Decreto-Lei nº 155/92, de 28 de Julho, que obriga à restituição das importâncias de quaisquer receitas que tenham dado entrada nos seus cofres sem direito a essa arrecadação.
Não pode, pois, o Estado, conhecer o caso concreto deste contribuinte e escusar-se a intervir com base em argumentos que nada têm a ver com o fundo de uma questão que não chegou a analisar.
Nem se diga que, tratando-se de um erro imputável ao contribuinte, o artigo 94º, alínea b), do Código de Processo Tributário, retira à Administração Fiscal o poder-dever de rever o acto de liquidação.
O facto de esta disposição legal consagrar o dever de proceder à revisão oficiosa quando, por erro imputável aos serviços, o contribuinte tenha sido prejudicado, não pode obstar à mesma revisão quando o erro seja imputável ao próprio contribuinte, sob pena de os princípios e normas a que tenho vindo a fazer referência serem esvaziados do seu conteúdo útil.
Aliás, o principal fundamento e razão de ser do instituto da revisão oficiosa encontra-se no artigo 93º do Código de Processo Tributário e consiste no errado apuramento da situação tributária do interessado. Como afirma Alberto Xavier, in “Conceito e Natureza do Acto Tributário”, 1972, pág. 578, a revisão da liquidação visa “a reapreciação do acto tributário, através do reexame da situação que lhe subjaz, permitindo que a verdade material se sobreponha à verdade formal…”
Face a estes objectivos da revisão oficiosa e à necessária interpretação sistemática das diferentes disposições e, inclusivamente, dos diversos diplomas, que se viu serem aplicáveis ao presente caso, não pode limitar-se a possibilidade de revisão oficiosa a favor do contribuinte aos casos de erro imputável aos serviços.
O que ocorre é que, nestes casos, é a própria norma contida na alínea b) do citado artigo 94º, do Código de Processo Tributário, que impõe a revisão da liquidação, enquanto que nos casos aí não expressamente previstos, a revisão da liquidação pode – e deve – ocorrer, desde que para tal exista qualquer outro fundamento válido e suficiente.
Porque as já longas considerações expendidas ao longo do presente texto não deixarão, certamente, de consubstanciar tal fundamento, no caso concreto que venho referindo, formulo a seguinte
RECOMENDAÇÃO
Que seja revogado o acto de liquidação de IRS referente aos rendimentos do agregado familiar do reclamante no ano de 1991, reformulando-se o cálculo do imposto devido e levando em consideração a correcção dos erros cometidos pelo contribuinte aquando do preenchimento e entrega da respectiva declaração periódica, dos quais ele próprio veio a dar conta à Administração Fiscal.
Do facto dar-me-á V. Exª conhecimento imediato.
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
José Menéres Pimentel