Exmo. Senhor

Presidente da Câmara Municipal

de Cascais

Largo 5 de outubro

2754-501 Cascais

 

 

V.ª Ref.ª

SAJA

Of. 45465

V.ª Comunicação

 11/12/2013

Nossa Ref.ª

Proc. Q-169/13 (UT 1)

 

 

RECOMENDAÇÃO N.º 5/A/2014

(artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)

 

 

ASSUNTO: direito de reversão – legitimidade – partilha da herança

 

 

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, e em face da motivação seguidamente apresentada, RECOMENDO a V. Exa que determine:

 

Seja transmitida, a título de reversão, às queixosas identificadas a parcela que reclamam como parte do imóvel que adquiriram mortis causa, parcela nunca usada pelo município para o alinhamento previsto, em incumprimento do encargo modal da doação outorgada por seus pais. Isto como sucessoras únicas do imóvel principal, do qual a parcela fora desanexada, sem que outro ou outros herdeiros tenham legitimidade para outorgar no negócio.

 

Consigno que foram atendidas as explicações prestadas pelos serviços superiormente dirigidos por V. Exa.

 

 

 

 

§1.º – Considerações preliminares

 

 

1.       Apreciámos uma queixa relativa à posição do Município de Cascais, por arguir a ilegitimidade das suas autoras – MA e MR – para outorgarem na escritura pública de reversão de uma parcela de terreno do património municipal, sem outorgar igualmente um irmão de ambas.

 

2.       Seus pais, LA e AN, doaram ao Município de Cascais uma parcela com cerca de 185 m², por escritura pública outorgada em 20/08/1971.

 

3.       A doação desta parcela, desanexada ao imóvel de sua propriedade, sito à Rua G, no lugar do Penedo, São Domingos de Rana, destinava-se a alinhamento da via pública.

 

4.       Tratava-se de cumprir condição imposta pelas autoridades municipais para deferirem o licenciamento de obras particulares de construção no imóvel de uma moradia bifamiliar.

 

5.       Por óbito dos proprietários, veio a herança a ser partilhada entre as queixosas e um outro filho, AA, nos termos de escritura pública de 20/07/1999.

 

6.      Na partilha, o imóvel foi adjudicado por inteiro às queixosas.

 

7.       Como o Município de Cascais nunca tivesse vindo a usar toda a parcela doada para o fim que justificara a transmissão, as queixosas entenderam assistir-lhes o direito de reversão sobre a faixa remanescente, com a área de 52,8 m².

 

8.      Faixa sobre a qual sempre exerceram posse pública e pacífica.

 

9.       Reconhecem os serviços municipais justificar-se a pretensão das queixosas, pois o modo a que estava sujeita a doação nunca foi cumprido (artigo 963.º do Código Civil).

 

10.   Ao tempo eram frequentes estas condições, nos termos do Decreto-Lei n.º 166/70, de 15 de abril. Ulteriormente, vieram a ser reservadas por lei às operações de loteamento, a título de cedências para o domínio público municipal e, mais tarde, às operações urbanísticas de impacto semelhante.

 

11.   Designavam-se doações, conquanto, em rigor, lhes faltasse a liberalidade, posto que sem a transmissão, o pedido de licenciamento municipal da obra seria indeferido.

 

12.   Da reversão de parcelas cedidas em operações urbanísticas cuida-se hoje no artigo 45.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro.

 

13.   Se o uso da parcela cedida se desviar do fim consignado, «o cedente tem o direito de reversão» (n.º 1), aplicando-se subsidiariamente o Código das Expropriações.

 

14.   Contudo, os serviços municipais consideram que a forma adequada é a de o município outorgar na retificação da doação originária, por meio do que designa como escritura pública de retificação.

 

15.   E consideram que é necessário todos os herdeiros de LA e de AN outorgarem nesse ato.

 

16.  Não podemos concordar com esta posição, pelos motivos que se expõem.

 

 

§2.º – Da partilha e seus efeitos relativamente ao facto constitutivo do direito de reversão

 

 

17.   Com a partilha e a adjudicação do imóvel às queixosas, são estas, desde então, as únicas proprietárias do imóvel, cuja parcela, outrora desanexada, querem reaver.

 

18.  O incumprimento do modo como facto constitutivo do direito à reversão representa uma situação jurídica propter rem e encontra-se sujeito às vicissitudes do direito de propriedade.

 

19.  A cedência ocorreu, para todos os efeitos, como um facto modificativo do direito real de propriedade privada.

 

20.  Por conseguinte, o direito de reversão segue as vicissitudes do direito de propriedade privada sobre o concreto imóvel de cujo todo foi desanexada uma parcela.

 

21.  Embora desanexada, esta parcela manteve sempre um estatuto subordinado ao do imóvel principal.

 

22.  O município não deve fixar-se no equívoco de uma retificação, como se estivesse em causa corrigir um erro na primitiva doação e, por morte dos doadores, houvesse de reunir todos os herdeiros legítimos.

 

23.  Na verdade, para haver retificação é preciso um erro e, neste caso, o que sucedeu e determinou a constituição do direito de reversão foi simplesmente o desuso pelo município de uma faixa da parcela cedida, incumprindo o modo estipulado na doação.

 

24.  A transmissão há de fazer-se, isso sim, por reversão.

 

25.  Só no âmbito do Registo Predial se poderá justificar a retificação, mas não deve ser esse facto a condicionar a forma e a qualificação do ato com base no qual o município abre mão da propriedade sobre uma faixa da parcela cedida.

 

26.  O direito de reversão não integra a herança desde que a herança se extinguiu por efeito da partilha.

 

27.  Com a partilha, «cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos» (artigo 2119.º do Código Civil). Ressalvam-se apenas os frutos, mas julga-se ser claro que a reversão não possui esta natureza.

 

28.  As queixosas, sucessoras únicas do imóvel principal, sucederam unicamente também no direito de reversão da parcela vinculada pelo encargo modal da doação.

 

29.  Por conseguinte, não faria sentido algum empreender uma partilha adicional (artigo 2122.º do Código Civil), pois não ocorreu omissão de bens à partilha.

 

30.  O direito de reversão encontrava-se ínsito no direito de propriedade sobre o prédio, o que não é de estranhar, conhecendo-se o direito de propriedade como situação jurídica complexa, como um feixe de situações jurídicas reais.

 

31.  Ao aceitar os termos da partilha, o herdeiro cuja intervenção é julgada necessária pelos serviços municipais, bem sabia ou estava em condições de saber que o imóvel adjudicado a suas irmãs poderia vir a ser reposto na sua situação primitiva.

 

32.  Bastava vir a verificar-se a condição resolutiva da cedência.

 

33.  Situações análogas poderiam verificar-se, nomeadamente por acessão imobiliária natural ou industrial sem que o herdeiro identificado tivesse direito a um acréscimo patrimonial.

 

34.  De qualquer modo, e na eventualidade de ser suscitado um conflito, é entre os antigos herdeiros que ele tem de ser resolvido.

 

35.  O município, nas relações administrativas reais, identifica como sujeitos os interessados, cuja legitimidade é apreciada pelo critério da posse aparente. Aqueles que se apresentem como tal, na esteira do entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Administrativo (3.ª Sub., da 1.ª Secção), por acórdão tirado em 15/10/2003 (proc. 041983).

 

36.  Entendimento que o Conselho Técnico do Instituto dos Registos e Notariado, IP, embora a propósito da reversão de um bem expropriado, acolheu por parecer aprovado em 23/11/2012, e homologado superiormente nessa mesma data: «a reversão pode operar apenas a favor dos que a requeiram e segundo a forma por estes proposta».

 

 

§3.º – Conclusões

 

 

A.    Assiste às queixosas o direito de reversão sobre uma faixa de terreno que, embora cedida por seus pais, em 1971, ao Município de Cascais para alinhamentos, nunca foi usada para esse fim.

 

B.     Por morte de seus pais e depois de partilhada a herança, assiste-lhes esse direito, já não como herdeiras, mas como proprietárias do imóvel principal do qual a dita parcela fora desanexada como condição do licenciamento de uma edificação.

 

C.     As queixosas adquiriram a propriedade do imóvel na partilha da herança de seus pais.

 

D.    Essa aquisição retroage ao momento da abertura da herança e inclui o direito de reversão sobre a parcela cujo estatuto nunca deixou de estar vinculado ao imóvel principal.

 

E.     Como tal, o herdeiro que adquiriu outros bens da herança, ou a quem foram dadas tornas, não dispõe sequer de legitimidade para outorgar na escritura pública.

 

F.     É que, na verdade, e ao contrário do que insistentemente opõem os serviços municipais, não se trata de retificar a doação primitiva, mas de executar a reversão.

 

G.    Em todo o caso, as relações jurídicas administrativas reais do município têm como sujeito o proprietário, pelo que, a surgir oposição do outro herdeiro, seria às queixosas, suas irmãs, que deveria pedir o ressarcimento pelo hipotético dano que conseguisse imputar-lhes.

 

 

Solicito a V. Exa que, dando cumprimento do disposto no artigo 38.º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, me transmita, no prazo de 60 dias a contar da receção desta recomendação, a posição que vier a adotar.

 

      

 

 

O Provedor de Justiça

 

 

(José de Faria Costa)