S. Exa.
O Secretário de Estado do Ensino e da Administração Escolar
Av. 5 de Outubro, n.º 107
1069-018 LISBOA
 
 
 
Vossa Referência
Vossa Comunicação
 
Nossa Referência
Proc. Q-5427/12 (A4)
Assunto: Queixa apresentada por docente do Agrupamento de Escolas Padre Benjamim Salgado. Renovação da colocação em contratação inicial. Grupo de recrutamento…
 
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 11/A/2013
(Artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
 
 
I – Introdução
 
1. Dirijo-me a V.Exa. na sequência da queixa que a trabalhadora supra identificada me apresentou, invocando que o seu contrato como docente não foi renovado para o presente ano escolar, por razões exclusivamente relacionadas com a sua ausência ao serviço por motivo de parentalidade.
2. Em 6.3.2013, e na sequência de diligências instrutórias realizadas junto daquela escola e da Inspeção-Geral da Educação e Ciência (IGEC), foi solicitado a V.Exa. que promovesse a apreciação da questão à luz do enquadramento normativo então desenvolvido, por força do qual se concluiu que à queixosa assistia o direito à renovação do aludido contrato.
3. A resposta do Gabinete de V.Exa. residiu, por um lado, na repetição, quer da matéria de facto, quer das anteriores posições da Administração Educativa sobre a questão e, por outro lado, na formulação de considerações de natureza genérica sobre o mecanismo de renovação dos contratos. No essencial, limita-se a reafirmar a posição oposta à defendida pelo Provedor de Justiça, sem a fundamentar e sem contrariar qualquer dos argumentos aduzidos.
4. Mantendo-se inalterada a situação que motivou a queixa e observado já o dever de audição prévia da entidade nela visada, resta-me reclamar de V.Exa. nova ponderação do caso. Desde logo porque a pronúncia prestada, nessa sede, pela Administração Educativa não justifica a alteração do anterior enquadramento jurídico da questão, como demonstrarei de seguida.
 
II – Apreciação
 
5. Justifica-se, a título prévio, recordar sumariamente os contornos da questão:
5.1. A docente foi colocada, no ano escolar 2011-2012, em horário completo e anual, no Agrupamento de Escolas Padre Benjamim Salgado[1] para o exercício de funções docentes no grupo de recrutamento, em regime de contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo.
5.2. A mesma esteve ausente do serviço por licença de gravidez de risco, desde o início do ano escolar até 06.12.2011, e por licença parental de 07.12.2011 até 04.05.2012.
5.3. O contrato de trabalho da docente não foi renovado por não ter merecido a concordância da direção da escola nesse sentido.
5.4. De acordo com a direção da escola, sendo o número de horários disponíveis inferior ao dos docentes contratados que reuniam condições para a renovação (2 horários e 4 docentes), foi estabelecido, como primeiro critério de seleção, «a continuidade de serviço letivo efetivo no agrupamento no ano letivo 2011/2012» seguido da«ordenação na lista provisória de graduação no concurso de professores de 2012/2013». A escola entendeu que a queixosa não reuniu a condição do primeiro critério em face da ausência ao serviço no ano anterior, pelo que a escolha recaiu noutros dois docentes.
5.5. Por seu turno, a IGEC que, na sequência de queixa da docente, levou a cabo uma ação inspetiva sobre o assunto, concluiu no sentido de que esta não reunia o requisito previsto no art.º 33.º, n.º 4, alínea d), do Decreto-Lei n.º 132/2012, de 27.06 – avaliação de desempenho com classificação mínima de Bom –, o que se ficou a dever ao facto de a ausência ao serviço referida em 5.2. não lhe ter permitido reunir o requisito correspondente à prestação de serviço pelo período mínimo de 180 dias, previsto no art.º 5.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar n.º 26/2012, de 21.02.
6. Nos termos do art.º 33.º, n.ºs 3 a 5, do Decreto-Lei n.º 132/2012, de 27 de junho, as colocações em regime de contratação, em horário anual, podem ser renovadas por igual período, se precedidas de apresentação a concurso e desde que preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) Inexistência de docentes de carreira no grupo de recrutamento a concurso e que tenham manifestado preferência por esse agrupamento de escolas ou escola não agrupada;
b) Manutenção de horário letivo completo apurado à data em que a necessidade é declarada;
c) Avaliação de desempenho com classificação mínima de Bom;
d) Concordância expressa da escola;
e) Concordância expressa do candidato.
7. Este regime não estabelece o critério de escolha a seguir no caso da existência, em determinado grupo de recrutamento, de mais do que um docente que cumpra os demais requisitos para a renovação do contrato e a escola não disponha de horários letivos completos em igual número. A solução há-de buscar-se no requisito da concordância expressa da escola relativamente à renovação, contido no art.º 33.º, n.º 4, alínea e). Nestes casos, é, pois, ao estabelecimento de ensino que cumpre determinar qual dos docentes obterá a concordância quanto à renovação da colocação.
8. Justifica-se notar que, não obstante esta escolha não estar vinculada a critério definido na lei, ela terá que respeitar os limites decorrentes dos princípios que regem a atividade administrativa, como o princípio da prossecução do interesse público, o princípio da igualdade (e, em especial, o respeito pelo direito de acesso a funções públicas em condições de igualdade) e o princípio da proporcionalidade: estes limites vinculam a escola a adotar critérios de seleção objetivos, com fundamento material bastante para a diferenciação e que observem o princípio da proporcionalidade[2]. Prevalece, ainda, o dever de fundamentação da escolha.
9. No caso, a observância do regime jurídico descrito teria tido como efeito a renovação da colocação da queixosa, na medida em que:
9.1. Ao contrário do que defendem os diversos serviços da Administração Educativa que se pronunciaram sobre o caso, não é certo que a queixosa não reunia o requisito relativo à avaliação do desempenho, exigido pelo art.º 33.º, n.º 4, alínea d), do Decreto-Lei n.º 132/2012. Na verdade, deveria, para este efeito, ter sido considerada a menção qualitativa de Bom, atribuída na avaliação do desempenho correspondente ao ano escolar 2011/2012, por força das disposições conjugadas do art.º 40.º, n.º 7, do Estatuto da Carreira Docente (ECD), na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 41/2012, de 21.02 e art.º 65.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código do Trabalho[3]. A primeira destas normas determina a relevância da menção atribuída na última avaliação do desempenho aos docentes que permaneçam em situação de ausência ao serviço equiparada a prestação efetiva de trabalho que inviabilize a verificação do requisito de tempo mínimo para avaliação do desempenho e o preceito do Código do Trabalho enunciado equipara o gozo de licença em situação de risco clínico durante a gravidez e de licença parental a prestação efetiva de trabalho.
9.2. No que respeita à concordância expressa da escola, recorde-se que esta elegeu dois critérios para a escolha dos docentes a renovar: em primeiro lugar, a continuidade de serviço letivo efetivo no agrupamento no ano letivo 2011/2012 e, em segundo, a ordenação na lista provisória de graduação no concurso de professores de 2012/2013. Ora, de acordo com os critérios a que a escola se vinculou, a docente deveria ter sido selecionada para efeito de renovação do contrato, porquanto:
a) A docente preenchia o primeiro critério de seleção – a continuidade de serviço letivo efetivo no ano letivo anterior – porque, como se disse, nos termos do art.º 65.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código do Trabalho, a ausência do serviço por motivo de gravidez de risco e de licença parental é equiparada a prestação efetiva de trabalho;
b) A interessada dispunha da segunda graduação mais elevada entre os docentes candidatos à renovação, pelo que ocuparia uma das duas vagas existentes.
10. Acresce que a solução oposta – a defendida pela Administração Educativa e que associa à ausência por motivo de gravidez de risco e de licença parental o efeito impeditivo da renovação, quer por via da falta do requisito da avaliação do desempenho, quer pela aplicação do critério da prestação de serviço no ano anterior – consubstancia uma discriminação ilegítima, porque fundada em motivo qualificado como tal pela Constituição e pela lei. Vejamos:
10.1. A Constituição determina que a maternidade constitui um valor social eminente (art.º 68, n.º 2). Por seu turno, o n.º 3 do mesmo preceito estabelece que as mulheres têm direito a especial proteção durante a gravidez e após o parto, em consonância, aliás, com a incumbência cometida ao Estado no art.º 59.º, n.º 2, alínea c), de assegurar a especial proteção do trabalho das mulheres nessas situações. Por isso, a doutrina admite estarmos perante um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias[4].
10.2. Consagra, por outro lado, o princípio da igualdade como «princípio estruturante do sistema constitucional global»[5], reputando, desde logo, como ilegítimas as diferenciações que se ancorem nos motivos previstos no art.º 13.º e integrando, no campo das suas projeções, a liberdade de acesso a funções públicas em condições de igualdade (art.º 47.º n.º 2), que constitui um direito fundamental a um procedimento justo de seleção.
10.3. No plano do Direito Comunitário, há muito que a maternidade e a paternidade têm merecido especial destaque. Assim:
a) Nos termos do art.º 33.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – investida do mesmo valor jurídico dos Tratados, por força do disposto no art.º 6.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia –, todas as pessoas têm direito a proteção contra o despedimento por motivos ligados à maternidade, bem como a uma licença por maternidade paga e a uma licença parental pelo nascimento ou adoção de um filho.
b) Tal proteção veio a ser concretizada pela Diretiva n.º 92/85/CEE do Conselho, de 19.10.92, sobre as medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde das trabalhadoras grávidas, puérperas ou lactantes no trabalho[6];
c) Em matéria de proibição de medidas discriminatórias, resulta hoje claro no direito comunitário que a diferenciação por motivo de gravidez e maternidade constitui uma discriminação em razão do género:
            i. A Diretiva 76/207/CEE, do Conselho de 09.02.76, relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no domínio do trabalho dispõe que «um tratamento menos favorável de uma mulher no quadro da gravidez ou da licença de maternidade na aceção da Diretiva 92/85/CEE constitui uma discriminação na aceção da presente diretiva» (art.º 2.º, n.º 7, 3.º §);
ii. A Diretiva 97/80/CE do Conselho, de 15.12.97, relativa ao regime de prova nos casos de discriminação de género, determina a sua aplicabilidade às situações previstas na Diretiva 92/85/CEE (proteção da gravidez e maternidade) «na medida em que haja discriminação baseada no sexo» [art.º 3.º, n.º 1, alínea a)].
10.4. No direito positivo nacional, para além da consagração de um regime legal de proteção da parentalidade, nos planos laboral e de segurança social, acolheu-se a qualificação da discriminação por este motivo como uma diferenciação ilegítima em função do género: é o que resulta claramente do disposto no art.º 25.º, n.ºs 5 e 6, do Código do Trabalho, e o correspondente art.º 9.º do Regulamento do RCTFP[7]. Transpôs-se, igualmente, do Direito Comunitário o conceito de discriminação indireta, presente
 
«sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutro seja suscetível de colocar uma pessoa, por motivo de um fator de discriminação, numa posição de desvantagem comparativamente com outras, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objetivamente justificado por um fim legítimo e que os meios para o alcançar sejam adequados e necessários» [art.º 24.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho, e art.º 6.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento do RCTFP].
 
10.5. Deu-se, ainda, abrigo ao regime especial de prova que o Direito da União Europeia reconhece às vítimas de discriminação, as quais apenas têm que enunciar factos que permitam presumir a existência de discriminação, após o que àquele a quem é imputada a atuação discriminatória caberá provar que não houve violação do princípio da igualdade (art.º 25.º, n.ºs 5 e 6, do Código do Trabalho e art.º 14.º, n.º 3, do RCTFP, com a extensão constante do art.º 9.º do respetivo Regulamento).
10.6. No caso a que nos reportamos, a não renovação do contrato, para além de inválida por violação de lei – na medida em que ignora a regra de que a ausência por motivo de maternidade é equiparada a trabalho efetivo – consubstancia uma discriminação em razão da maternidade e, portanto, por motivo de género. Na verdade, aquela ausência teve por efeito não permitir a renovação do contrato, não só porque foi entendido que impedia o preenchimento do requisito relativo à avaliação do desempenho, como porque, na seleção a que a escola procedeu, determinou a preterição da docente em detrimento de outras colegas que não haviam estado ausentes do trabalho pelo mesmo motivo. Ou seja, estes dois fatores aparentemente neutros – requisito da avaliação do desempenho e critério da continuidade do serviço efetivo do ano letivo anterior – colocaram, no caso, a queixosa numa situação de desvantagem relativamente às demais candidatas à renovação por motivo exclusivamente atinente à gravidez e à maternidade.
10.7. A discriminação, no caso, projeta-se no plano do acesso a emprego (público), na medida em que está em causa a renovação de um contrato (e não a cessação de uma relação de emprego constituída por tempo determinado). Nesse sentido se pronunciou já o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao entender que, embora a falta de renovação de um contrato com duração determinada, «quando este chegou ao seu termo normal», não possa «ser considerada um despedimento proibido pela referida disposição [art. 10.° da Diretiva 92/85]», o certo é que «na medida em que a não renovação de um contrato de trabalho com duração determinada seja motivada pelo estado de gravidez da trabalhadora, constitui uma discriminação direta em razão do sexo, contrária aos artigos 2.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1, da Diretiva 76/207»[8].
10.8. Ao ofender o núcleo essencial do direito fundamental à igualdade ou não discriminação por motivo de género, na sua vertente de direito fundamental de acesso a funções públicas em condições de igualdade, e bem assim, o direito fundamental à proteção durante a gravidez e após o parto, o ato de que resulta a não renovação do contrato é nulo, nos termos do art.º 133.º, n.º 2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo.
 
III – Recomendação
 
São estas as razões, Senhor Secretário de Estado, que, no exercício do poder que me é conferido pela alínea a), do n.º 1, do art.º 20.º do Estatuto do Provedor de Justiça, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de abril, me levam a recomendar a V.Exa. que promova as diligências necessárias com vista à reposição da legalidade violada, mediante a declaração da nulidade do ato administrativo que consubstanciou a não renovação do contrato da docente e a reconstituição da situação que atualmente existiria se tivesse ocorrido, como devia, aquela renovação.  
 
Solicito, ainda, a V. Exa. que, em cumprimento do dever consagrado no art.º 38.º, n.º 2, do mesmo Estatuto, se digne informar sobre a sequência que o assunto vier a merecer.
 
 
O PROVEDOR DE JUSTIÇA,
 
 
 
(Alfredo José de Sousa)


[1] Adiante designada apenas por escola.
[2] Na sua tripla vertente de adequação (os critérios diferenciadores devem revelar-se como meio adequado para o fim visado através da escolha), exigibilidade ou necessidade (devem ser necessários para atingir aquele fim, que não poderia ser alcançado por meio menos oneroso) e de razoabilidade (os parâmetros de escolha, sendo idóneos e exigíveis, devem igualmente ser razoáveis na exigência que envolvem).
[3] Aplicável às relações de emprego público por força do disposto no art.º 22.º da Lei n.º 59/2008, de 11.09, que aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP).
[4] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, Tomo I, anot. V, b), ao art.º 68.º (pág. 704); J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, anot. V. ao art.º 68.º (pág. 354).
[5] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 125.
[6] Alterada pela Diretiva 2007/30/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2007.
[7] Nesse sentido, mas por referência ao art.º 35.º da Regulamentação do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 35/2004, de 29.07, que precedeu o art.º 25.º, n.º 6, do atual Código, Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II, Almedina, 2006, pág. 149.
[8] Acórdão de 04.10.2001, M. Luisa Melgar contra Ayuntamiento de Los Barrios, proc. C-438/99.