Ministro da Cultura

Proc. R-4052/98
Rec. n.º 12/B/98
1998.12.17
Área: A6
Sequência: Sem resposta

Recebi uma queixa a propósito da Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro, diploma que visa regular o art. 82.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

Aduzindo diversos argumentos no sentido da eventual inconstitucionalidade daquela legislação, sustenta o reclamante que a Lei n.º 62/98 não contém, por ausência de regulamentação dos seus preceitos, os requisitos mínimos de segurança jurídica imprescindíveis ao respectivo cumprimento, estando desde logo, e por esse motivo, comprometida a efectiva aplicabilidade do diploma.

Esclareço que entendi dispensável o cumprimento do art.º 34.º da Lei 9/91, de 9 de Abril. Se a tutela efectiva do reclamante impunha a maior celeridade, julgo também que esta norma prevê o caso em que existem factos eventualmente controvertidos, mas já não quando esteja em causa a mera interpretação de normas jurídicas. Além disso, recebi cópia da informação 58/GDA/98, tão recente que me permiti presumir representar a opinião actual desse Ministério.

Apesar de se tratar de diploma legislativo emanado da Assembleia da República, dirijo-me a Vossa Excelência enquanto titular de pasta com particulares responsabilidades na sua execução e decisor político essencial no impulso para a sua eventual alteração.

Não contesto a bondade da opção legislativa pela criação da obrigação de pagamento da quantia adicional para benefício dos autores, editores, intérpretes e produtores, aliás consequência da opção já gizada no Código do Direito de Autor.

Julgo, no entanto, pertinente, sem prejuízo de futuramente tomar posição sobre a questão da constitucionalidade das normas que estabeleceram o processo de fixação e cobrança dessas quantias, adiantar que entendo que a Lei n.º 62/98 se mostra, nos termos em que está feita, inexequível por si mesma.

De facto, bastará uma simples leitura do diploma para se concluir que o núcleo essencial do diploma não é passível de ser satisfeito apenas pela aplicação dos preceitos dele constantes, carecendo de outras normas que o completem, por forma a dotá-lo de efectiva aplicabilidade.

Antes de mais, é razoável que seja conhecido, em concreto, o tipo de bens que se encontram sujeitos ao pagamento da quantia a que se refere o art. 2.º do diploma, sob pena de ninguém se entender neste domínio.
A formulação genérica prevista no mencionado normativo e consubstanciada na expressão “todos e quaisquer”, contende necessariamente com uma realidade associada a um universo de bens relativamente ao qual nem sempre se mostra possível aplicar de forma inequívoca o critério definido pelo legislador.

Alguns exemplos são adiantados pela reclamante, que questiona, na queixa apresentada, se “um ditafone, um atendedor de chamadas, uma camcorder, um offset, um aparelho de telefax, uma máquina de escrever, bem como o papel enquanto suporte” estarão abrangidos pela legislação.
O caso do papel é paradigmático. Enquanto suporte natural das fotocópias, deverá ele ser alvo da medida legislada ao mesmo título que o suporte de outras reproduções?

A ausência de uma definição rigorosa – que é passível de ser feita – da delimitação do âmbito de aplicação do dispositivo legal em causa, acarretará os riscos inerentes a uma interpretação e aplicação díspares do preceito, provocando desigualdades no tratamento designadamente dos consumidores.

A imprevisibilidade e a insegurança jurídica estarão inevitavelmente instaladas no seio de fabricantes, importadores e adquirentes de aparelhos e suportes eventualmente abrangidos por formulação tão ampla.
Não basta remeter para experiências similares em países estrangeiros, como fonte de dilucidação de dúvidas interpretativas. Sem prejuízo da sua importância no estudo das motivações legislativas, esse elemento histórico não é porventura decisivo, pelo menos inequívoco, no confronto com os outros elementos de interpretação. E, como Vossa excelência bem concordará, a actividade económica não deve ser gratuitamente eriçada de incertezas e imprecisões, mais do que a natureza dos factos e o interesse público exigem.

Questão idêntica se pode pôr a respeito da confusa formulação do art.º 3.º. Nomeadamente, confrontando os seus n.ºs 1 e 3, ficamos sem saber se a norma do n.º 3 é supletiva em relação ao n.º 1 ou pretende ter outro tipo de relação. De qualquer modo, permito-me alertar Vossa Excelência para o teor do artigo 112.º, n.º 6, da Constituição.

O mesmo se passa quanto à expressão “preço de venda estabelecido pelos respectivos fabricantes e importadores”, utilizada pelo n.º 3 do art.º 3.º da Lei, a qual originou, desde logo, a dúvida sobre se tal preço se reportaria aos preços constantes das tabelas de preços ou aos preços de venda efectivos. A diferença é naturalmente substancial.

A insuficiência do diploma é também notória quanto aos procedimentos indispensáveis para que as transacções possam beneficiar do regime de isenção previsto no art. 4.º da Lei. Apenas é dito que existe um regime de isenção e quais as entidades que, de forma genérica, poderão usufruir do mesmo. Todo o procedimento que lhe está inerente se encontra por definir. Uma forma de certificação que não oferecesse dúvidas a ninguém era aconselhável, para bem de todos os intervenientes.

A falta de regulamentação legal é igualmente sentida quanto aos acordos a que alude o art. 3.º, n.º 2. E ainda quanto aos mecanismos de cobrança da quantia, cuja previsão se reconduz ao art. 5.º.
Permito-me duvidar da bondade do diálogo instituído como fonte principal de toda esta figura tributária. E, sem dúvida alguma, não pode haver lugar a uma confiança cega no diálogo entre todos os intervenientes sobre factos passados, o que sucederia caso a pessoa colectiva prevista no art.º 6.º fosse, após a sua constituição, negociar, o que em si mesmo já é um critério de imprecisão e insegurança, os termos em que este tributo é devido, não em relação a transacções futuras, mas sim em relação a factos já ocorridos.

Neste particular, julgo particularmente inadmissível que se escreva, como o faz a informação do Ministério de Vossa Excelência acima citada, no seu n.º 5, 2.º parágrafo que, embora legalmente previsto, determinado pagamento possa ser afastado por acordo entre as partes. Ou bem que estamos perante relações entre privados, e aí o Estado não deve interferir, ou bem que estamos perante o cumprimento de uma obrigação imposta por lei, por razões, presume-se, de interesse público, cujo cumprimento não pode estar dependente da boa vontade das partes. Onde é que está a segurança da parte passiva dessa obrigação, no dia de hoje?
Deverá integrar na sua estrutura de custos essa despesa adicional ou deverá confiar na “curialidade” de uma pessoa colectiva ainda inexistente?
Em última análise, a Lei n.º 62/98 nunca será exequível sem a constituição, em concreto, desta pessoa colectiva. De facto, todo o procedimento de liquidação e cobrança resultará incompleto se as quantias não puderem ser entregues à entidade que procederá à respectiva gestão, não podendo, por natureza, ser celebrados os “acordos” em que esta lei é prolixa.

Mesmo que aquela venha a ser formalizada num futuro próximo, como adiantam o Ministério de que Vossa Excelência é titular e algumas notícias na comunicação social, ficarão por definir todos os aspectos supra mencionados.
A regulação do art. 82.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos é matéria delicada, que exige profunda reflexão, sendo que qualquer decisão neste domínio deverá passar por uma solução de equilíbrio entre os diversos interesses em causa, tendo em conta preocupações de proporcionalidade na afectação dos meios aos fins que se visa prosseguir.

Não creio, à partida, que tais princípios estejam devidamente salvaguardados na solução encontrada pelo legislador.
Por seu turno, a Lei n.º 62/98 suscita-me sérias dúvidas quanto à constitucionalidade de algumas das soluções nela consagradas, como o modo de fixação e o mecanismo de cobrança da quantia em causa, atenta a natureza desta, com ampla remissão para normas e procedimentos extra-legais.

De qualquer forma, e para já, visto que a legislação em vigor cria uma situação de profunda indefinição, incerteza e insegurança para os respectivos destinatários, inadmissível num Estado de Direito, considero que este aspecto é merecedor, no momento, de uma resposta pronta e eficaz.

A propósito do princípio geral da segurança jurídica, afirma J. J. Gomes Canotilho que “o princípio da determinabilidade das leis reconduz-se (…) a duas ideias fundamentais. A primeira é a da exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto. A segunda aponta para a exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo (…) que não contém uma disciplina suficientemente concreta (=densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos”.(in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pág. 251).

As queixas dos cidadãos que, na prática, estão obrigados a cumprir a lei, no caso conhecedores da realidade que a mesma visa regulamentar, e que sentem as dificuldades inerentes ao respectivo cumprimento ao ponto de o considerarem inviável – sendo manifesto que a legislação em causa não assegura de todo as exigências de precisão e determinabilidade dos actos normativos -, devem ser objecto de uma actuação expedita por parte de quem, num Estado de Direito, tem competência para conferir algum sentido útil ao princípio da segurança jurídica.

Reafirmo a Vossa Excelência o que escrevi no início. Não me merece reparo a decisão de instituir uma forma de remuneração análoga à pretendida pela legislação ora em apreço. Será contestável a sua concreta formulação legislativa e é-o decerto a forma bastante imprecisa e precipitada como se quer aplicá-la.

Se é natural que qualquer medida deste tipo, forçosamente, agrada a uns e desagrada a outros, é mister que a actuação reguladora dos poderes públicos se faça de modo a minimizar a conflituosidade e perturbação que provavelmente se possa fazer sentir.
Sem prejuízo de outro tipo de actuação, entendo que é obrigação do Estado reconhecer os limites de exigibilidade das leis que cria, contribuindo para a sua função primordial de prossecução da justiça.

A aproximação do fim do ano acarreta grande preocupação aos interessados, nomeadamente com a incerteza quanto à exigibilidade, em qualidade e quantidade, de qualquer adicional, com os efeitos perniciosos em termos contabilísticos e fiscais.
Assim, e ao abrigo do art. 20.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO,

Que as disposições contidas nos arts. 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 9.º da Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro, sejam interpretadas no sentido de não serem aplicáveis até se mostrarem cumpridas, cumulativamente, a regulamentação de tais normativos, e a instituição, em concreto, da pessoa colectiva consignada no art. 6.º do diploma.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA
Menéres Pimentel