Sua Excelência
O Ministro da Economia
Rua da Horta Seca, 15
1200-221 LISBOA
RECOMENDAÇÃO N.º 1/B/2015
(alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redacção dada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro )
Assunto: Cidadãos portadores de deficiência. Emissão de cartão de estacionamento. Decreto-Lei n.º 307/2003, de 10 de dezembro
Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redacção dada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, e em face das motivações seguidamente apresentadas, recomendo a Vossa Excelência que:
sejam adotados os procedimentos necessários à alteração do Decreto-Lei n.º 307/2003, de 10 de dezembro, por forma a que a atribuição de cartão de estacionamento passe a contemplar, para além das duas categorias já existentes, também oscidadãos portadores de deficiência visual de caráter permanente da qual resulte um grau de incapacidade igual ou superior a 95%.
É a seguinte a motivação da minha Recomendação.
1.º§ – A queixa
Na situação trazida à minha apreciação, estava em causa o pedido de atribuição de cartão de estacionamento a cidadão portador de deficiência global de 95%, com grau de incapacidade visual certificado por Atestado Médico de Incapacidade Multiuso.
Muito embora fosse aferido um contexto de mobilidade reduzida, concluiu‑se que o requerente não reunia as condições enumeradas pelo legislador, na medida em que não lhe fora reconhecida deficiência motora. Com efeito, ainda que o Direito Comunitário preveja a emissão de documento de estacionamento para todos os cidadãos com deficiência suscetível de provocar uma mobilidade reduzida, não é isso que se vem observando na prática, atendendo a que apenas se consideram legítimos destinatários os cidadãos portadores de deficiência motora.
Contudo, estamos na presença de conceitos não inteiramente idênticos, a saber:
a) no primeiro caso (mobilidade reduzida), o condicionamento poderá resultar de uma deficiência motora, cognitiva ou de qualquer outra causa suscetível de afetar o respetivo perfil de autonomia (v.g. não deficiência), quer pontualmente, quer por período indefinido;
b) no segundo caso (deficiência motora), está em causa a específica dificuldade ou até impossibilidade de controlar ou coordenar algum tipo de movimento motor. Tal incapacidade poderá ser transitória ou permanente e revelar-se congénita ou adquirida por acidente ou doença.
Existem assim diversos graus de incapacidade motora, que será tanto maior quanto o nível de movimentos afetados[1].
Ao ver-se privado da possibilidade de usufruir de cartão de estacionamento, o interessado, portador incapacidade de 95%, viu agravar, de forma substancial, os efeitos desfavoráveis da sua deficiência na sua autonomia e deslocações quotidianas (v.g. as destinadas a consultas médicas e, ou, tratamento médico).
2.º§ – Conceito europeu de deficiência e enquadramento jurídico interno
A tutela jurídica dos direitos das pessoas com deficiência consubstancia-se, no ordenamento comunitário, como corolário do conceito de não discriminação e da aplicação do princípio de igualdade[2], encontrando consagração expressa em diversas fontes.
Assim, e nos termos do disposto no artigo 13.º do Tratado da Comunidade Europeia, «o Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu, pode tomar as medidas necessárias para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual».
Paralelamente, a Carta dos Direitos fundamentais, no seu artigo 26.º. sob a epígrafe «Integração das pessoas com deficiência», estabelece que «A União reconhece e respeita o direito das pessoas com deficiência a beneficiarem de medidas destinadas a assegurar a sua autonomia, a sua integração social e profissional e a sua participação na vida da comunidade».
Em sede jurisprudencial, o Tribunal de Justiça da União Europeia delimitou a noção, para efeitos laborais, no Acórdão Chacón Navas, caracterizando a pessoa com deficiência como aquela que tem uma «limitação que resulta, designadamente, de incapacidades físicas, mentais ou psíquicas e que dificultam a [sua] participação na vida profissional (…) durante um longo período»[3].
A intervenção da União Europeia materializou-se também na efetivação de instrumentos de soft law (v.g., regulamentos, resoluções, recomendações), definidores
de procedimentos de atuação não vinculativos, mas suscetíveis de produzir, ainda assim, efeitos jurídicos.
A alínea a), do artigo 2.º, do Regulamento (CE) n.º 1107/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2006 (direitos das pessoas com deficiência e das pessoas com mobilidade reduzida no transporte aéreo), integra no conceito de pessoa com deficiência todo o indivíduo «(…) limitado na sua mobilidade ao utilizar um meio de transporte devido a qualquer incapacidade física (sensorial ou locomotora, permanente ou temporária), incapacidade ou deficiência intelectual, ou a qualquer outra causa de incapacidade, ou idade, e cuja situação exija uma atenção adequada e a adaptação do serviço disponibilizado a todos os passageiros às suas necessidades específicas». Associam-se, aqui, as conceções de deficiência e de mobilidade reduzida[4].
De facto, a utilização de um meio de transporte diverso daquele que é prestado pelos serviços públicos constitui, para muitas pessoas com deficiência, a única via autónoma de mobilidade, suscetível de preservar a respetiva integração profissional e social.
Afigurando-se, assim, necessário possibilitar aos cidadãos titulares o parqueamento dos seus veículos de modo a não percorrerem longos trajetos, e considerando que a matéria em causa integrava a competência dos Estados‑Membros, a Comissão recomendou o benefício do cartão de estacionamento a todos os cidadãos cuja deficiência se revelasse suscetível de provocar uma mobilidade reduzida, por forma a que o seu titular pudesse usufruir das facilidades de estacionamento associadas e concedidas no Estado-Membro de origem.
No ordenamento interno, a Constituição da República Portuguesa confere ao Estado a obrigação de promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real e jurídico-formal entre todos os portugueses (alínea d), do artigo 9.º, e artigo 13.º), bem como a prossecução de uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência (artigo 71.º).
Por sua vez, a Lei de Bases da Prevenção, Habilitação, Reabilitação e Participação das Pessoas com Deficiência[5], estabelece, na alínea d), do seu artigo 3.º, que incumbe ao Estado a «promoção de uma sociedade para todos através da eliminação de barreiras e da adoção de medidas que visem a plena participação da pessoa com deficiência».
Também a Resolução do Conselho de Ministros n.º 9/2007, de 17 de janeiro, que aprova o Plano Nacional de Promoção da Acessibilidade (PNPA), visando promover a acessibilidade nos transportes, através de condições de estacionamento em matéria de transporte individual em veículo adaptado, mesmo em locais onde seja restrito, e atribuindo, sempre que necessário e possível, lugares reservados devidamente assinalados (ponto 2.2.3).
Refira-se ainda a Estratégia Nacional para a Deficiência (ENDEF) 2011‑2013, aprovada por Resolução do Conselho de Ministros n.º 97/2010, de 14 de dezembro, preconiza a criação de dispositivos que facilitem a mobilidade e a orientação das pessoas com deficiências e incapacidades (eixo n.º 4 «Acessibilidades e Design»).
O enquadramento e a atribuição de lugares de estacionamento para os veículos de pessoas portadoras de deficiência encontram-se previstos no n.º 3 do artigo 70.º do Código da Estrada[6], o qual estabelece que «nos parques e zonas de estacionamento podem, mediante sinalização, ser reservados lugares ao estacionamento de veículos (…) utilizados no transporte de pessoas com deficiência»[7].
Paralelamente, na sequência da adaptação ao ordenamento jurídico português da Recomendação n.º 98/376/CE, do Conselho, de 4 de junho de 1998, é instituído o cartão de estacionamento para pessoas com deficiência, condicionadas na respetiva mobilidade, segundo modelo comunitário uniforme (Decreto-Lei n.º 307/2003, de 10 de dezembro, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 17/2011, de 27 de janeiro). Nos termos do artigo 4.º do diploma em apreço, podem usufruir do cartão de estacionamento as pessoas cuja deficiência lhes provoque uma mobilidade reduzida, de acordo com o previsto nos artigos 2.º e 3.º.
Em concreto, o artigo 2.º estabelece o conceito de pessoa com deficiência motora, aqui se integrando «toda aquela que, por motivo de lesão, deformidade ou enfermidade, congénita ou adquirida, seja portadora de deficiência motora, ao nível dos membros inferiores ou superiores, de carácter permanente, de grau igual ou superior a 60%, avaliada pela Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de setembro, desde que tal deficiência lhe dificulte, comprovadamente: a) A locomoção na via pública sem auxílio de outrem ou sem recurso a meios de compensação, nomeadamente próteses e ortóteses, cadeiras de rodas, muletas e bengalas, no caso de deficiência motora ao nível dos membros inferiores; b) O acesso ou utilização dos transportes públicos coletivos convencionais, no caso de deficiência motora ao nível dos membros superiores».
Em complemento, o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 307/2003, de 10 de dezembro, enquadra ainda o conceito de pessoa com multideficiência profunda, considerando-se abrangidas nesta definição aquelas pessoas com deficiência motora que, para além de se encontrarem nas condições referidas no artigo anterior, enfermem cumulativamente de deficiência sensorial, intelectual ou visual de carácter permanente de que resulte um grau de incapacidade igual ou superior a 90%.
Verifica-se, pois, que o Decreto-Lei n.º 307/2003, de 10 de dezembro, adota um conceito restritivo de mobilidade reduzida, fazendo depender da atribuição do cartão de estacionamento o reconhecimento da condição de deficiente motor ou de multideficiência profunda, desde que nesta se verifique igualmente a deficiência motora.
3.º§ – A instrução do procedimento
Em sede instrutória, foram solicitados esclarecimentos ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes e ao Senhor Secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações. Em resposta, numa primeira instância, referiu aquela entidade que «A Recomendação n.º 98/376/CE, do Conselho, não vincula o Estado Português».
Ainda que se revelem instrumentos de soft law desprovidos de força jurídica obrigatória por si próprios, as recomendações podem, todavia, produzir alguns efeitos indiretos na ordem jurídica interna dos Estados Membros[8].
Neste sentido, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias considerou já que os atos emanados de recomendações «não podem ser considerados como desprovidos de qualquer efeito jurídico»[9].
No sobredito enquadramento, como referi supra, a Comissão Europeia procurou introduzir uma definição abrangente de pessoa com deficiência, associando os conceitos de deficiência e de mobilidade reduzida na alínea a), do artigo 2.º do Regulamento (CE) n.º 1107/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de julho de 2006, extravasando o alcance da definição aqui utilizada o mero domínio do transporte aéreo de passageiros, como se comprova através da análise ao Acórdão Chácon Navas.
Ora, da leitura do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 307/2003, de 10 de dezembro, conclui-se que a atribuição do cartão de estacionamento para pessoas com deficiência, condicionadas na sua mobilidade, segundo modelo comunitário uniforme, «foi instituída nos termos da Recomendação n.º 98/376/CE, do Conselho, de 4 de junho de 1998».
Afigura-se, pois, inequívoco o acolhimento conferido pelo ordenamento jurídico nacional ao normativo comunitário em apreço, ainda que com uma interpretação mais restritiva do conceito de mobilidade reduzida, em decorrência do regime vertido nos artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 307/2003, de 10 de dezembro, fazendo-se depender da atribuição do cartão de estacionamento o reconhecimento da condição de deficiente motor ou de multideficiência profunda, desde que nesta se verifique igualmente a deficiência motora.
Com o entendimento vigente, encontram-se fora do campo de atribuição do cartão de estacionamento quaisquer cidadãos portadores de deficiência sensorial ou intelectual de carácter permanente da qual resulte um grau de incapacidade igual ou superior a 90%, apenas pela circunstância de ali não se evidenciar a deficiência motora.
Perfilhando, na sua forma genérica, o entendimento produzido pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes relativamente à proposta suscitada por este órgão do Estado no sentido da alteração do diploma em questão, o Senhor Secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações disponibilizou-se, ainda assim, para realizar consulta à Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) e ao Instituto Nacional de Reabilitação (INR).
As entidades consultadas responderam ao parecer solicitado, tendo a ANMP comunicado que nada teria a opor à proposta de alteração apresentada. Por seu lado, o INR veio defender que o regime de atribuição de cartão de estacionamento deveria ser compatibilizado com a Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, que aprova o Código sobre o Imposto de Veículos (ISV), em ordem a que as pessoas portadoras de deficiência com apoios fiscais para aquisição de veículo pudessem obter o referido cartão; em conformidade, seria de acolher a minha pretensão, mas apenas no tocante a cidadãos portadores de deficiência visual de que resultasse um grau de incapacidade superior a 95%.
Muito embora considere algo restritiva a sugestão alicerçada pelo IRN, antes defendendo que a alteração ao regime definido pelo Decreto-Lei n.º 307/2003, de 10 de dezembro, deveria abranger todos os cidadãos portadores de deficiência intelectual ou sensorial (auditiva ou visual) de carácter permanente com grau de incapacidade igual ou superior a 90%, sou sensível à justeza da adequação daquele regime com a Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, que aprova o Código sobre o Imposto de Veículos (ISV).
4.º§ – Conclusão
Nos termos expostos, considero que o legislador português concretizou de forma incompleta o entendimento comunitário sufragado na Recomendação n.º 98/376/CE, do Conselho, de 4 de junho de 1998, desvirtuando o princípio de igualdade de tratamento entre cidadãos portadores de deficiência agravada e com mobilidade reduzida, sem a adoção de uma «prática objetivamente justificada por um fim legítimo».
E nem se diga que a atribuição do dístico de estacionamento a cidadãos portadores de deficiência sensorial ou intelectual de carácter permanente, ainda que sem deficiência motora, poderia conduzir a situações de injustiça material, representando «a concessão de um lugar de estacionamento privilegiado ao familiar não deficiente», não se antevendo como o atual dispositivo legal, na sua aplicação corrente, seja insuscetível de encerrar uma utilização indevida do título atribuído, por parte de familiares não deficientes. O referido dístico seria sempre atribuível ao titular da deficiência e não ao seu familiar, pelo que a reserva de concessão de estacionamento apenas se concretizaria para a morada do primeiro, e já não do segundo.
Em face do exposto, dignar-se-á Vossa Excelência, em cumprimento do disposto no n.º 2, do artigo 38.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, transmitir-me, dentro de sessenta dias, a posição que vier a assumir em face da presente recomendação.
Com os melhores cumprimentos,
O Provedor de Justiça
José de Faria Costa
[1] Conceitos ínsitos em http://www.inr.pt
[2] Em resultado do tratamento do princípio da não discriminação aplicado à deficiência, foram emitidas duas Diretivas “anti-discriminação”, a Diretiva 2000/43/CE, de 29 de junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica, e a Diretiva 2000/78/CE, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional. Cf. http://eur-lex.europa.eu/Lex-
UriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2008:0426:FIN:PT:PDF.
[3] Cf. o estudo de Ana Fernanda Neves, Os Direitos das Pessoas com Deficiência no Direito da União Europeia, Lisboa, 2010, p. 6, in http://www.icjp.pt.
[4] Muito embora não exista uma intervenção sistematizada por parte das autoridades comunitárias em matéria de deficiência, na área da mobilidade, destacam-se, neste particular, a Diretiva 2009/113/CE da Comissão, de 25 de agosto de 2009, que altera a Diretiva 2006/126/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à carta de condução, a Diretiva 95/16/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho de 1995, sobre a aproximação das legislações dos Estados Membros respeitantes aos ascensores (alterada pela Diretiva 2006/42, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2006), e a Recomendação n.º 98/376/CE, do Conselho, de 4 de junho de 1998, referente à emissão de cartão de estacionamento para pessoas com deficiência.
[5] Aprovada pela Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto.
[6] Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro.
[7] Cf. ainda o n.º 1, do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 81/2006, de 20 de abril (aprova o regime relativo às condições de utilização dos parques e zonas de estacionamento) e a secção 2.8 do Anexo ao Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de agosto (aprova o regime de acessibilidade aos edifícios e estabelecimentos que recebem público, via pública e edifícios habitacionais).
[8] Cf. Senden, Linda, Soft Law, Self-Regulation and Co-Regulation in European Law: Where do they meet?, EJCL, Vol. 9, 1.1.2005.
[9] Cf. o Acórdão no Processo n.º C-322/88, Grimaldi, 1989, p. 4407, ponto 16, in http://www.europa.eu.pt