Sua Excelência
O Secretário de Estado do Ensino
Superior
Estrada das Laranjeiras, 205
1649-018 LISBOA
Vossa Ref.ª
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Vossa Comunicação
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Nossa Ref.ª
Proc. Q-5052/11 (A6)
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Assunto: Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo a Estudantes do Ensino Superior.
Recomendação n.º 09/B/2013
(artigo 20.º, n.º 1, b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
Nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, ultimamente alterada e republicada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, com base na motivação que de seguida apresento, recomendo ao Governo, na pessoa de Vossa Excelência, a modificação das soluções atualmente previstas no Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo a Estudantes do Ensino Superior, aprovado pelo Despacho n.º 8442-A/2012, de 22 de junho, ou a respetiva interpretação, no sentido de:
1. aperfeiçoamento das regras de cálculo do rendimento relevante para a atribuição destes apoios sociais, designadamente:
a) com consideração da dedução específica determinada pelo Código do IRS nos rendimentos da categoria A, tornando igual o tratamento assim prestado com o já previsto para rendimentos da categoria B;
b) negando relevância ao eventual recebimento do subsídio de desemprego em prestação única, conforme estabelecido na legislação própria;
c) revogando o artigo 34.º, n.º 2, com eventual previsão de limite máximo patrimonial admissível para a atribuição deste apoio social, mas excluindo valores depositados em conta à ordem, até um montante considerado adequado.
2. ser apenas tomado como motivo de inelegibilidade para apoio social a situação tributária ou contributiva não regularizada por dívidas imputáveis ao próprio estudante;
3. estabelecimento de cláusula de salvaguarda, quanto ao aproveitamento exigível, em caso de demora significativa na decisão final que conceda bolsa de estudo, quando essa demora não seja imputável ao candidato.
Estas recomendações baseiam-se nas considerações que se seguem, todas assumindo em paralelo o imperativo constitucional da garantia de condições de igualdade no acesso ao ensino, nesta ocasião ao ensino superior, bem como o dever que para o Estado resulta da correta aplicação dos recursos de que dispõe, assegurando que os mesmos acorrem às instâncias mais carenciadas, tudo de acordo com “as suas capacidades” (artigo 74.º, n.º 2, d), da Constituição).
Desde a publicação do Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo a Estudantes do Ensino Superior, aprovado pelo Despacho n.º 12780-B/2011, de 23 de setembro, têm sido expostas ao Provedor de Justiça diversas situações atinentes ao seu teor e aplicação.
Superadas por via hermenêutica adequada algumas das questões em apreço e outras por meio das modificações introduzidas pelo novo Regulamento, ora em vigor, aprovado pelo Despacho n.º 8442-A/2012, de 22 de junho, permanecem contudo por superar alguns objetos de dissídio a propósito da bondade de algumas soluções adotadas, amiúde incidindo no âmago basilar do direito à educação e correspondendo a uma decisão crítica sobre o percurso de vida de quem, à partida, demonstra o mérito absoluto e relativo necessário à aquisição da formação a que se propôs.
1) Regras respeitantes ao cálculo do rendimento relevante
A este propósito, ocorre notar três aspetos que merecem melhor ponderação e modificação da situação vigente. São eles o tratamento dado aos rendimentos da categoria A face, designadamente, aos da categoria B, o âmbito das prestações sociais englobadas e o modo como releva o património mobiliário detido por membros do agregado familiar, a se e por comparação com a solução dada quanto ao património imobiliário.
Assim, quanto à primeira questão e contrapondo o teor dos artigos 35.º e 36.º do Regulamento, verifica-se que os rendimentos empresariais e profissionais beneficiam do desconto da chamada dedução específica, ao ser contabilizado apenas o resultado ditado pela aplicação do regime simplificado ao rendimento bruto da categoria[1] ou o que decorra da documentação contabilística, nos demais casos.
Pelo contrário, o artigo 35.º do Regulamento manda atender ao rendimento anual ilíquido da categoria, o que engloba o valor que, por via do artigo 25.º, n.º 1, a), com a ressalva do n.º 2, do Código de IRS, manda a lei que se deduza do valor tributável, em igualdade de circunstâncias com a dedução estabelecida, em termos presumidos, no regime simplificado ou a que decorre da aplicação das regras fiscais para os casos de contabilidade organizada.
Em termos hábeis, isso significa que o custo da própria atividade profissional é adequadamente levado em conta no caso de rendimentos da categoria B, mas já não no caso dos da categoria A, posto que da forma há muito parametrizada na legislação tributária.
Não se criticando, em si mesma, a opção pela consideração do rendimento ilíquido ou do que já é líquido da dedução específica de cada categoria,[2] a única observação que devo formular é no sentido da adoção de uma solução uniforme em relação a todas as categorias de rendimentos.
Para tratamento em condições de igualdade de todos os agregados familiares e sem prejuízo da crítica que possam autonomamente merecer as soluções contidas na nossa lei tributária, um mínimo que parece imperativo, em termos de congruência do sistema, apontará para a replicação, no âmbito das bolsas de estudo, do tratamento dado a nível fiscal, para efeitos da determinação do quantum com que aquela pessoa ou família deve acorrer às despesas da comunidade.
Em segundo lugar, interessa chamar a boa atenção de Vossa Excelência para a determinação do correto âmbito que se estabelece no artigo 40.º do Regulamento, em sede da relevância das prestações sociais recebidas.
Refiro-me muito concretamente a prestações sociais que estão legalmente consignadas a um fim específico, que não engloba nem é atinente ao rendimento familiar, entendido como o pecúlio disponível para acorrer à generalidade das despesas daquele agregado, incluindo as do estudante candidato a bolsa de estudo.
Ilustro a bondade desta asserção com o caso, real por verificado em queixa recebida pelo Provedor de Justiça, da consideração como rendimento relevante do montante resultante do “pagamento, por uma só vez, do montante global das prestações de desemprego com vista à criação do próprio emprego”, conforme previsto, enquanto medida ativa de emprego, nos artigos 4.º, a) e 6.º, b), do Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de novembro.
Este mecanismo de promoção do autoemprego, de cujo mérito não cabe aqui discorrer, é indubitavelmente assumido pelo Estado como um dos meios de combate ao desemprego e de reformulação dos projetos de vida daqueles que padecem os efeitos da perda de ocupação laboral.
Não se coloca em dúvida que o eventual subsídio de desemprego percebido por elemento do agregado familiar deva ser contabilizado; a prestação (única) que decorre todavia do mecanismo especial que neste momento se convoca tem necessariamente de merecer tratamento diverso.
Para essa conclusão, conflui irresistivelmente a delimitação que a própria lei e respetiva regulamentação[3] estabelecem para o pagamento em causa, o qual, sujeito a condições prévias à concessão e a confirmação posterior do destino dado ao montante concedido, não permitem assimilar o mesmo a uma mera antecipação do subsídio de desemprego.
Se este, na verdade, visa minorar as agruras da perda de rendimento por um certo período, aquele pagamento por uma só vez apenas quantitativamente coincide com o montante devido a título de subsídio de desemprego, mas já não qualitativamente, uma vez que, nos termos do artigo 12.º, n.º 3, da Portaria n.º 985/2009, “deve ser aplicado, na sua totalidade, no financiamento do projecto, podendo ser aplicado em operações associadas ao projecto, designadamente na realização de capital social da empresa a constituir.”
O Estado, através de ato regulamentar do Governo, exige assim ao beneficiário deste pagamento único que afete tal apoio exclusivamente a certo fim, a saber: à criação do seu emprego; não pode, por incongruência e evidente violação da mais elementar boa-fé, o mesmo Estado, por ato igualmente imputável ao Governo, considerar contraditoriamente que tal pecúlio não só pode como deve ser utilizado pelo seu recipiendário para acorrer às despesas em que incorre um estudante, seja este o próprio ou outro membro do seu agregado familiar.
Noto que este entendimento, o único que me parece não vulnerar a consciência jurídica e a congruência volitiva do Estado, tem a vantagem de cumprir ampla e totalmente os escopos dos dois regimes aqui em presença, o da criação de medidas ativas de emprego e o da garantia da igualdade real no acesso ao ensino superior, com a vantagem que tal observância, a produzir frutos o projeto encetado, poderá até permitir, nos anos subsequentes, a desnecessidade de apoio social, pela obtenção de rendimentos suficientes por parte do cidadão que encetou a construção do seu próprio posto de trabalho, com benefícios sociais evidentes para esse agregado e para os demais, em relação aos quais se libertam os recursos antes afetos àquele.
Nesta medida, recomendo que o âmbito do artigo 40.º do Regulamento seja sistematicamente enquadrado nos preceitos que disciplinam cada prestação social que à partida poderia relevar, excluindo as que, como a antecipação por uma só vez do pagamento de subsídio de desemprego, tenham legalmente consignada outra afetação, distinta da que deve ser considerada para eventual tutela pelo regime de ação social.
Em terceiro lugar, ainda no cálculo do rendimento relevante, devo assinalar, negativamente, a solução contida no artigo 34.º, n.º 2, do Regulamento.
Tal como em outras prestações sociais, nada há a opor a uma cumulação de condições que exija, para o seu recebimento, a não superação de um certo rendimento e de um certo património.[4] Não se concorda, contudo, que se confundam os dois parâmetros, amalgamando-os, nem parece lícito adotar-se solução que trate de forma desrazoavelmente distinta o património de diferente natureza.
Quanto ao primeiro aspeto, há claramente que distinguir entre a decisão
a) sobre quem merece apoio público e
b) sobre o quantum desse apoio que efetivamente é merecido.
A solução regulamentar em vigor, salvo melhor opinião, confunde os dois planos, não se bastando com rendimentos reais ou presumidos, mas cumulando-os, no caso do património mobiliário previsto no artigo 43.º
Assim, no que toca ao património imobiliário, a solução contida no artigo 38.º não merece esta crítica, estabelecendo em primeiro lugar um critério de rendimento real, com contabilização dos rendimentos declarados na categoria F, em sede de IRS, mas com a cláusula de salvaguarda, em termos de rendimento presumido, estabelecendo um valor mínimo de 5% do valor matricial dos prédios.[5]
Pelo contrário, no que toca ao património mobiliário, não se enxertou tal cláusula de salvaguarda, antes se preferindo, nos termos dos citados artigo 34.º, 2, e 43.º, aditar o rendimento efetivamente auferido (na categoria E do IRS) ao valor resultante da aplicação de determinada percentagem (esta variável, mas na base idêntica à taxa acima assinalada para os imóveis) sobre o valor total das aplicações de capital.
Por esta via, mais do que uma presunção de um rendimento mínimo de capitais que obvie a situações menos transparentes, está-se a somar o resultado de tal presunção com o rendimento declarado, por esta forma superando o mesmo, em termos diretamente proporcionais aos rendimentos declarados ao Fisco e com prejuízo de quem mais declara, para dois patrimónios de valor idêntico.
Conhecendo-se o papel relevante que na sociedade hodierna têm os valores mobiliários, face à tradicional riqueza fundiária, não repugna, por outro lado, que se considerem taxas diferenciadas, para uma e outra situação. Tal não pode significar, contudo, um tratamento que permita injustificadamente considerar como efetivamente recebido certo rendimento, que pode ser assim utilizado para acorrer às despesas do quotidiano, quando em termos reais apenas se pretende valorizar uma manifestação de riqueza.
Explicitando, nada tenho a opor ao mecanismo do rendimento presumido, tal como estabelecido para os rendimentos prediais. No caso dos rendimentos de capitais e conhecendo-se as estritas obrigações declarativas, aliás sujeitando-os a mecanismos simples de tributação como o das taxas liberatórias, a consideração da riqueza mobiliária pode constituir um elemento de (des)qualificação do candidato a bolsa de estudo, mas já não deve servir para se presumir rendimento que realmente não existe, afastando o candidato do sistema de ação social ou, no cenário menos drástico, afetando o valor da bolsa recebida.
Assim sendo, justifica-se a minha recomendação no sentido de, revogando-se o artigo 34.º, n.º 2, do Regulamento, se estabelecer cláusula, similar ou diversa da atualmente acolhida no artigo 43.º, para fixação de patamar máximo de riqueza mobiliária que justifique a exclusão do recebimento destes apoios sociais.
De outro modo, ao estabelecer-se como valor mínimo da taxa em causa aquele fixado para o património imobiliário, está-se a dar relevância (ainda que de forma possivelmente menor, concedo), enquanto fonte de rendimento presumido e englobado, aos rendimentos enunciados em outras alíneas do artigo 34.º, n.º 1, de que ressalto os rendimentos do trabalho. Nesta medida, os valores depositados em conta à ordem e até determinado montante, sob pena de dupla relevância ou contagem, deviam em qualquer caso estar isentos desta contabilização.
2) Da imputação de dívidas tributárias ou contributivas
Passo agora a explicitar a questão que me parece notoriamente mais sensível e que convoca de forma mais aguda a representação da ideia de Direito.
Refiro-me à condição de elegibilidade para recebimento de apoio desta natureza que surge prevista no artigo 5.º, i), do Regulamento, a saber, encontrar-se “a situação tributária e contributiva dos elementos do agregado familiar em que está integrado [o peticionário] regularizada”. Como exceções a esta exigência, delimitam-se negativamente, desconsiderando-as, “as dívidas prestativas à Segurança Social” e “as situações que não lhe sejam imputáveis”, constituindo precisamente a interpretação do pronome relativo, nesta segunda citação, o cerne dos parágrafos que se seguem.
O número mais significativo de queixas recebidas incidiu, na verdade, sobre as situações de proscrição do recebimento de apoios sociais para prossecução de estudos, por via da existência de dívidas, ao Fisco e à Segurança Social, por regularizar. Dentro de tal universo, é claramente maioritária a porção respeitante a dívidas imputáveis a um ou a ambos progenitores, constituindo a parte residual aquela outra realidade em que o próprio candidato, após interrupção dos estudos, se vê confrontado com vicissitudes decorrentes, em geral, de pretérita atividade profissional.
O regulamento anteriormente em vigor, no seu lugar paralelo (artigo 33.º, n.º 1, b), determinava ser “indeferido o requerimento do estudante cujos membros do agregado familiar não apresentem a situação tributária ou contributiva regularizada, excetuando as situações em que a irregularidade não seja imputável ao agregado familiar”. Ainda na vigência do anterior regulamento, em solução que se manteve no atual, o Despacho n.º 4913/2012, de 10 de abril, delimitou os casos em que se devia considerar regularizada aquela situação, posto que a dívida ainda existisse, em termos que não são merecedores de comentário.
Não curando, assim, dos limites objetivos desta causa impeditiva do acesso ao ensino superior, em condições de igualdade real e assim superando as dificuldades de base socioeconómica, do ponto de vista da garantia de tal direito fundamental é essencial a delimitação cuidadosa do que devem, aliás podem, tomar-se como os seus limites subjetivos.
Neste quadro, assume especial importância a configuração do direito que resulta da garantia do acesso ao ensino superior em condições que minimizem ou desejavelmente superem as desigualdades de base existentes, tudo como decorre do já acima citado artigo 74.º, n.º 2, d), da Constituição, em termos reforçados, quanto ao ensino superior, pelo teor do artigo 76.º, n.º 1.
Interpretada unanimemente essa vontade constituinte como remetendo para a criação de um sistema de apoios sociais, pela negativa isentando do pagamento de propinas, pela positiva através da atribuição de bolsa de estudo ou de outras prestações, como as de alojamento ou alimentação, não parece que em algum momento tenha sido discutida a natureza individual dos direitos que decorrem dessa tarefa cometida ao Estado.
Por mais relevante que seja o fenómeno familiar, nos seus contornos sociais e jurídicos, designadamente em sede de averiguação da real carência que se colmata com determinada prestação, é um projeto de vida individual que se visa tutelar e dar amparo, sendo a titularidade de tais direitos decisivamente pessoal e não coletiva, neste caso familiar.
Assumindo relevância a condição económica do agregado familiar e, nessa medida, do estudante candidato no seu contexto específico, é o seu direito de acesso ao ensino que, pelo seu esforço, é individualmente prosseguido e exercitado, constituindo garantia desse direito de natureza pessoal a atividade prestacional do Estado na superação das desigualdades, entre outras, de base socioeconómica.
Corroborando esta interpretação, a Lei 15/2011, de 3 de maio, que modificou o Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, retirou as bolsas de estudo do âmbito de verificação da condição de recursos para atribuição de apoios sociais públicos, deixando aquelas de integrar os rendimentos do agregado familiar e qualificando-as claramente como um apoio que tem por fim a promoção da frequência do ensino superior aos estudantes sem condições económicas, mas já não o suporte da economia familiar.
A esta pessoalidade do direito ao prosseguimento de estudos superiores em condições de igualdade corresponde igualmente uma pessoalidade das dívidas tributárias ou contributivas, o que se exemplifica com o artigo 13.º, n.º 2, do Código do IRS, “considerando-se como sujeitos passivos aquelas a quem incumbe a (…) direção [do agregado familiar]”, e com o artigo 10.º, n.º 2, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social,[6] considerando “[a]s contribuições (…) da responsabilidade (…) das entidades empregadoras, dos trabalhadores independentes, das entidades contratantes e dos beneficiários do seguro social voluntário (…) e as quotizações (…) da responsabilidade dos trabalhadores (…)”. Podendo certamente encontrar-se como sujeito passivo quem originariamente não assumiu certa prestação,[7] não parece que, na situação que estritamente aqui me ocupa,[8] possa considerar-se existir título válido para alargar o âmbito da responsabilidade passiva a um terceiro, posto que integrando o mesmo agregado familiar.
Em correspondência com o desiderato constitucional em causa, a Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro, assume, como tarefa estruturante e justificadora da ação social escolar, a garantia de “que nenhum estudante é excluído do sistema do ensino superior por incapacidade financeira.”[9] Essa incapacidade financeira, em geral existente de per se, não pode ser ignorada nas situações em que, por motivos alheios ao próprio interessado, exista incumprimento de deveres tributários ou contributivos, sendo o mesmo, por definição, excluído da direção do agregado familiar e considerado dependente, isto no quadro do IRS, por força do artigo 13.º, n.º 4, b), do respetivo Código.
Se assim devia ser reduzido, por força do princípio da interpretação conforme à Constituição, o âmbito determinado pela letra do artigo 33.º, n.º 1, b), do anterior Regulamento, excluindo como causa de indeferimento da pretensão a apoio social a dívida que não fosse imputável ao próprio estudante, é com alguma esperança que se acolhe a redação adotada no novo Regulamento, como acima se assinalou brevemente.
Assim, o artigo 5.º, alínea i), subalínea ii), interpretado estritamente no seu elemento literal, parece corresponder à restrição constitucionalmente informada que se referiu. Na verdade, a utilização, na citada subalínea, do pronome relativo no singular inculca, irresistivelmente e em sentido agora convergente com os ditames constitucionais em causa, a conclusão de se ligar o mesmo, não ao agregado familiar,[10] mas sim ao próprio estudante, o qual é o indiscutível sujeito do proémio do referido artigo e em relação a quem se estabelecem depois as mais variadas condições que sustentam a elegibilidade para a atribuição de bolsa de estudo.
Em suma, considera-se, hoje, como resultante das boas regras de hermenêutica jurídica, no plano próprio da concretização de direitos fundamentais e evidenciando o papel sistemático específico da Lei Fundamental, como adequada uma interpretação (aplicação) atreita à letra da norma, restringindo-se os casos de inelegibilidade de determinado estudante à perceção de apoios sociais aos casos em que as dívidas “lhe sejam imputáveis”, isto no quadro normativo próprio que as rege.
Devo por último assinalar que não se desconhece a valoração em que assenta, nas mais variadas situações de apoio social, a exigência de regularidade da situação tributária e contributiva. Todavia, excluindo os casos legalmente enunciados de reversão de dívidas, não se conhecem outras situações em que a sanção pela existência de dívidas contributivas ou tributárias seja imputada a terceiros, designadamente aos dependentes que integrem o agregado familiar do devedor. Assim, designadamente quanto aos efeitos da não regularização da situação tributária, o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 236/95, de 13 de setembro, enumera as atividades vedadas “aos contribuintes que não tenham a sua situação tributária regularizada”, isto é, apenas aos sujeitos passivos da relação e não a terceiros. No que respeita à Segurança Social, o artigo 213.º do Código dos Regimes Contributivos estabelece as limitações aplicáveis aos contribuintes que não tenham a sua situação contributiva regularizada, aplicando-as apenas aos próprios e não aos respetivos filhos. A resposta conferida no quadro do regime aplicável ao abono de família só reforça este entendimento.
É no contexto assinalado que recomendo ao Governo que, no escrupuloso respeito da letra da disposição, se cumpra o desiderato constitucional que permita a cada um, de acordo com o mérito demonstrado, obter o auxílio económico necessário à frequência do ensino superior, não o impedindo por irregularidades imputáveis a terceiros, posto que integrantes do mesmo agregado familiar.
3. Efeito da demora procedimental no aproveitamento desse ano letivo
Por fim, resta-me assinalar uma questão que apenas em abstrato foi sinalizada, mas que certamente merece ponderação.
Refiro-me às situações que, mercê de circunstâncias várias, veem arrastada a sua decisão final por longos meses, por vezes apenas terminando após o final do ano letivo. Ora, quando essa decisão final venha a ser favorável ao candidato a bolsa e sem prejuízo do pagamento, em tal momento, do valor total apurado como devido, ter-se-á que considerar como prejudicada a atualidade desse apoio, na sua concatenação com o calendário escolar.
Ressarcido embora o estudante no quantum devido, não é possível considerar como irrelevante o quomodo e especialmente o quando de tal prestação.
No limiar mínimo, essa relevância deve traduzir-se, positivamente, na criação de condições, necessariamente aferíveis apenas em função das alegações produzidas em concreto e então verificadas, para que um eventual resultado negativo, no cumprimento das condições mínimas de aproveitamento fixadas no Regulamento, não perdure no tempo, designadamente repercutindo-se na decisão que no ano imediato venha a ser tomada face a eventual pretensão de recebimento de apoio.
Nesta ponderação, que acarreta um juízo tão mais fácil quão maior seja a carência económica, deverá ser levada em conta a frequência escolar efetiva e a submissão ou não aos momentos avaliativos, de acordo com que em cada caso esteja fixado.
Agradeço desde já a Vossa Excelência que, nos termos do artigo 38.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, queira transmitir o entendimento assumido a este propósito.
O Provedor de Justiça,
José de Faria Costa
[1] Hoje, de 20% no caso das vendas de mercadorias, e de 75% nas demais situações.
[2] Neutralizando-se o efeito de uma solução aparentemente mais desfavorável pelo correlativo aumento da bolsa de referência.
[3] O citado Decreto-Lei n.º 220/2006, no seu artigo 34.º, em redação alterada pelo Decreto-Lei n.º 64/2012, de 15 de março, a Portaria n.º 985/2009, de 4 de setembro, modificada e republicada pela Portaria n.º 58/2011, de 28 de janeiro, e o Despacho n.º 20871/2009, de 17 de setembro, nos termos adiante assinalados.
[4] Este podendo ser entendido, enquanto manifestação de riqueza, quer como presunção de não carência, quer como meio alternativo de financiamento das despesas que se visa apoiar com a prestação em causa.
[5] Com natural e louvável exclusão da casa de morada de família (artigo 38.º, n.º 3).
[6] Aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro.
[7] Pelas vias legalmente estabelecidas para gerar solidariedade ou subsidiariedade por dívidas.
[8] Em que o estudante candidato a bolsa não é pessoalmente responsável por dívida tributária ou contributiva, designadamente pelas regras acima citadas ou outras de imputação.
[9] Cf. artigo 20.º, n.º 2.
[10] Uma vez que o texto da alínea i) não se refere ao mesmo, no singular, mas sim na forma pluralizada dos seus ”elementos”, o que implicaria, numa redação gramaticalmente correta, a utilização do pronome igualmente no plural.