Recomendação n.º 1/B/2007
[art.º 20º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]



Entidade visada: Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional
Proc.º: R-3973/02
Data: 14.05.2007
Área: A6


Assunto: Santuário de Fátima. Parecer vinculativo.


1. Tendo sido apresentada ao Provedor de Justiça uma exposição a propósito da aplicação do disposto no artigo 1.º, parágrafo único, do Decreto-Lei n.º 37.008, de 11 de Agosto de 1948, nesta se suscitavam dúvidas acerca dos termos em que será ainda lícito permitir-se a obrigatoriedade da emissão de parecer favorável, por parte da direcção do Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, no âmbito dos processos de licenciamento para construção ou instalação de estabelecimentos públicos, a realizar na zona de protecção daquele local de culto.



2. Na verdade, veio o texto legal citado a criar uma zona de protecção do recinto do Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, dentro da qual, de acordo com o enunciado no respectivo exórdio, “a Câmara Municipal de Vila Nova de Ourém não poderá conceder licenças para construção ou reconstrução de edifícios particulares sem a prévia aprovação dos respectivos projectos, sobre parecer da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização”.



3. Tal intenção veio a ser efectivamente acolhida no artigo 1.º do diploma em análise, ao remeter os procedimentos a adoptar nesta matéria para “as disposições contidas no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 34.993, de 11 de Outubro de 1945”, que determinam a consulta prévia da entidade pública acima designada.



4. Esta entidade foi entretanto sucedida pelas comissões de coordenação e desenvolvimento regional, por força do disposto no artigo único, alínea a) do Decreto-Lei n.º 108/94, de 23 de Abril, e do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 104/2003, de 23 de Maio, na redacção a este dada pelo Decreto-Lei n.º 114/2005, de 13 de Julho.



5. Determina, por sua vez, o parágrafo único do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 37:008, de 11 de Agosto de 1948, que “os pedidos de licença para construção ou instalação de estabelecimentos públicos deverão ser instruídos com parecer favorável da direcção do santuário”. (sublinhado meu).



6. Resulta assim da articulação das disposições acima enunciadas que os processos de licenciamento, abertos junto da autarquia local citada, quando respeitem à construção ou instalação de estabelecimentos públicos a criar na zona de protecção em causa, deverão ser instruídos, tanto com parecer dos serviços do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, como com parecer favorável da direcção do Santuário de Fátima.



7. No tocante ao papel que legalmente é actualmente reconhecido à direcção do Santuário de Fátima, importa analisar, com maior detalhe, a natureza da intervenção da mesma nas operações urbanísticas referenciadas, objecto de licença administrativa.



8. De acordo com o preceituado no artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Fevereiro, que veio a aprovar o regime jurídico da urbanização e edificação, “no âmbito do procedimento de licenciamento há lugar a consulta às entidades que, nos termos da lei, devam emitir parecer, autorização ou aprovação sobre o pedido”.



9. Determina, por sua vez, o artigo 19.º, n.º 10, daquele diploma, que “as entidades exteriores ao município devem pronunciar-se exclusivamente no âmbito das suas atribuições e competências”.



10. Estabelece, por sua vez, o n.º 11 daquele preceito que “os pareceres das entidades exteriores ao município só têm carácter vinculativo quando tal resulte da lei, desde que se fundamentem em condicionamentos legais ou regulamentares” e sejam recebidos dentro dos prazos legalmente previstos.



11. Por fim, ainda de acordo com o estatuído no artigo 24.º, n.º 1, alínea c), do texto legal em causa, será indeferido o pedido de licenciamento quando “tiver sido objecto de parecer negativo, ou recusa de aprovação ou autorização de qualquer entidade consultada nos termos do presente diploma cuja decisão seja vinculativa para os órgãos municipais”.



12. Decorre assim do exposto, não restarem dúvidas, do ponto de vista do regime jurídico aprovado pelo diploma de 1999, acerca da legalidade do enquadramento actual da problemática existente em torno da consulta prévia levada a cabo nos moldes acima explanados.



13. Dúvidas essas que, de igual forma, não se colocam a propósito dos efeitos associados, a nível administrativo, à emissão de parecer negativo por parte da direcção do Santuário de Fátima, traduzida no obrigatório indeferimento do pedido de licenciamento que venha a estar concretamente em apreço.



14. Estar-se-á, assim, perante aquilo a que se pode denominar de vinculatividade relativa, na medida em que o parecer favorável do Santuário de Fátima não implica, automaticamente, o licenciamento em causa, ao contrário do que acontece quando as conclusões alcançadas no âmbito daquele vierem a ser desfavoráveis, obrigando, por si só, a autarquia local competente a exarar a decisão correspondente.



15. Nesta última situação, o mesmo parecer vem determinar, no exercício de um poder de controlo prévio, o conteúdo e o sentido da decisão administrativa assumida, em termos finais, pela edilidade habilitada para o efeito.



16. Assim sendo, importa tomar em consideração um rol de questões que, associadas à natureza da entidade a consultar, e atentos os ditames constitucionais e legais a observar neste domínio, cumpre acautelar.



17. De facto, determina o artigo 41.º, n.º 4 da Lei Fundamental que “as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”.



18. Pretendeu, deste modo, o legislador constitucional assegurar a exigência da liberdade de religião, bem como a laicidade do Estado moderno (Miranda, Jorge, e Medeiros, Rui, Constituição Portuguesa Anotada – Tomo I, p. 448).



19. Constituiu assim preocupação do legislador constituinte assegurar que o Estado não assumisse fins religiosos, não professando qualquer religião, embora consciente e sensível às “vivências religiosas que se encontram na sociedade ou a função social que, para além delas, as confissões exercem nos campos do ensino, da solidariedade social ou da inclusão comunitária” (ob. citada).



20. Assim sendo, surge, enquanto corolário da separação constitucionalmente consagrada, o princípio da não confessionalidade do Estado, traduzido na proibição de “toda e qualquer ingerência religiosa na organização ou governo do Estado ou dos poderes públicos” (Canotilho, Gomes, e Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 244).



21. Tal solução veio, de resto, a encontrar acolhimento na letra do artigos 3.º e 4.º da Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho, que aprovou a lei da liberdade religiosa, ao estabelecerem aqueles, respectivamente, os princípios da separação e consequente não confessionalidade do Estado.



22. Tal exigência implicará, por isso, a laicidade de actos oficiais, nos quais importa considerar, também, a prática de actos administrativos, nomeadamente, e no que ao presente caso se reporta, ao licenciamento urbanístico acima focado.



23. Ora, na situação em apreço, estará em causa na aplicação do parágrafo único do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 37:008, de 11 de Agosto de 1948, e pelas razões acima aduzidas, a possibilidade de uma entidade de cariz religioso vir a condicionar, de forma determinante, a posição adoptada, na matéria em discussão, pela Administração Pública.



24. Não se pretende, com a ressalva feita, excluir a participação de qualquer igreja ou comunidade religiosa em matérias que, dotadas de interesse público, se assumam, simultaneamente, relevantes para os fins a prosseguir por aquelas.



25. Em bom rigor, os princípios constitucionalmente consagrados, actualmente em causa, “não podem ser entendidos de forma tão rígida que obstaculizem a colaboração do Estado com as igrejas e outras comunidades religiosas” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 174/93, de 17 de Fevereiro de 1993).



26. Aliás, nesse sentido, veio o artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho, a estabelecer que “as igrejas e demais comunidades religiosas inscritas têm o direito de serem ouvidas quanto às decisões relativas à afectação de espaço a fins religiosos em instrumentos de planeamento territorial daquelas áreas em que tenham presença social organizada”.



27. De facto, não obstante a separação constitucionalmente consagrada entre o Estado, as igrejas e as comunidades religiosas, importa sempre, e conforme atrás se reconhece, acautelar os interesses naquelas em presença, mais a mais em fenómeno tão específico como o é o que historicamente conduziu ao desenvolvimento da actual cidade de Fátima.



28. Por esta razão, será sempre desejável que às mesmas seja reconhecido o direito de audição legalmente já acolhido.



29. Direito esse que, no entanto, não pode, no seu exercício, pôr em causa a plena eficácia do princípio da não confessionalidade do Estado.



30. Assim sendo, não podendo deixar de reconhecer-se a importância religiosa, social, cultural, artística, entre outras e sem se excluir o relevantíssimo papel na economia e desenvolvimento locais, de que se reveste o culto católico levado a cabo no Santuário de Fátima, importa também considerar os limites da relação a estabelecer entre as exigências àquele associadas e a actividade dos poderes públicos.



31. Ora, ponderada a situação decorrente da aplicação do disposto no parágrafo único do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 37:008, de 11 de Agosto de 1948, importa, mais uma vez, chamar a especial atenção de Vossa Excelência para o facto de o licenciamento para construção ou instalação de estabelecimentos públicos na zona de protecção do Santuário, encontrar-se, neste momento, dependente da emissão de parecer favorável por parte da direcção daquele.



32. Tal significa, na prática, a atribuição como que de um direito de veto a uma entidade particular, de cariz religioso, assim condicionando o gozo por terceiros de posições jurídicas fundamentais consagradas na Constituição, como é, entre outras, a liberdade de iniciativa económica.



33. Crê-se que é possível alcançar solução mais equilibrada, que satisfaça todos os interesses em presença, na certeza que não é do interesse público, seguramente, qualquer iniciativa em Fátima que contrarie ou prejudique a natureza muito específica dessa cidade e do seu enquadramento físico e cultural, na dimensão religiosa que seria absurdo esconder ou esquecer.



34. Num segundo aspecto, importa referir que, segundo se apurou, a Câmara Municipal de Ourém terá vindo a manter uma interpretação restritiva do que sejam “estabelecimentos públicos”, designadamente apenas nestes considerando incluídos aqueles que se destinem a “utilização turística”, ao que se julga com limitação aos hotéis.



35. Parecendo que é a manutenção de um adequado ambiente espiritual que se pretenderá assegurar em Fátima, em especial na zona adjacente ao Santuário, será porventura de admitir que possa merecer identidade de tratamento a abertura de estabelecimentos que, destinando-se ao público em geral, não possuam a citada vocação turística.



36. Na verdade, mesmo estabelecimentos públicos sem fins turísticos poderão, quer pela sua natureza e dos bens ou serviços fornecidos, quer pelo seu modo de funcionamento, colidir com as características que tornam o Santuário de Fátima no que tem representado, nacional e internacionalmente, nos últimos 90 anos.



Deste modo, perante tudo o que fica dito, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo ao Governo, na pessoa de Vossa Excelência, que venha a ser adoptada iniciativa legislativa, tendo em vista







a) a alteração do parágrafo único do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 37:008, de 11 de Agosto de 1948, por forma a que, mantendo-se a obrigatoriedade de consulta prévia à direcção do Santuário de Fátima, a mesma deixe de assumir natureza vinculativa, afastando-se, assim, a referência à natureza favorável do parecer que vier a ser emitido;


b) a maior concretização do conceito de estabelecimento público, fazendo abranger no objecto da norma todos os estabelecimentos deste género sujeitos a licenciamento.




O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues