Ministro da Saúde

Rec. nº 112/A/1993
Processo: R-380/92
Data: 5-8-1993
Área: A4

ASSUNTO: FUNÇÃO PÚBLICA – CONCURSO – MÉDICO – CLASSIFICAÇÃO – RECURSO – DEVER DE DECISÃO

1. O Lic. J. … apresentou queixa ao Provedor de Justiça por não ter sido proferida decisão sobre o recurso hierárquico que para Vossa Excelência intentara da lista graduada de classificação final do concurso para assistente de medicina interna do Centro de Oncologia de Coimbra do Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, publicada no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1991.

2. Essa recusa de decisão resultou da concordância de Vossa Excelência, expressa em 23 de Julho de 1992, sobre parecer da Senhora Secretária-Geral do Ministério, no sentido de que, face ao disposto nos artigos 34º, 39º e 40º da Portaria nº 833/91, de 14 de Agosto, uma vez ultrapassado o prazo estipulado no nº 2 daquele primeiro preceito para a decisão de recurso hierárquico contra a lista de classificação final do concurso em questão, deixaria de ter cabimento tal decisão, restando ao recorrente a via contenciosa para satisfação da sua pretensão.

3. Considero esta interpretação, contudo, inadmissível, por ofensiva de normas constitucionais e legais – o que, de resto, também fiz saber à Senhora Secretária Geral.

4. Na verdade, ela viola, antes de mais, o direito de petição, no sentido amplo em que este é reconhecido pela Lei nº 43/90, de 10 de Agosto.

Com efeito, esse direito abrange, nos termos do artigo 3º, nº 2, da referida Lei, a “impugnação de um acto perante o órgão, funcionário ou agente que o praticou ou o seu superior hierárquico”.

E da conjugação dos artigos 8º e 13º, nº 1 da mesma Lei concluí-se que a entidade destinatária da petição tem sempre o dever de a examinar e de sobre ela decidir.

5. A referida opinião da Senhora Secretária-Geral desse Ministério é, também, incompatível com o próprio direito ao recurso hierárquico, tal como vem regulado no Código do Procedimento Administrativo – implicando, naturalmente, o direito a obter sobre ele uma decisão (artºs 9º e 174º desse diploma).

O direito ao recurso hierárquico, enquanto modalidade da justiça administrativa, faz parte de um dos “princípios gerais” do CPA, que a melhor doutrina tem considerado aplicáveis mesmo aos processos especiais, como o é o do concurso regulado pela Portaria nº 833/91.

E nem se diga que a justiça administrativa estaria, como sustenta a Secretaria-Geral, salvaguardada pela possibilidade de interposição de recurso contencioso.

É que, se a lei consagra o direito ao recurso hierárquico, pretende que o particular possa, efectivamente, beneficiar dessa modalidade de controle interno dos actos da Administração.

Aliás, a tese inversa conduziria a deixar nas mãos da própria Administração o destino de recurso hierárquico: bastar-lhe-ia demorar a sua decisão para além do prazo em questão – o que decerto não estaria na intenção do legislador.

6. Importa salientar, a este propósito, que o CPA é aplicável à situação em vista, na medida em que entrou em vigor em data (16 de Maio de 1992) em que ainda se não esgotara o prazo de recurso contencioso do indeferimento tácito do recurso hierárquico em causa.

O mesmo é dizer que este Código começou a vigorar ainda no decurso do período em que a Administração podia, por decisão expressa, alterar a situação jurídica resultante do indeferimento tácito.

7. Sendo assim, o regime geral relativo à eficácia do recurso hierárquico, tal como definido no CPA, afasta, no caso presente, o constante da Portaria nº 833/91.

Ou seja, o recurso hierárquico em questão passou a ter, como é de regra no CPA, efeito suspensivo até à sua decisão (artº 170º, nº 1), ao contrário do que a Portaria nº 833/91 dispõe a tal respeito, mandando prosseguir o processo de concurso se o recurso hierárquico não tiver sido decidido no prazo previsto.

As duas excepções admitidas a tal princípio no CPA não encontram aplicação, no caso em vista.

A primeira – efeito devolutivo consagrado na lei – porque a Portaria nº 833/91 é um mero diploma regulamentar, sem força legal.

É que, estando aqui em causa um “direito, liberdade ou garantia” ou, pelo menos, um direito a estes “análogo” – o direito de acesso à justiça administrativa -, a sua eventual limitação só podia ser definida por lei formal.

A segunda, porque a ponderação de interesses prevista no artigo 170º, nº 1, parte final, do CPA, tem de fazer-se caso a caso. Não poderia, pois, ser, abstractamente, estabelecida “a priori”. Pretendendo-se, nessa norma, sopesar proporcionadamente os interesses em jogo, a sua pré-definição genérica já seria, de si mesma, desproporcionada.

8. Por seu turno, os actos do concurso (e posteriores eventuais provimentos) praticados a seguir ao termo do prazo do recurso hierárquico apresentam-se como nulos.

Na verdade, tendo eles violado o normal efeito suspensivo do recurso hierárquico necessário, consignado no CPA, tal ofensa implica nulidade, por desrespeito do “conteúdo essencial” dum “direito, liberdade ou garantia” ou “direito análogo” – conforme determina o artigo 133º, nº 2, al. d) do CPA.

E foi atingido o “conteúdo essencial” desta modalidade de direito à justiça administrativa, já que a desaplicação do efeito suspensivo do recurso hierárquico frustra o seu objectivo normal, designadamente na medida em que a Administração se considerou legitimada a não decidir tal recurso, uma vez esgotado o prazo normal para tanto previsto.

9. Essa recusa de decisão ofende, de resto, também o “conteúdo essencial” do direito de petição (outro “direito, liberdade e garantia” agora de natureza politica), já que este envolve, necessariamente e por essência, o direito a obter uma decisão sobre o pedido.

10. Nestes termos, considero justificado, ao abrigo do artigo 20º, nº 1 , alineas a) e b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, formular a Vossa Excelência as seguintes

RECOMENDAÇÕES

a) Deve ser, nos termos do nº 2 do artigo 134º do CPA, declarada a nulidade dos actos do concurso em questão e subsequentes eventuais provimentos praticados após o decurso do prazo normal do recurso hierárquico contra a lista classificativa.

b) Cabe decidir expressamente o recurso hierárquico interposto pelo Lic. J. …, tomando-se em consideração o parecer dos Serviços de Contencioso, que aliás apontam variadas ilegalidades contidas no concurso em questão.

c) Importa rever o nº 2 do artigo 34º da Portaria nº 833/91, de 14 de Agosto, por forma a evitar interpretações como a que lhe foi dada pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde e torná-lo compatível com o regime geral do recurso hierárquico definido no Código do Procedimento Administrativo.

Agradeço que Vossa Excelência me informe do seguimento que estas Recomendações venham a ter.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel