RECOMENDAÇÃO N.º 17/A/2006
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]
Entidade visada: Presidente do Conselho de Administração da EDA – Electricidade dos Açores, S.A.
Proc.º: R-1700/06
Data: 22.11.2006
Área: A2 (Aç)
Assunto: Serviço público essencial. Prescrição de dívidas.
I
INTRODUÇÃO
1. No interesse do Senhor M, morador na Canada de Belém, n.º X, em Angra do Heroísmo, está em curso de instrução neste órgão do Estado um processo relativo a uma factura de “actualização de estimativas de leitura“, apresentada àquele vosso cliente.
1.1. De facto, embora o utente ora reclamante tivesse pontualmente pago os valores de consumo apresentados pela empresa, a EDA veio exigir o pagamento de verbas adicionais, correspondentes à leitura de valores que alegadamente não pudera ser efectuada em casa do mesmo, por inacessibilidade do contador, num período que vai de Outubro de 2002 a Outubro de 2005.
1.2. O reclamante, sob cominação de corte de energia eléctrica, procedeu ao pagamento da dita factura de “actualização de estimativas de leitura“.
2. A instrução visou apurar os termos em que foi considerada por essa Empresa a imposição do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, que prevê mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais.
3. Pelo ofício mencionado em epígrafe, a empresa protestando não pôr em causa a lei dos serviços públicos essenciais, deu conta dos esforços empreendidos para conseguir a leitura dos valores de consumo de electricidade em falta.
II
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
Tendo presente o que antecede, devo invocar aqui, mutatis mutandis, o que já tive oportunidade de referir em outras ocasiões (1) em que foi suscitada a questão da prescrição de dívidas relacionadas com serviços públicos essenciais.
4. De facto, a questão central a tratar prende-se com a interpretação a dar ao normativamente disposto no n.° 1 do artigo 10.º da Lei n.° 23/96, de 26 de Julho, diploma que veio criar mecanismos de protecção do utente de serviços públicos essenciais.
Não subsistindo qualquer dúvida de que os contratos para fornecimento de electricidade estão submetidos à disciplina da Lei n. ° 23/96, de 26 de Julho, cabe verificar se, no caso concreto, os respectivos pressupostos estão ou não verificados.
5. Começo por salientar, pela importância que tais contributos encerram, que a questão colocada tem sido frequentemente apreciada nos planos doutrinário e jurisprudencial, onde correntemente se tem concluído no sentido de que, com a entrada em vigor do diploma que veio criar mecanismos de protecção do utente de serviços públicos essenciais, a prescrição como facto extintivo de obrigação que o utente do serviço público essencial haja assumido já não carece do decurso do prazo de cinco anos do artigo 310.º do Código Civil, bastando-se com os seis meses estabelecidos no n.° 1 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.
Por outras palavras, dir-se-á que, para conferir um maior grau de protecção ao utente do serviço, o sistema jurídico deixou de aplicar a estas situações o prazo consagrado no Código Civil, que passaram a reger-se pelo n.° 1 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.
6. Ora, tudo sopesado, também creio ser esta a via que mais adequadamente se compagina com o escopo da Lei n.° 23/96, de 26 de Julho, com a qual indubitavelmente se pretendeu não só salvaguardar o utente das entidades com as quais se vê obrigado a contratar, mas também a defendê-lo de si próprio relativamente à possibilidade de sobre-endividamento por consumo de bens que visam a satisfação de necessidades primárias, básicas e essenciais dos cidadãos.
8. Na verdade, reclamando a especial natureza dos serviços em causa a adopção de soluções que, de modo eficaz, permitam prevenir e impedir um excessivo avolumar de pagamentos, que o utente não raras vezes encontrará dificuldade em regularizar, foi entendido impor ao respectivo prestador, in casu do serviço público essencial previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, a obrigação de exercer o seu direito de crédito no prazo de seis meses, contado a partir do momento em que o possa fazer, ou seja, do termo de cada período da relação mensal obrigacional duradoura e de execução continuada.
9. Por outro lado, cabe igualmente dizer que, para ter por exercido o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado, a que se reporta o n.° 1 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, não basta ao prestador do serviço proceder à emissão e entrega da factura/recibo no prazo de seis meses ali fixado, já que tal interpelação, não suspendendo nem interrompendo o prazo de caducidade, apenas releva para efeitos de determinação do momento da constituição do utente em mora, nos termos do artigo 805.º do Código Civil.
10. É que, como foi já solidamente sustentado pelo Prof. Calvão da Silva em anotação a Acórdão da Relação do Porto de 28 de Junho de 1999 (in RU, Ano 132.º, págs. 135 e segs.) “não pode pensar-se que o n.° 1 do artigo 10.º da Lei n.° 23/96 valha (só) para a liquidação da dívida, enquanto para o crédito assim apurado ou liquidado se continuaria a aplicar a aI. g) do artigo 310.º do Código Civil”.
11. Com efeito, conforme salienta o mesmo autor, “semelhante interpretação não tem fundamento válido, consistente, constituiria um non-sense e seria mesmo contra-Iegem.”
12. É, pois, manifesto que a norma sob apreciação operou uma redução substancial do prazo de prescrição dos créditos periódicos provenientes da prestação de serviços públicos essenciais, como é o serviço de fornecimento de electricidade, cujo decurso, em razão da natureza extintiva ou liberatória da prescrição, confere ao utente a possibilidade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, de qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.
13. Com efeito, tendo por objectivo sancionar a indiferença e a inércia do credor em fazer prevalecer ou exigir o seu direito, a prescrição extintiva semestral converte a obrigação civil em obrigação natural.
14. A conclusão a que chego, em boa medida plasmada em decisões judiciais e no estudo a que me referi, é a de que, com a Lei n.° 23/96, de 26 de Julho, o legislador quis estabelecer um prazo prescricional novo e mais curto do que o previsto no Código Civil, dentro do qual cumpre à entidade gestora não só proceder à apresentação da factura como, não sendo voluntariamente paga a obrigação pecuniária, praticar qualquer acto com eficácia suspensiva ou interruptiva do decurso do prazo de prescrição, como seja “a citação ou notificação judicial [sublinhado meu] de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito” (cfr. artigo 323.°, n.° 1, do Código Civil).
III
CONCLUSÕES
Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO a V. Ex.ª:
Que, à luz do n.° 1 do artigo 10.° da Lei n.° 23/96, de 26 de Julho, que veio estabelecer, por um lado, a prescrição extintiva semestral dos créditos periódicos por prestação de serviços públicos essenciais e, por outro lado, que a suspensão ou interrupção de tal prazo prescricional apenas ocorre com a verificação de algum dos factos a que a lei civil confere eficácia suspensiva ou interruptiva da prescrição (cfr. artigos 318° e seguintes do Código Civil), ordene a restituição dos valores prescritos indevidamente cobrados ao utente reclamante. |
Permito-me lembrar a V. Ex.ª a circunstância da formulação da presente recomendação não dispensar, nos termos do disposto no artigo 38.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, a comunicação a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues
Notas de rodapé:
(1) Vide, por todas, a minha Recomendação n.º 5/A/2005, de 28 de Outubro, formulada na sequência de queixa apresentada sobre a exigência, pela Câmara Municipal do Barreiro, do pagamento de dívidas de consumo de água quando já haviam decorridos mais de seis meses sobre a data da prestação do serviço em causa.