A S. Exa.
o Secretário de Estado da Cultura
Palácio Nacional da Ajuda
1300-018 LISBOA
 
 
 
 
 
 
V.ª Ref.ª
 
V.ª Comunicação
 
Nossa Ref.ª
Proc. Q-777/12 (A1)
 
 
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 6 /A/2013
(artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013,
de 18 de fevereiro)
 
 
 
 
 
Assunto: Imóveis e conjuntos classificados – Obras de conservação
 
 
1.    Dirijo-me a V. Ex.a, depois de concluir a apreciação de uma queixa que me foi apresentada por indivíduo identificado, e em cujo teor se afirmava que a Câmara Municipal do Porto descurara o exercício dos seus poderes relativamente a uma operação urbanística executada em imóvel sito nas Escadas dos Guindais, freguesia da Sé, no perímetro da zona histórica do Porto, classificada de interesse público pelo Decreto n.º 67/97, de 31 de dezembro. Justificava-se averiguar também o que fizera a Direção Regional de Cultura do Norte.
2.    Em resultado das averiguações, vim a concluir que o Código Regulamentar do Município do Porto contém, no seu artigo B-127.º, n.º 1, alínea a)[1], uma disposição que infringe o disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea d), do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE[2]), com o qual se deve conformar, sob pena de invalidade.
 
3.    Se, por um lado, o RJUE sujeita a licença municipal as obras de conservação em imóveis ou conjuntos classificados, já a disposição regulamentar do Porto estatui o seguinte:
 
«(…) são consideradas de escassa relevância urbanística, ficando isentas de controlo prévio municipal, segundo o disposto no artigo 6.º-A do RJUE: (…) a) Todas as obras de conservação, independentemente de serem promovidas em imóveis classificados ou em vias de classificação ou em imóveis integrados em conjuntos ou sítios classificados ou em vias de classificação, sem prejuízo do cumprimento da legislação especificamente aplicável a cada caso concreto.»
 
4.    No termo da análise das questões controvertidas, recomendei à Câmara Municipal do Porto que revogasse aquela norma regulamentar ilegal. Junto cópia da Recomendação para conhecimento de V. Ex.a.
 
5.    A situação que é objeto de queixa reporta-se à afixação de uma chapa metálica, revestida por placas de fibrocimento, sobre a fachada de uma edificação, introduzindo um novo material no revestimento e alterando substancialmente as condições estéticas, dentro do perímetro classificado como conjunto de interesse público.
 
6.    Receio, contudo, que a prática administrativa que vem sendo desenvolvida pelas autoridades municipais do Porto, a coberto da citada norma, possa ter prejudicado a salvaguarda da Zona Histórica do Porto, seja por falta de controlo prévio de genuínas obras de conservação seja por falta de controlo de outras obras sob o mesmo rótulo formal, como creio tratar-se do caso concreto.
 
7.    É grave que o próprio município se entenda desvinculado de solicitar autorização à Direção Regional de Cultura do Norte ou exigir a sua exibição pelo interessado a respeito das obras de conservação, dentro da Zona Histórica. Mas não deixa de ser relevante que a Direção Regional de Cultura fique dependente do município do Porto ou de outros municípios que, por hipótese, tenham aprovado ou venham a aprovar regulamentos ou posturas com o mesmo alcance.
 
8.    O Diretor de Serviços de Bens Culturais levara a questão à consideração do antecessor de V. Ex.ª[3].
 
9.    Começara por pedir a cooperação da Câmara Municipal do Porto. Na falta de um projeto de obra, estariam as autoridades municipais, após vistoria ao local, em condições de corresponder ao pedido formulado pela Direção Regional de Cultura do Norte, facultando melhor informação sobre a natureza e caraterísticas da intervenção efetuada no imóvel, e habilitando-a com os elementos necessários à pronúncia que, no âmbito das suas atribuições, lhe cabe levar a cabo.
 
10.Não teve outra resposta senão a de que o assunto estaria fora das atribuições do município do Porto, por aplicação do citado artigo B-127.º, n.º 1, alínea a), do Código Regulamentar. 
 
11.Fico em crer, de todo o modo, que a Administração do património cultural se encontra demasiado vinculada ao maior ou menor controlo exercido pelas câmaras municipais sobre as operações urbanísticas, talvez porque até há bem pouco tempo a generalidade das obras dependiam de licença, de autorização ou, pelo menos, de comunicação prévia.
 
12.Por regra, a intervenção da Administração do património cultural é enxertada no procedimento administrativo municipal, por meio de um parecer ou de uma autorização ou aprovação que, além de obrigatórios, são vinculativos[4].
 
 
 
13.Todavia, o Estado não pode depositar inteiramente o cuidado do interesse nacional nas atribuições dos municípios, sem dispor de meios próprios de fiscalização e controlo que lhe permitam fazer face a situações de inércia ou, como sucede no Porto, de renúncia ao exercício de competências.
 
14.Até agora, as alterações de que o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE) tem sido objeto, sobretudo, por meio da Lei n.º 60/2007, de 4 de setembro, e por meio do Decreto-Lei n.º 26/2010, de 30 de março, têm tido o cuidado de não criar hiatos na coordenação deste regime jurídico com a Lei de Bases da Política e do Regime de Proteção e Valorização do Património Cultural).
 
15. Vejamos o caso das obras de escassa relevância urbanística. O legislador, ao considerar de escassa relevância as obras enunciadas no artigo 6.º-A, n.º 1, do citado RJUE, e ainda aquelas que, como tal sejam qualificadas por regulamento municipal, está a pensar apenas na escassa relevância urbanística.
 
16.Além de ter fixado a sujeição das obras de conservação nos imóveis ou conjuntos classificados a licença municipal (artigo 4.º, n.º 2, alínea d)), avisadamente, excetuou, de modo inequívoco, ao âmbito da categoria obras de escassa relevância urbanística, por meio do artigo 6.º, n.º 2:
 
«As obras e instalações em imóveis classificados ou em vias de classificação, de interesse nacional ou de interesse público, as obras e instalações em imóveis situados em zonas de proteção de imóveis classificados ou em vias de classificação e as obras e instalações em imóveis integrados em conjuntos ou sítios classificados ou em vias de classificação».
 
17.Contudo, o Estado tem de precaver-se contra situações em que os órgãos dos municípios deixem de exercer os seus poderes com o efeito de a proteção de monumentos nacionais ou outros imóveis classificados ficarem à mercê de vicissitudes locais.
 
18.Constitucionalmente, os municípios respondem apenas pelos interesses próprios das populações respetivas (artigo 235.º, n.º 2), os quais podem porventura entrar em colisão com o interesse nacional.
 
19.Privada de instrumentos jurídicos que lhe assegurem uma tutela substitutiva, em caso de omissão municipal, mas vinculada ao princípio constitucional da subsidiariedade (artigo 6.º, n.º 1), a Administração central do património cultural tem de dispor de instrumentos que lhe permitam, pelo menos, supletivamente, agir.
 
20.No caso que pude analisar, tornaram-se evidentes as contingências da Direção Regional de Cultura do Norte para enfrentar a constatação de obras a serem executadas num conjunto histórico classificado.
 
21.O que o Diretor fez, e bem, foi comunicar ao antecessor de V. Ex.a esta situação pontual. Seria prudente criar meios de uma efetiva autonomia da Administração central para não depender inteiramente dos órgãos municipais: ao menos, dispor de um efetivo mínimo de serviços operativos de fiscalização.
 
22.Um outro meio que poderá eventualmente aperfeiçoar a atividade administrativa neste domínio é o da concertação e coordenação entre o Estado e os municípios.
 
23.No caso que analisei, tratava-se de obras de conservação a que o proprietário fora intimado pelas autoridades municipais do Porto.
 
24.Pondero que, nestas situações, onde se conjuga o interesse urbanístico do município e o interesse do património cultural a cargo do Estado, as intimações devessem ser coordenadas por dois órgãos: a câmara municipal, por conta do artigo 89.º do RJUE, e o órgão da Administração do património cultural, por conta do artigo 46.º da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro (Bases da Política e Regime de Proteção e Valorização do Património Cultural).
 
25.A intimação já poderia, assim, incluir todas as condições e requisitos a satisfazer no decurso dos trabalhos e no resultado final a alcançar.
 
26.Em consonância com esta simplificação, os técnicos da Administração do património cultural deveriam tomar parte na vistoria que obrigatoriamente precede a intimação para obras de conservação extraordinária (artigo 90.º do RJUE).
 
27.Para este efeito, dispõem o Estado e os municípios de uma ampla autonomia para outorgarem contratos administrativos, o que, aliás, converge com o disposto, para os conjuntos ou sítios classificados, no artigo 54.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, em cuja alínea e) expressamente se aponta para coordenação em matéria de «identificação das condições e da periodicidade das obras de conservação de bens imóveis ou grupos de bens imóveis». Isto de par com a previsão das competências específicas de autorização pela Administração do património cultural e de licenciamento pelas câmaras municipais, no mesmo procedimento administrativo (artigo 54.º, n.º 2).
 
 
 
CONCLUSÃO
            Nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, e em face das motivações precedentemente apresentadas, recomendo a V. Ex.ª que promova:
 
(i)            A dotação de um mínimo de meios à Direção Regional de Cultura do Norte que lhe permita não depender inteiramente dos municípios para fiscalizar e controlar operações urbanísticas nas suas áreas de jurisdição;
 
(ii)          A coordenação com o município do Porto (e com outros, eventualmente) do exercício dos poderes de intimação aos proprietários para levarem a cabo obras de conservação ordinária ou extraordinária (artigo 46.º, da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro) nos edifícios respetivos, a fim de abreviar procedimentos e evitar contradições;
 
(iii)          A averiguação nas posturas ou regulamentos de outros municípios que, de algum modo, infrinjam a legalidade urbanística, na parte em que esta assume a proteção, salvaguarda e promoção do património cultural edificado.
 
            Dignar-se-á V. Ex.ª comunicar-me, nos próximos 60 dias, para cumprimento do disposto no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.
 
Queira aceitar, Senhor Secretário de Estado, os meus melhores cumprimentos,
 
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
 
Alfredo José de Sousa
 
Anexo: cópia da Recomendação formulada à C.M. do Porto.


[1] Aprovado pela Assembleia Municipal do Porto, em reunião de 14 de fevereiro de 2008, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 56, de 19 de março, de 2008, na redação publicada sob o aviso n.º 13030/2012, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 189, de 28 de setembro de 2012.
[2] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, e republicado com as sucessivas alterações pelo Decreto-‑Lei n.º 26/2010, de 30 de março, a que acrescem as demais, introduzidas pela Lei n.º 28/2010, de 2 de setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 266-B/2012, de 31 de dezembro.
[3] Ofício n.º 730773/6/06/2011/DRC-N/DSCB.
[4] Artigos 13.º e 13.º-A do RJUE e artigos 43.º, n.º 4, e 45.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro.