RECOMENDAÇÃO N.º 14/A/2001
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)
Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Póvoa de Varzim
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-2580/99
Data: 2001/07/31
Assunto: Contrato de compra e venda de parcela sobrante de prédio rústico. Culpa in contrahendo por violação dos deveres de boa-fé na formação dos contratos.
I – DOS FACTOS
Foi solicitada a intervenção do Provedor de Justiça junto da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim por não se conformar o impetrante com os prejuízos decorrentes da limitação à capacidade edificatória imposta para a parte sobrante do prédio rústico denominado “Campo da Rapada”, em contradição com os termos acordados no âmbito do contrato de compra e venda que celebrou com essa Câmara Municipal.
Foi V. Exa. convidado a pronunciar-se quanto à questão exposta.
Analisados os argumentos invocados, e os demais elementos carreados para a instrução do processo, concluí:
1. Em 8 de Setembro de 1995, o reclamante vendeu à Câmara Municipal da Póvoa de Varzim uma parcela de terreno com a área de 2.480m2, situada no Lugar de Fraião, Freguesia de Beiriz, pelo preço de 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos).
2. A parcela vendida ao Município havia sido desanexada do prédio rústico, de lavradio, denominado Campo da Rapada, com a área total de 4.680 m2.
3. A parcela vendida à Câmara Municipal de Póvoa de Varzim ficou destinada à construção da Escola C+S de Beiriz.
4. Através do mesmo contrato de compra e venda que titulou a transação, a Câmara Municipal da Póvoa do Varzim garantiu à parte sobrante do prédio “viabilidade de construção nos termos e condições definidas na planta anexa ao presente contrato”, o que resultou de um estudo de arranjo urbanístico e ordenamento para a zona envolvente, realizado pelos serviços da Câmara Municipal, em 1994.
5. O contrato de compra e venda em análise, e a respectiva minuta de escritura pública, foram precedidos de aprovação da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, tomada em deliberação de 7 de Agosto de 1995.
6. Já em 7 de Abril de 1995, a Assembleia Municipal da Póvoa do Varzim havia aprovado o Regulamento do Plano Director Municipal da Póvoa de Varzim (PDM), que veio a ser ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 91/95, de 22 de Setembro, prevendo que a área onde se integra a parcela em causa ficaria afecta à construção de equipamentos e serviços de uso púbico, incluindo os de interesse turístico (art. 20º).
7. Em 26 de Agosto de 1997, o reclamante requereu à Câmara Municipal da Póvoa de Varzim licença para a construção, na parcela de que permanecia como proprietário, de edifício conforme com os parâmetros urbanísticos que se encontravam definidos na planta anexa ao contrato de compra e venda que as partes haviam celebrado em 8 de Setembro de 1995.
8. Por ofício de 7 de Julho de 1998, a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim notificou o reclamante da sua decisão de indeferir a pretensão de construir que este havia apresentado.
9. Entendia, para tanto, a Câmara Municipal, que o acto traduzido no clausulado do contrato de compra e venda que celebrou com o reclamante, em 8 de Setembro de 1995, no qual se conferia viabilidade de construção à parcela sobrante do prédio nos termos previstos na planta anexa ao mesmo contrato, se reconduzia à figura da deliberação favorável da Câmara Municipal tomada em sede de pedido de informação prévia.
10. Assim, entendia dever aplicar-se ao caso em apreço a disciplina contida no art. 13º do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, com as alterações que lhe sucederam, e que aprovou o regime jurídico do licenciamento municipal de obras particulares (RJLMOP).
11. Nestes termos, e porque tal deliberação, sendo constitutiva de direitos, só é vinculativa para um eventual pedido de licenciamento apresentado dentro do prazo de um ano contado da data da sua comunicação ao requerente, constatou que aquando da apresentação da pretensão de construir (26 de Agosto de 1997), já não estava obrigada a respeitar o teor daquele acto.
12. Assim sendo, e porque veio o PDM da Póvoa de Varzim a afectar a área onde se integra a parcela de terreno em questão a equipamentos e serviços de uso público, entendeu que a pretensão de construir apresentada pelo reclamante não poderia proceder.
13. Tão pouco, teria o reclamante qualquer direito a indemnização decorrente de tal limitação, já que o facto de não ter beneficiado do acto transcrito no contrato de compra e venda teria resultado da opção que tomou, de apresentar o pedido de licenciamento da construção quando já há muito se encontrava ultrapassado o prazo de um ano previsto no supra invocado art. 13º do RJLMOP.
II – DOS FUNDAMENTOS
14. É certo que o art. 13º do RJLMOP veio prever que a deliberação da câmara municipal, favorável a um pedido de informação prévia, só é vinculativa para o pedido de licenciamento que lhe suceda no prazo de um ano contado da notificação ao requerente.
15. E bem se compreende que assim o seja.
16. É que é esta uma forma de salvaguardar a boa fé, a confiança legítima e a segurança jurídica dos Administrados (neste caso, os interessados em realizar determinada operação urbanística) permitindo, ao mesmo tempo, a natural evolução do ordenamento do território, através da busca constante de novas soluções que permitam uma melhor utilização e repartição dos recursos naturais e das actividades económicas, de acordo com opções de índole técnica e política.
17. Assim, uma deliberação favorável a um pedido de informação prévia transporta, para a esfera jurídica dos interessados, um direito a construir, nos precisos moldes que constam da mesma deliberação, pelo prazo previsto na lei.
18. É certo que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém.
19. Não poderia, pois, o requerente de pedido de informação prévia que obteve decisão favorável naquela sede, vir legitimamente invocar, ultrapassado o prazo de um ano contado da data em que foi notificado da deliberação, que lhe foi gorada, com uma posterior decisão desfavorável quanto ao pedido de licenciamento apresentado, a expectativa de construir criada no âmbito da informação prévia.
20. Mas também é certo que, tal exigência ao administrado, só fará sentido se constatarmos estar perante um processo desenvolvido nos termos do prescrito nos art. 10º a art. 13º do RJLMOP.
21. Não foi o que se passou no caso em apreço.
22. Efectivamente, o que aconteceu, foi que a Câmara Municipal optou por fazer uso de um instrumento jurídico do direito privado (um contrato de compra e venda) para dar satisfação ao interesse público que visava prosseguir.
23. Sujeitou, pois, a disciplina da relação constituída nesse âmbito, ao direito civil obrigacional.
24. Na verdade, dos elementos carreados para a instrução do processo, resulta, com clareza suficiente, que os parâmetros de edificação definidos para a parcela sobrante do Campo da Rapada, que se manteve na titularidade do impetrante, não foram definidos no âmbito de um processo desencadeado nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 10 a 13º do RJLMOP.
25. Aqueles parâmetros de edificação resultaram de um estudo para o local realizado pelos serviços municipais, que veio a ser incluído no contrato de compra e venda celebrado entre a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim e o reclamante.
26. Incluir tal definição no clausulado do contrato de compra e venda, leva a crer tratar-se de uma contrapartida da aquisição, em complemento do pagamento do preço (a não ser assim, não se retiraria qualquer sentido útil de tal inclusão naquele documento).
27. Entendo, pois, que não colhe a argumentação expendida pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, no sentido de se dever reconduzir aquela clausula contratual à previsão contida nas normas legais objecto de apreciação.
28. Não é de excluir que possam ser definidos, em sede contratual, os parâmetros urbanísticos a que há-de obedecer determinada edificação, desde que o seu resultado não conduza, no momento da celebração, a uma solução contrária ao legal ou regularmente prescrito.
29. Mas por que tais parâmetros se reconduzem a um mero acordo de vontades, este não tem a força jurídica suficiente para perdurar no tempo em contrário ao estipulado, designadamente, em instrumento de planeamento territorial posterior (ao invés do que acontece, como já acima se viu, com a deliberação favorável da Câmara Municipal tomada em sede de pedido de informação prévia, nos termos determinados pelo art. 13º RJLMOP).
30. Ou seja, voltando ao caso vertente, a partir da data da entrada em vigor do PDM da Póvoa de Varzim, não mais seria possível ao reclamante obter decisão favorável a pedido de licença de construção apresentado em conformidade com o previsto naquela cláusula contratual, porque em desrespeito com o prescrito no instrumento de ordenamento do território em vigor.
31. Efectivamente, o art. 52º, nº 2, al. b) do RJLMOP, comina com a nulidade o acto administrativo que decida pedido de licenciamento de construção em violação ao disposto em plano municipal de ordenamento do território.
32. Mas a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim bem sabia, à data em que aprovou o negócio com o reclamante e o clausulado em que o respectivo contrato se sustentou (7 de Agosto de 1995), que a breve trecho este ficaria impedido de construir nos termos a que ela ali se comprometia (edifício com três pisos destinado a dez habitações).
33. E bem o sabia porque, recorde-se, a Assembleia Municipal da Póvoa de Varzim já havia aprovado, em 7 de Abril de 1995, o PDM, e na sequência desta aprovação a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim já havia iniciado o processo de ratificação, que veio a culminar, 14 dias após a celebração do contrato, na Resolução do Conselho de Ministros nº 91/95, de 22 de Setembro, que concedeu eficácia às normas que estipulam as limitações conhecidas para o local.
34. Conclui-se, pois, que enquanto o processo de ratificação se encontrava a decorrer, a Câmara Municipal deliberou celebrar com o reclamante o contrato em apreço, nele estipulando uma outra contrapartida (para além do pagamento do preço ajustado), que previa vir a ser, a breve trecho, de impossível concretização, o que frustraria a previsão económica que havia levado o reclamante a com ela contratar nos moldes em que o fez.
35. “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele proceder segundo as regras de boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte” (art. 227º do Código Civil).
36. O dever de ética, legalmente traduzido no dever de boa fé, obriga a parte a agir com lisura, correcção, cuidado e diligência necessárias a permitir a futura satisfação da pretensão daquele que com ela contrata.
37. Ou seja, o dever de agir de boa fé aconselha a que o devedor se não obrigue a uma prestação que prevê, com segurança suficiente, que a breve trecho será impossível de concretizar.
38. “a figura constitutiva do dever pré-contratual de boa fé é a «relação de confiança» estabelecida entre as partes com o fim de prepararem o conteúdo do futuro contrato” (FRANCESCO BENATTI, A Responsabilidade Pré-Contratual, Coimbra, 1970, pag. 177).
39. Ou seja, o simples início das negociações cria entre as partes deveres recíprocos de lealdade, informação e esclarecimento.
40. A Câmara Municipal da Póvoa de Varzim tinha, pois, a obrigação de, na fase negocial, ter advertido o impetrante contra o risco que este assumiria com a celebração de um contrato nos moldes em que veio a ter lugar.
41. É que a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim assumia, nesta fase, uma posição privilegiada, que lhe advinha, mais não fosse, do facto de ter acesso privilegiado a um conjunto de informações.
42. Era pois razoável que o impetrante confiasse, como confiou, na bondade daquela cláusula, e que a aceitasse como contrapartida, para além do pagamento do preço.
43. Aliás, o cidadão que negoceia com a Administração Pública tem o direito de confiar, por excelência, na outra parte, dados os deveres especiais que se lhe cometem de respeito pela legalidade e pela justiça.
44. Se o impetrante tivesse sido avisado quanto aos riscos que corria, teria, certamente, de acordo com a ampla liberdade de negociação e de decisão de que as partes gozam na fase preliminar do contrato, ajustado a sua posição negocial de acordo com os objectivos que pretendia alcançar.
45. Perante a alteração do quadro jurídico que se adivinhava iminente, não se pode desculpar a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim de ter admitido a inclusão de uma cláusula com o conteúdo da em apreço, ou a admiti-la, de não ter previsto a substituição daquela obrigação por outra, caso se viesse a assistir à existência de facto jurídico impeditivo.
46. Entendo, pois, que existe culpa da Administração na formação do contrato.
47. A Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, atentas as informações de que dispunha, poderia e deveria ter alertado o outro contraente para o vício de direito que se avizinhava, ou seja, deveria ter prevenido o reclamante quanto aos riscos de impossibilidade do cumprimento.
48. E se entendia, como agora alega, que aquele cláusula poderia reconduzir-se à figura da deliberação favorável da câmara municipal tomada em sede de pedido de informação prévia quanto à capacidade edificatória de determinado prédio (e que portanto seria constitutiva de direitos durante o prazo de um ano a contar, neste caso, da data da celebração do contrato), não se compreende por que motivo isso mesmo não constava do clausulado do contrato, como forma de demonstrar a sua boa fé.
49. Conclui-se, pois, que quer na fase negocial, quer no momento da celebração, foram sonegadas à outra parte contratante informações relevantes quanto à iminente impossibilidade legal do objecto do negócio.
50. “se o devedor conhecia já no momento da constituição da obrigação a razão que iria subsequentemente inviabilizar o seu cumprimento, ao ilícito obrigacional consubstanciado no inadimplemento contratual acresce um ilícito autónomo, este pré-contratual, que é a omissão de informação ao credor da probabilidade de tal inviabilidade, com a consequente criação neste da convicção de que o negócio concluído é um instrumento apto para a satisfação do seu interesse, isto é, que está vocacionado para ser cumprido (…) Não se tratará, pois, de uma cumulação de direitos de indemnização dos mesmos prejuízos, mas tão só de proporcionar ao lesado uma reparação integral dos danos sofridos em consequência dos dois ilícitos” (ANA PRATA, Notas Sobre Responsabilidade Pré-contratual, Lisboa, 1991, pag. 96) .
51. Pelas informações privilegiadas de que dispunha, a Câmara Municipal deveria ter representado que, caso a outra parte estivesse suficientemente informada quanto ao exacto alcance e validade do compromisso plasmado naquela cláusula, nunca o teria aceite como contrapartida da venda.
52. Entendo, pois, que Câmara Municipal fez o reclamante incorrer em erro sobre um elemento essencial do contrato que, a ser conhecido a tempo, teria possibilitado a modificação dos termos negociais e evitado o dano que veio a sofrer.
53. “Quando os contraentes actuam por erro rompe-se a unidade do mútuo consentimento ao não corresponder o que querem com erro ao que queriam sem ele” (DURVAL FERREIRA, Erro Negocial e Alterações de Circunstâncias, Livraria Almedina Coimbra, 2ª edição, 1998, pag. 31).
54. Ponderado todo o exposto, entendo que deverá a Câmara Municipal da Póvoa d Varzim ser responsabilizada pelos danos causados ao reclamante em face da impossibilidade legal de cumprir a obrigação a que se comprometeu incluindo a cláusula em apreço, nos termos em que o fez, no contrato de compra e venda que celebrou.
55. E tais danos deverão ser calculados com base na diferença entre o valor actual daquela parcela e o valor que a mesma teria caso possuísse a capacidade edificatória prometida e definida na planta anexa ao contrato.
56. É que tal valor foi o que as partes entenderam que, somado à quantia em numerário acordada, perfaria o preço justo para pagamento da parcela que o reclamante se dispôs vender.
57. Com a aplicação de tal fórmula de cálculo poderá reconstituir-se a situação que existiria caso o reclamante, na posse das informações devidas, tivesse optado por substituir a “garantia de viabilidade de construção” pela quantia em numerário a pagar pela Câmara Municipal como contrapartida da venda .
58. Ou seja, a aplicação de tal critério permitiria conferir à parte lesada o benefício monetário de que esta se viu privada em consequência do incumprimento.
III – CONCLUSÕES
São estas motivações, Senhor Presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, que me aconselham dever recomendar a V. Exa. (ao abrigo do disposto no art. 20º, nº 1 al. a) da Lei nº 9/91, de 9 de Abril):
O pagamento ao Senhor AC, de indemnização a calcular em montante igual à diferença entre o valor actual daquela parcela, e o valor que a mesma teria caso possuísse a capacidade edificatória prometida e definida na planta anexa ao contrato de compra e venda celebrado. |
Nos termos do disposto no art. 38º, nº 2, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, solicito a V. Exa. que me comunique a posição assumida em face da presente Recomendação.
Com os melhores cumprimentos,
O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues