REPARO / CENSURA
Entidade Visada: Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia
Proc.º: R-3457/06
Área: A1
Assunto: Urbanismo – edificação – alteração da utilização – legitimidade – propriedade horizontal
1. Informo ter determinado o arquivamento do processo, por considerar a reclamação devidamente encaminhada, no âmbito de acção judicial intentada pelo reclamante.
2. A minha intervenção fora requerida devido à execução de obras de construção numa fracção, tendo em vista a alteração do uso comercial ou restauração fixado na propriedade horizontal para estabelecimento de bebidas com fabrico de pastelaria/panificação.
3. De acordo com informações obtidas na instrução do processo, a alteração de uso terá sido deferida pela câmara municipal a que V. Ex.a preside, sem que fosse requerida a autorização prévia dos restantes condóminos, por ter sido requerida pelo titular do alvará de licença de obras de construção.
4. Em face do apurado, não posso deixar de advertir V. Ex.a para a necessidade de serem acautelados os direitos dos condóminos em procedimentos de alteração de uso de fracções autónomas.
5. A instalação de um estabelecimento de bebidas, de restauração com ou sem fabrico próprio de pão, num edifício ou sua fracção obriga a alteração da anterior licença de utilização, ainda quando esta se encontrasse descrita em termos vagos, como loja ou serviços.
6. A alteração da utilização de uma determinada fracção deve ser conferida pelas câmaras municipais, na perspectiva dos valores que o direito do urbanismo se propõe tutelar e segundo critérios de ordem pública, à luz das finalidades de actuação previstas na lei.
7. Impõe-se às câmaras municipais acautelar os interesses públicos de urbanismo, estética, salubridade e segurança que a lei lhe confia. À partida, não seria de admitir que as câmaras municipais tivessem de considerar a legitimidade do pedido, segundo as normas civis de propriedade horizontal.
8. Por força do princípio da proporcionalidade não poderá a Administração adoptar solução que apresente excessivos inconvenientes em relação às vantagens que ela comporte. Assim, deverá a câmara municipal ponderar, a par dos interesses inerentes ao pedido de licenciamento formulado e que motivam o exercício de uma actividade económica, os inconvenientes que para os circunvizinhos aquela actividade poderá ocasionar e as suas repercussões ambientais.
9. Não podem as câmaras municipais deixar de atender às relações de interdependência dos condóminos no uso e fruição do prédio e às suas repercussões para a comodidade e tranquilidade do condomínio e segurança do edifício.
10. Compete às câmaras municipais, em particular no âmbito do procedimento de licenciamento dos estabelecimentos de restauração e bebidas, impor a adopção de medidas que eliminem ou tornem comportáveis os potenciais incómodos ou efeitos negativos.
11. Em razão da actividade exercida – prestação de serviços de bebidas e confecção de alimentos – e da localização do estabelecimento, em fracções de prédio destinado primordialmente a fins habitacionais, há-de o estabelecimento similar obedecer a condições de funcionamento peculiares, necessariamente mais exigentes que as prescritas para os estabelecimentos comerciais, em termos que não sujeitem os moradores a inconvenientes mais pesados que aqueles que decorrem normalmente da actividade de um estabelecimento de comércio.
12. A natureza dos condicionalismos inscritos no alvará de licença de prestação de serviços de restauração e de bebidas dependerá do tipo de estabelecimento e a sua fixação visará assegurar que o uso em causa não perturbará ou colidirá com as demais utilizações exercidas.
13. Em particular, pondero que importará precisar quais as normas técnicas a que deve obedecer o sistema de exaustão de fumos, em ordem a assegurar a adequação e suficiência dos procedimentos de eliminação de gases e vapores e prevenir eventuais situações de insalubridade, resultantes do excesso de emissão de fumos e da consequente concentração de odores.
14. A modificação no destino de fracção autónoma pode implicar, bem assim, a alteração da correspondente disposição do título constitutivo da propriedade horizontal, pelo que sempre pressupõe a anuência do condomínio (artigo 1419.º do Código Civil).
15. Ora, sem que o requerente apresente documento comprovativo da autorização dos condóminos quanto à utilização projectada, designadamente a acta da assembleia de condóminos que aprove a alteração da utilização, não disporá a câmara municipal de elementos que atestem a legitimidade do requerente, pelo que o pedido não poderá proceder.
16. Diferente entendimento, que se baste com a exibição de documento que titule a posse exercida sobre a fracção autónoma, sujeita os condóminos às consequências da alteração do uso da fracção, sem deliberação válida da assembleia de condóminos.
17. Como tal, consubstancia a subversão da escritura de constituição da propriedade horizontal, por deliberação camarária e emissão de licença de utilização.
18. Não podem ser menosprezadas as consequências da eventual aprovação municipal do uso prestação de serviços de bebidas ou serviços de restauração no plano do direito privado. É que esse acto determina a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal (cfr. artigo 1418º, n.º 3 do Código Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro).
19. Por esse motivo, aprovada a alteração do uso, ficam os condóminos opositores impedidos de opor judicialmente a anterior desconformidade entre o fim previsto no título constitutivo da propriedade horizontal e o uso prosseguido, designadamente para efeitos de obter sentença que condene na abstenção do uso não autorizado pelos condóminos.
20. O Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação parece envolver os serviços camarários na apreciação de algumas questões de direito privado, embora apenas do ponto de vista formal.
21. Na verdade, a ser suscitada a ilegitimidade do requerente, pode ser prejudicado o normal desenvolvimento do procedimento ou impedida a tomada de decisão.
22. De particular significado se reveste o facto de poder o Presidente da Câmara Municipal conhecer da legitimidade a todo o momento, podendo o procedimento ser suspenso até que seja proferida decisão jurisdicional (artigo 11º, n.º 6 e n.º 7 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro).
23. Subjaz a esta solução o propósito de reduzir a propensão para a conflitualidade entre os cidadãos, que a disseminação de actividades incompatíveis com o descanso e a qualidade de vida, em bairros residenciais, necessariamente propicia.
24. Se a resolução dos conflitos de natureza privada cabe, em última análise, aos tribunais, não deve a Administração Pública descurar a sua prevenção, concorrendo, deste modo, para a consolidação da paz social.
25. Confiante de que V. Ex.a tomará em linha de conta as precedentes considerações, prevaleço-me da oportunidade para agradecer a cooperação dispensada.